TRÍPTICO DQC: PRIMEIRO ATO: O ÁTIMO DO
ENCONTRO - Meu quarto e o mundo: a parede
acendeu para meu espanto! Não me acostumara ainda com isso, a solidão
persistente. A imagem refletida desta vez era do Coliseu e lá longe uma mulher
vestida tal qual a coreógrafa belga, Anne Teresa de Keersmaeker na Rosa de Greenaway, gesticulava sozinha, dançava, fazia acrobacias e
gesticulava. Pude ver-lhe o talhe, estonteantemente sensual. Aproximou-se e
recitou Hannah Arendt: O novo sempre aparece contra esmagadoras
chances estatísticas e suas probabilidades, que, para todos os efeitos
práticos, todos os dias equivale a certeza; o novo, portanto, sempre aparece
sob o disfarce de um milagre. Novos passos e a bailarina radiante às
piruetas, rolando no chão e com expressões performáticas a explorar todo espaço
do monumento. Bailarina? Demorou a responder e, depois de se contorcer aos
rebolados remexendo-se descalça, chegou bem perto dos meus lábios e disse-me
ser o seu sonho: o de bailar ao ar livre. De repente, virou-se e tornou a virar
como se fosse Augustina Bessa-Luís:
Que é amar senão inventar-se a
gente noutros gostos e vontades? Perder o sentimento de existir e ser com
delícia a condição de outro, com seus erros que nos convencem mais do que a
perfeição? A frivolidade é também uma forma de hipocrisia porque as pessoas não
são aquilo. A pessoa, quanto mais frívola nos parece, mais esconde a sua
natureza profunda. Aproximou-se mais ofegante e inesperadamente beijou-me
com sofreguidão. Quase sem fôlego me rendi ao seu ataque sedutor, vasculhando
sua escultural compleição. Abraçou-me com fervor incendiando todo meu ser
eletrizado pela cobiça de tê-la mais que inteira e nua. Soltou-me bruscamente,
saiu até um recanto extremo e distante, apanhou um par de sapatos e voltou
apressada: Vamos! Quem era ela, qual o seu nome, não sei. Queria saber.
Olhou-me compenetrada, deu-me a mão e saímos enamorados sem rumo tarde afora.
SEGUNDO ATO: O FOGO DO FECAMEPA - Imagem: O Coliseu, Roma - Itália, do fotógrafo Rodolfo Loepert – Personagens da cena:
Máscara que chora (MQC), Máscara que ri (MQR) e Coisomínion (C) – MQC: Eita, os cometas estão tirando cada fino na
terra, hem? MQR: Vixe! Aquela num é a atriz Cacilda Becker? Pelo vestido colado no corpo, ela está sem
calcinha! Nossa que pernas! C: Quero que todos se fodam! MQC: Se um meteoro
desse cai aqui, babau! MQR: Hahahahahaha! C: Tou com Jesus, os outros que se
fodam! (Ouve-se manchetes do noticiário. Som de BG) Locutor em off: No Fecamepa as últimas notícias: Fogo
dizima a Amazônia, o Pantanal e várias áreas do território brasileiro! (Aumenta
o BG - Labaredas tomam conta do coliseu, ao fundo matas queimadas se
sobressaem. Som de música tétrica). MQC: O noticiário aqui é muito deprimente,
além de falso e trágico, também é tendencioso. MQR: Ora, ora, vamos todos
consumir, maior queima nas vitrines! Tudo vira cinzas no carnaval do
capitalismo! C: Queria mesmo que desse uma enchente dessas bem avassaladoras com
fogo, trovões, relâmpagos, explosões e tudo pra dizimar de vez com a raça dos
comunistas, dos pretos, gays, pobres e principalmente da desgraça nordestina, ô
pragas! MQC: Essas notícias são de matar um do coração! MQR: Vamos comprar mais,
vamos queimar as promoções! Tem cada coisa barata, liquidação dessa nunca se
viu, essa é a hora de comprar mesmo, ou agora ou nunca! C: Se eu fosse o
presidente eu botava esse povo todo numa câmara de gás, tudo amarrado em nome
de Jesus, aleluia! Aleluia! (Baixa o pano).
TERCEIRO ATO: QUEM DELA ERA - Anoiteceu um céu de nenhuma estrela. Não sabia
onde estávamos, havíamos envolvidos por uma multidão atenta a uma encenação
histriônica. Ela ria e mais apertava minha mão contra o seio. Sussurrou ao meu
ouvido da saudade de tudo e queria saber como andava o país depois da ditadura
militar, não havia tido notícia e entristecida ao tomar conhecimento das
últimas que lhe contara do retrocesso todo e desgoverno geral. Fez-me sentar
ali mesmo na calçada ao seu lado, uma lágrima escorreu na sua face e
consternada incorporou a si mesma: Viver é
ir ao encontro. Não se pode viver em estado de contemplação. Tudo está a nossa
espera É uma questão de coragem e amor. Cacilda?
Sim, sou eu: Eu não sou mais só eu, eu
sou um pouco mistura com o teatro. Sou um instrumento da minha arte, sou meu
próprio violino. De cada personagem que representei guardei uma
"descoberta" para mim, de mim mesma. Quando quero, quero. Quero de
fato. E vou buscar. Não espero nada de ninguém com relação às coisas materiais,
é claro. Tenho confiança cega em mim, apesar das insuficiências toco tudo para
a frente. Sempre foi assim. Ouvi atentamente suas palavras e sua voz
embargada encostando seu semblante ao meu ombro, chorosa, falou-me da sua
molecagem em Pega Fogo (1950), da estreia
da menina n’A morte da borboleta (1930), do Ritual do Fogo do ginasial, dos
palcos e cenas peças e filmes, das Paredes de Sartre (1950), da Dama das dos
Seis de Pirandello (1951), das Camélias, Antígona, da Stuart de Schiller
(1955), da Jornada de O’Neill (1958), da Moeda de Abílio (1960), da Velha
Senhora de Dürrenmatt (1962), da Noite de Tennessee (1964), do Medo de Virginia
Woolf (1965), da fúria santa, do diário e da ditadura militar e do aneurisma naquela
fatídica tarde junina como Estragon do Godot de Beckett. Contou-me mais como se
vingasse a vida aos prantos, levantei-lhe a face e não era ela, era a linda Olalla Cociña, a Tigresa: o teu amor vivendo nas jaulas dos circos / ou no teatro / (chamaram-te dramática seguido, acabaste sendo). / os ossos que adoras amarrando o cabo da vida / ao da morte / (a morte
prematura / a morte desejada e que não chega / não querer viver assim mas também esse medo a morrer). / ir virando-a: ser / inconsistente. Um beijo e naqueles lábios
eu flutuava o poema por infinitas galáxias do não sabido. Até mais ver.
A ARTE DE NÍNIVE CALDAS
A arte da atriz Nínive Caldas que iniciou a sua carreira no teatro em 2009 e desde então vem atuando com destaque em vários espetáculos e com vasta experiência em cinema, teatro e publicidade. Atualmente é apresentadora do programa Na direção delas, da TV Brasil. Veja mais aqui e aqui.