FUGA DA PASSARINHADA - Ainda ontem de
muito antes, meus passarinhos embalavam ruidosos toda minha fantasia. Chilreios
encantavam infância e juventude, traquinagens de papa-capim, tiziu, guriatã,
sabiá, patativa, curió, canário da terra, azulão, galo de campina, chorão, bem-te-vi,
xexeu, caboclinho, sibitos, quantos outros e muitos com seus gorjeios, nem
lembro mais. Cada um com seu trinado mirabolante, encanto para os ouvidos na
plenitude da vida: chega dava uma grandeza na alma e no coração. Meu pai
colecionava em centenas de gaiolas. Bastava ele descuidar, soltava um por um,
os canários-do-império, a coleção de sabiás, todos avoando no quintal. Ele só
desconfiou porque as gaiolas esvaziaram. Todavia, ouvia os cantos, pensava que eu
havia colocado noutras gaiolas do lado de fora. Qual nada, estavam todos soltos
ao redor das árvores no quintal. Tanto é que eu saía perambulando como se a cantoria
da passarada me acompanhasse o passo pelas manhãs e tardes ensolaradas. Como eu
saía ancho, feliz. Porém, se estivesse vestido de roupas com cores amarelas ou
vermelhas, logo era surpreendido por um ataque de lacerdinhas que pousavam
sobre minha camisa, afora, invariavelmente, uma delas aos meus olhos. Era um
ardor insuportável: expelia um líquido cáustico e provocava uma irritação
ocular acompanhada de uma ardência prolongada. Pense num coisa ruim, mal-estar
danado. Não sabia eu que esses insetos oriundos da Ásia Oriental invadiram diversos
estados brasileiros no início dos anos de 1960. Só me lembro do padecimento às
vistas irritadas. Qualquer pessoa que transitasse pelas praças, logo saía
vitimada dos pela repulsiva situação. Para combatê-los, muita providência e depois
de se pensar todas as formas de uso preventivo ou para remediar o vexame, deram
conta do pardal, aquele mesmo que aparece em salmos bíblicos, nas lendas
religiosas e que era a ojeriza de Hornoday e do rei da Prússia. Foi importado
do Velho Mundo para combater pragas, colaborando com Oswaldo Cruz na
higienização das cidades por ser insetívero, tornando-se, porém, numa
calamidade de pena e bico, ganhando até má fama em marcha carnavalesca dos
Namorados da Lua, afora ter sido por séculos, devidamente caçado na Europa e no
Brasil numa verdadeira matança, por hostilizar outras espécies de aves e causar
danos na lavoura. Só carcará, gavião carijó, falcões e corujas amedrontam os
pardais, enquanto estes dizimam aves autóctones, sendo muito resistente e
comendo de tudo que nem se imagine, aninhado em forros de telhados, fiações,
buracos na parede, coqueiros e muros. Desapareceram as tais lacerdinhas
execráveis e com elas a passarada canora, restando apenas, na minha solidão, o
piado insosso de pardais pelos dias. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] É próprio da espécie humana elaborar
socialmente fenômenos naturais. Por esta razão é tão difícil, senão impossível,
separar a natureza daquilo em que ela foi transformada pelos processos
socioculturais. A natureza traz crescentemente a marca da intervenção humana,
sobretudo nas sociedades de tecnologia altamente sofisticada. Há, portanto, ao
longo da historia, uma humanização da natureza, uma domesticação da natureza
por parte do ser humano. Este processo caracteriza-se, como tudo na vida
social, pela contradição. Se, por um lado, revela a capacidade humana de
colocar a natureza a seu serviço, por outro, interfere no ecossistema,
destruindo, muitas vezes, o equilíbrio
ecológico. [...] Não basta conhecer á capacidade humana de transformar o reino natural.
É preciso atentar para o processo inverso, que consiste em naturalizar
processos socioculturais, quando se afirma que é natural que a mulher se ocupa
do espaço domestico, deixando livre para o homem o espaço público, está-se
rigorosamente, naturalizando um resultado. [...] A história oficial pouco ou nada registra da
ação feminina no devenir histórico. Isto não se passa apenas com mulheres.
Ocorre com outras categorias sociais discriminadas, como negros, índios,
homossexuais. Deste fato decorrem movimentos sociais, visando ao resgate da
memória, geralmente não registrada, destes contingentes humanos que, atuando
cotidianamente, ajudaram e ou ajudam a fazer história. E de extrema importância compreender como
a naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher e
outras categorias sociais constitui 0 caminho mais fácil e curto para legitimar
a "superioridade" dos homens, assim como a dos brancos, a dos
heterossexuais, a dos ricos. [...].
Trechos extraídos da obra O poder do macho (Moderna, 1987), da
socióloga, professora e militante feminista Helena Iara Bongiovani Saffioti (1934-2010). Veja mais aqui &
aqui.
O TEATRO
DE WOLE SOYINKA
MORTE E CAVALEIRO DO REI – [...] LOUCO DE
ELOGIO O seu nome será como o doce que uma criança coloca debaixo da sua língua
para adoçar a passagem da comida. O mundo nunca vai cuspir. ELESIN Venha então,
este mercado é meu abrigo. Quando venho entre as mulheres, sou uma galinha com
cem mães. Eu me torno um monarca cujo palácio é construído com dez dureza e
beleza. ELOGIO-CANTOR Eles adoram estragar, mas cuidado. As mãos das mulheres
também enfraquecem os desavisados. ELESIN Esta noite vou deitar minha cabeça no
colo deles e dormir. Esta noite eu vou tocar os pés com os pés em uma dança que
não é mais desta terra. Mas o cheiro da carne deles, o suor deles, o cheiro de
índigo nos tecidos deles, esse é o último ar que eu desejo respirar enquanto
vou ao encontro dos meus grandes antepassados. CULPA DE LOUCO Em seu tempo as
grandes guerras iam e vinham, as pequenas guerras iam e vinham; os negociantes
de escravos brancos iam e vinham, eles tiravam o coração de nossa raça, eles
afastavam a mente e o músculo de nossa raça. A cidade caiu e foi reconstruída;
a cidade caiu e nosso povo se arrastou através da montanha e da floresta para
encontrar um novo lar, mas - Elesin Oba, você me ouve? ELESIN Eu ouço sua voz
Olohun-iyo. CULPA DE LOUVOR Nosso mundo nunca foi arrancado de seu verdadeiro
curso. [...] ELESIN O mundo que conheço é bom. MULHERES Assim vai
deixá-lo, nós sabemos. ELESIN O mundo que conheço é a dádiva Das colmeias
quando se foram as abelhas. Não há bondade que profunda de mãos assim abertas Mesmo
nos sonhos das deidades. MULHERES E assim vai deixá-lo, nós sabemos. ELESIN
Nasci pra assim mantê-lo. [...] ELESIN Esta noite
não está em paz, ser fantasmático. O mundo não está em paz. Você destruiu a paz
do mundo para sempre. Não há sono no mundo esta noite. PILKINGS Ainda assim, é
um bom negócio que o mundo perca uma noite de sono se esse é o preço de se
salvar a vida de um homem. ELESIN Você não salvou minha vida, Oficial
Distrital. Você a destruiu. [...].
Trechos da peça teatral Morte e Cavaleiro do Rei (Death andthe
King’s Horseman – W.W. Norton,
2003), do poeta e dramaturgo nigeriano Wole Soyinka. Veja
mais aqui e aqui.
A FOTOGRAFIA
DE ANNEGRET SOLTAU
Eu tenho
uma relação de amor e ódio com técnicas como tricô, crochê ou costura. Minha inspiração vem da
minha vida pessoal e do ambiente; estou ciente do que está acontecendo em nossa
sociedade de forma sismográfica. Meus ideais
mudam com o tempo.
A arte da fotógrafa alemã Annegret
Soltau. Veja mais aqui.
A OBRA DE OUSPENSKY
É somente quando percebemos que a vida não está nos
levando a lugar algum que ela começa a ter significado.