O DESENCANTO DE BACH - Johann
saxão sou de Eisenach, na Turíngia. Nasci numa data qualquer do
calendário juliano, e conservo-me preso ao pó da
represa mortal, sujeito ao imprevisível da vida. Na voz
soprano infantil, perdi a mãe e, depois, o pai, mais dois irmãos. Fui criado pelo
mais velho – um organista de Ohrdruf, o começo das minhas andanças. A música e a loucura fluíam nas veias: do meu avô, o bater ao vento das
pás de madeira de um moinho. Minhas mãos enormes, a despeito do fardo da terra
alçado ao ombro, carregavam com firmeza o leme da jornada, empenho consagrado
por longo e laborioso trabalho árduo. Irrequieto, audacioso, tudo fiz. Na corte
calvinista de Köthen: a arte consumida e esquecida. A fuga de Marchand ao desafio, sob a alegação de doença súbita, quem era
quem, granjeou-me simpatia. A fama é vento caprichoso. Não me virou a cabeça,
apesar do anel dado pelo herdeiro do trono da Suécia. Excêntrico nas ideias: um
louco improvisando em claves estranhas, a perturbação de estranhos pensamentos,
como a cantata da parábola das virgens prudentes e imprudentes,
a graciosa procissão das donzelas saindo ao encontro de Jesus, o noivo celeste.
Em Leipzig só conheci desamor, um estrangeiro. Fui preso em Weimar, por
descontente patrão: queria a demissão. Fui censurado pelo consistório por conta
da ausência ou da escandalosa liberdade improvisada e, depois, por
acompanhamentos demasiado curtos. Queriam muito, davam quase nada. Conheci a
prima Bárbara, soprano de Gehrenm, que descansou no céu de Köthen, junto com
dois dos meus filhos: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em
mim. Escrevia para curar a insônia do conde, as Variações Goldberg. De mim,
tornei-me Si bemol, Lá, Dó, Si, seis dias ininterruptos: a oferenda pro sádico
da Prússia. Os seis de Brandemburgo prontos para embrulhar qualquer coisa no
armazém. Muitos conflitos com empregadores, a recusa de alunos desatentos, a estupidez dos semelhantes pelo amor de suas regras e preceitos
ridículos, embaralhados pela mortalidade. Não se elevavam: punhaladas no
coração. Sequer valiam pelos sentidos ou poucos mereciam estar em pé, sobre
duas pernas. Um anjo se descesse dos céus, teria de tributar à igreja se
quisesse tocar, do contrário, voaria de volta. Queriam um chantre, não um
organista de verdade: a inveja é filha da incompetência. Quanta
incompreensão, quantos inimigos que não sabiam nada: insultos e calúnias,
atribulações, atritos, disputas, críticas, polêmicas, um extenso e fantasioso
folclore sobre mim. Reverenciavam-me por monumento, no fundo me ignoravam ao
mais grave desdém. Restava-me uma caneca farta de
cerveja e o Café Zimmermann: uma cantata profana da moça
casadoura que preferia a bebida a mais de mil beijos, afirmando que só aceitaria
casar com quem lhe desse café. Tanta
coisa por fazer. Ergui minha arte sobre pilares limpos,
claros, simples. Brincava sozinho: fazer as coisas bem feitas para que todos
fruíssem. As anotações entre tons maiores e menores, o manifesto do cravo bem
temperado, a alegria e o otimismo, o suave e etéreo, a mística gótica e a inspiração
dramática do barroco. Conheci a soprano Ana Magdalena, a filha do trompetista
de Weissefels, e casei pela segunda vez. Ela e o piano, o animal sensitivo. Ele me respondia ao toque, seguia o compasso:
escalas, notas, oitavas, intervalos, escapadas e perseguições, capturas e
escapulidas, harmonia e discórdia, ascensão e descensão. Prelúdios, fugas,
cantatas, concertos, tudo como o canto dos pássaros ao sol: é na beleza da
variedade que reside a unidade verdadeira. Tudo para me elevar como uma criança
olha para o pai. O coração ama demais e de verdade. O que atrapalha são as
dores, cada qual sua dor e as insatisfações dela advindas, abalam o afeto. O
talento e saber serviam para nada, tudo inútil diante de tanta mediocridade. Foi
preciso me retirar da vida pública, vi-me, apenas, uma paisagem trivial aos
olhares alheios: um estranho em qualquer lugar, na minha própria terra, no meu
próprio país. A minha miopia, a decadência: meus
filhos e esposa à caridade pública. Os aplausos tardios na profundidade do abismo. O derradeiro brado. O silêncio. O esquecimento.
O mundo escureceu de vez, não enxergava mais nada. Cirurgia,
sangrias, ventosas, bebidas laxativas, e a solução no sangue de pombo, açúcar
moído e sal torrado nos olhos. Eu via e a minha arte
na obscuridade, tudo guardado no armário de uma sacristia: se se precisasse de
um pedaço de papel para o que fosse, bastava arrancar qualquer folha dos meus manuscritos.
A minha arte num asilo. Sabia, só passaria realmente a existir depois de morto.
Desimportante, meu corpo se perderá, meus restos mortais
no ar. No meu espólio: dois potes de café e um açucareiro. Para frente e para cima, a música é a glória de Deus. Era isso, afinal,
viver é luta áspera. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Os grandes poetas e os grandes artistas têm
por função social renovar incessantemente a aparência de que se reveste a
natureza aos olhos dos homens. Sem os poetas, sem os artistas, os homens se
entediariam depressa da monotonia natural. A ideia sublime que eles têm do
universo sofreria nova queda com uma velocidade vertiginosa. A ordem que
aparece na natureza e que é somente efeito da arte logo desapareceria. Tudo se
decomporia no caos. Não haveria mais estações, civilização, pensamento,
humanidade, não haveria mais vida, até, e a impotente obscuridade reinaria para
sempre [...].
Trecho
extraído da obra Pintores
cubistas: meditações estéticas (L & PM, 1997), do poeta e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880-1918), extraodinário
documento sobre o movimento cubista - acontecimento decisivo que influenciou
todos os movimentos modernos que sacudiram o século XX - e sua época. Na obra,
o autor expressa com raro sabor documental o momento, o clima e as circunstâncias
em que surgiram os artífices do cubismo como Braque, Picasso, Gris, Lèger,
Picabia, Duchamp e outros importantes pintores. Veja mais aqui, aqui &
aqui.
A MÚSICA
DE ANA CLÁUDIA BRITO
Curtindo os álbuns Bach's Instrumental Works (Meta, 2006) e outro com a obra do compositor
italiano Nino Rota & do compositor armênio Aram Khachaturian (Lindoro, 1999),
da premiada pianista e professora Ana Cláudia Brito Girotto, que atua como
recitalista, solista e camerista com renomadas orquestras e regentes. Veja mais
aqui.
A ARTE
DE VERA GUERRA CHAVES BARCELLOS
Meu trabalho é variado. Eu comecei dentro de
uma tradição do modernismo e acho que só encontrei mesmo os meus caminhos
depois que passei a fazer fotografia e a educar o meu olhar através da
fotografia. Aí, foi surgindo questões sobre a imagem, sobre o que é a imagem, o
que é a representação, o que é o falso, o que é a cópia. Creio que essas
questões é que foram formando o que poderia se chamar a poética do meu trabalho. Na verdade,
poderia dizer que comecei pela gravura, porque foi com a gravura que pude já me
considerar alguém que dominava uma forma de expressão. Antes, eu pintei. Alguns
desses quadros a óleo eu ainda conservo, uma boa parte, no entanto, destruí em
uma grande fogueira. Sorte que nunca me arrependi disso. Quanto à poética, nesse tempo em que fazia
quantidade grande de desenhos preparatórios para se transformarem primeiro em
litografias e depois em xilogravuras, para mim era expressar pela forma e pela
cor algumas forças e significados. Desenvolvi uma espécie de alfabeto variado
em que certas formas e certas cores eram mais adequadas para veicular
significados, tipos de emoções, ou forças opostas. Creio que nesse momento já estava em mim um germe de inquietação que me
levaria a mudanças mais radicais, que viriam depois, com o uso da fotografia.
De utilizar a imagem não como um fim em
si mesma, mas como um meio para atingir uma espécie de disciplina do olhar.
A arte da artista visual Vera Guerra Chaves
Barcellos, que trabalha com pintura, gravura, desenho e fotografia,
misturando com xilogravura, serigrafia e técnicas gráficas. Ela participou do
grupo Nervo Óptico (1976-78) e foi uma das fundadores do centro de cultura
alternativa Espaço N. O. (1979-82), afora realizar exposições e instalações
multimídias.
&
A ARTE DE JOSÉ CARLOS
VIANA
A arte do pintor, desenhista e gravador José Carlos Viana
(1949-2019). Veja mais aqui.
A OBRA DE BACH
Todo e qualquer homem piedoso
poderia fazer quanto fiz se nisso se empenhasse como me empenhei. Quero
demonstrar ao mundo, na arquitetura da minha música, a arquitetura de uma nova
e bela comunidade social. O segredo da minha harmonia? Só eu o conheço. Cada
instrumento em contraponto, e tantas partes contrapontísticas quantos
instrumentos existirem. A autodisciplina iluminada das várias partes – cada
qual se impondo voluntariamente a si mesma os limites de sua liberdade
individual para o bem-estar da comunidade. Tal é a minha mensagem. Nem a
autocracia de uma única e teimosa melodia, de um lado, bem a anarquia de ruídos
desenfreados, de outro. Não – um delicado equilíbrio entre ambos – uma
liberdade esclarecida. A ciência da minha arte. A arte da minha ciência. A
harmonia das estrelas no céu, o anseio de fraternidade no coração do homem. Tal
é o segredo da minha música. O objeto de toda música devia ser a glória de
Deus.