CRONIQUETA DE
NATAL - Imagem da artista plástica russa Nina Kozoriz. – Respeitável público!
Senhoras e senhores dêem licença, peço aqui a sua prestimosa atenção pra contar
algumas poucas coisas daqui: sou do rincão em que o verão dura o ano inteiro.
Não é bem assim; vez ou outra, quando em vez chega o mês de julho, das portas
do céu escancarar pra chuvarada até dezembro, não antes elevar as águas de
transbordarem varrendo abrigos, honras e poderes do chão, avalie. Respeite o
dilúvio de levar a saparia a se atrepar na serra toda reunida, a rezar de
joelhos na maior das ladainhas, pras nunvens pararem de mijar o maior aguaceiro
dentro das calças de Maiakovski, pra não apagar a fogueira, nem acabar com a
quadrilha do casamento matuto nos festejos juninos. A coisa é séria,
arrebentando além dos oito a oitenta. Além do mais, aqui tem tudo: todo tipo de
brebote e personalidade do Paraguay, trambiqueiro metido a inglês,
galego-de-água-doce que nunca foi à Espanha, safados de Portugal, anão dentuço
menor que o próprio tamanho da piroca grande como atração na prefeitura, piratas
de Ali Babá na Câmara dos Vereadores, Et Deputado, profeta comerciante, Gengis
Khan como médico, cobras como professores, cego como motorista, alcoviteira
como justiça, hotel no espaço, cana escocesa, mosqueiro americano, tem até a
Lapônia feita pelos duzentos quilos de banha de Joab Jabão depois de tomar uns gorós
e, completamente biritado, pegar no empurrão já de saco cheio, aos soluços e
sopapos, a puxar uns guenzos rua afora pra jogar moedas de antanho tapiando a
garotada e os bestas, hô, hô, hô. Isso até ele parar encostado e resfolegante
numa palmeira, acendendo a lamparina pra fazê-la árvore de Natal. Pois é, repito:
aqui tem de tudo: se o chão tremer, não dá em nada, terremeto ou erosão, é
soltar um rojão e cair no maior rastapé; tsunami, maremoto, muito menos, do
Cocão do Padre a coisa é regulada: depende da ingresia religiosa – avisa pra
eles que Deus não é surdo! -; e pode vir ventania, pé-de-vento, corisco,
tornado ou tufão, moleza: vai dar asa pra soltar pipa ou mandar ver no
catavento! Vulcão, incêndio, apocalipse, aqui é maior brinquedo! É todo dia e o
dia todo o maior queima nas lojas do comércio! Quer mais? Passou nas quatro,
pois é à prova de fogo, água, terra e ar – de bala, é covardia, né? Sem contar
a fuxicagem, pechincha e por favor; a carteirada, calaboca e sim, senhor; finda
em festa de virar o pote, quebrar botija e atiçar pra briga; e por via das dúvidas,
tudo se joga nas três, até o que é dos outros: cuspe, pulha e pedra! E se
alguém viu, ninguém sabe, só vale boataria pro circo pegar fogo! Conversa é só
arenga, quantos ofendidos; dinheiro invisível feito mato, isso pros buchudos
com deus na pança; se não for briga, a correria é o maior burburinho que só a
má notícia, até pinotar ou ter um troço e bater as botas, só sabe se não morreu
de morte morrida, ou de morte matada, precisa conferir quem saiu se já voltou
ou vai ver se estou lá na esquina, depois junta o quebra-cabeça, tá? E pra
encurtar a história toda que a coisa é muita e demais, o mundo todo é aqui! Se
não é, está aqui! Mas é natal! É natal, gente! Vamos maneirar e aprumar a
conversa, ora! É natal, tudo nasce, renasce e torna a nascer todo dia na
aleatória pulsação das coisas: a amanhã e o Sol, a noite e as estrelas, a terra
e o chão, a brisa e o vento, a areia e o seixo, a semente e o fruto, as folhas
e os galhos, o zangão e as flores, as águas e as margens, a fonte e o regato, a
correnteza dos rios e as ondas do mar, os caminhos e as estradas, as chegadas e
as partidas, afora os bichos miúdos e os mais desproporcionados, os mansos e
indomáveis, as peçonhentas e os domesticáveis, os que rastejam e as que voam,
os que cantam e as que gritam, os que choram e as que riem, isso sem puxar a
corda carnavalizante de gente: branco, preto, amarelo, vermelho, pardos, tudo
muito misturado e quem mais vier de dentro e de fora dos planetas, das
galáxias, da imensidão do universo! Afinal é natal, tudo nasce e renasce no
esplendor da vida. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
A edição de hoje é dedicada à artista plástica russa Nina Kozoriz. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS – Os verdadeiros bem-estares têm
um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. Mas a grande
planta de pedra, que é a casa, cresceria mal se não tivesse em sua base a água
dos subterrâneos. Pensamento do filósofo, crítico literário e epistemólogo francês Gaston
Bachelard (1884-1962). Veja mais aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: Tudo já foi dito uma vez, mas
como ninguém escuta, é preciso dizer de novo. Pensamento do escritor
francês Prêmio Nobel de Literatura de 1947, André Gide (1869-1951). Veja
mais aqui e aqui.
AMEAÇAS DE ONTEM & HOJE - [...] A séria ameaça à nossa
democracia não é a existência de Estados totalitários [...]. É a existência, em nossas próprias atitudes
pessoais e dentro de nossas próprias instituições, das condições que deram
vitória à autoridade externa, à disciplina, à uniformidade e à dependência do
líder nos países estrangeiros. De acordo com isso, o campo de batalha é aqui
também – dentro de nós mesmos e de nossas instituições. [...]. Trechos
extraídos da obra Liberalismo, liberdade
e cultura (Cia. Editora Nacional, 1970), do filósofo e pedagogo estadunidense John
Dewey (1859-1952). Veja mais aqui, aqui & aqui.
VELHOS COCHEIROS – Outro
dia, ao saltar de um tílburi no antigo Largo do Paço, vi na boléia de um
vis-à-vis pré-histórico a ventripotência colossal de um velho cocheiro. As duas
mãos gorduchas à altura do peito como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdinhada,
o automedonte roncava. Seria uma recordação literária ou a memória de uma
fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon,
ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que
todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de
literatura, a verdade obumbra-se tanto que é sempre preciso perguntar por ela
como o fez Poncius Pilatos diante de Deus. Fui para perto do vis-à-vis, bati na
perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha
que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam como
traves; os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as
pernas; e a caraça vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do
Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou: –
Pronto! – Então você não me conhece mais? – Eu não, senhor. – Pois eu conheço a
você desde menino. Ele abriu de todo as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre
bondade passou-lhe pelo lábio. – Saiba vossa senhoria que bem pode ser! Toda
essa gente importante de hoje eu conheci meninos de colégio! Não sei por que
estava meio emocionado. – E já fez ponto na Estrada de Ferro? – Há vinte anos,
eu e o Bamba. Encostei-me à boléia do antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim,
havia vinte anos que no passar pela estação de carros os meus olhos de criança
se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda de um velho, que já naquele tempo
era velho e já naquele tempo gravemente roncava na boléia de um carro! Havia
vinte anos. É como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de
Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande
ministro João Alfredo? É meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe,
há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido.
Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao
Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces,
vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria... – Como se chama você? –
Braga, eu sou o Braga. Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces
de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com
a mesma curiosidade de criança. – Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte
anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui. – E não estás
rico?! – Rico? Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e
envermelheceu mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boléia com
superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha
feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam
dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz
lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze
anos de boléia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um
homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo
encharcado. Tanto ádipo dava-me a impressão de que o pobre velho devia ter água
nos tecidos. Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boléia falava um cultor do
quietismo, um renanista que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição,
nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a vida e vem para a rua
almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade. – Ah! este
carro! murmurei. Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor,
quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes! – Este carro não; outros,
ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha
conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora
essas coisas de beijos – noutro tempo era nas berlindas. – Tinha vontade de
saber a sua opinião. Ele arregalou muito os olhos. – A respeito de beijos? Sei
lá! – Não, a respeito da Monarquia e da República. Ele sorriu, pensou. – A
Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá
talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia
de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os
fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra
no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que o Obá entrava no Paço.
Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava
saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de
papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um
ministro. Parecem-se todos com os outros homens. – Talvez não sejam, Braga. –
Quanto às capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é
que conheço o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só
ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a
Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de cara
raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome! Despegou as mãos de
sobre o peito. – E vão morrendo todas as pessoas notáveis, já não há mais
ninguém notável. Só restam o sr. visconde de Barbacena, o sr. marquês de
Paranaguá e mais dois outros. Houve uma longa pausa. Como este cocheiro estava
do outro lado da vida! Quinze anos apenas tinham levado o seu mundo e o seu
carro para a velha poeira da história! Ele falava como um eco, e estava ali,
olhando o boulevard reformado, pensando nos bons tempos das missas na catedral
e das moradas reais, hoje ocupadas pela burocracia republicana. . . – O Braga é
o mais velho cocheiro do Rio? – Não senhor; é o Bamba, que começou em 1864. Neste
momento, outros cocheiros moços, limpos, de grandes calças abombachadas foram
aproximando os carros, com vontade de saber o que retinha um cavalheiro tanto
tempo a prosar com o velho. Logo se fez um barulho de rodas e de vozes. – Ó
Braga, ó velho, despacha o freguês! tem aqui um carro bom, vossa senhoria! O
Braga, posso servir? Braga cruzou outra vez as mãos no peito, com um sereno
olhar indiferente. Que dor o havia de trespassar! Murmurei com pena: – Bom,
adeus, meu Braga. E onde pára o Bamba? – Na Estrada, pára na Estrada. Às ordens
do menino, respondeu ele do alto. Já agora era impossível deixar de ver o
outro, de conhecer o mais antigo cocheiro do Rio! Tomei um bonde da Central. A
tarde morria em lento e vermelho crepúsculo. No céu brilhava a primeira estrela
trêmula e luminosa, e os combustores acendiam a sua luz azul quando saltei na
Praça da Aclamação. E foi um grande trabalho. Eu ia de carro em carro. – Pode
informar onde pára o Bamba? Uns diziam que o Bamba caíra e fora para o
hospital, outros, os moços, riam de que se fosse procurar um cocheiro inútil
como o Bamba, outros asseguravam que o velho não trabalhava mais. Afinal, quase
defronte da porta do Quartel, encontrei um landau empoeirado, desses que
parecem arcas e acomodam à vontade seis pessoas. Da boléia um mulato velho
falava para um gordo ancião, muito gordo, muito estragado... – Sabe você dizer
quem é e onde está o Bamba? O mulato riu. – É este, patrão... O gorduchão abriu
a boca, onde faltavam os dentes. – Já não trabalho de noite: tenho 70 anos. Não
vejo. Desde 1864 que estou no serviço. Outro dia quase morro; caí da boléia.
Tenho as pernas duras. – Bamba, meu velho... – Sou o primeiro cocheiro, o mais
velho, não há nenhum mais velho... Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o
quase em segredo: – Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim? O mulato sorriu
com tristeza. – Sei lá! É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente
começa nesta vida, não pode viver sem ela... É o cheiro. A praça vibrava numa
estrepitosa animação, os combustores reverberavam em iluminações fantásticas,
e, só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste
foice do seu crescente. Conto extraído da obra A alma encantadora das ruas (Companhia das Letras, 2008), do jornalista, escritor, tradutor e
teatrólogo João
do Rio (1881-1921). Veja mais aqui e aqui.
O PIRANGI – O que o rio estampa? /
Irrefletido espelho / de aço perdido / e estrelas náufragas / sob a gosma parda
/ da calda fétida / rio sem a memória / das imagens das margens / despejo
canavieiro / descendo moribundo / no seu leito de morte. Poema do escritor Pelópidas Soares (1922-2007). Veja mais
aqui e aqui.
TODO DIA É DIA DA MULHER
Leitora Tataritaritatá!!!!