A CABEÇA NA BANDEJA - Imagem:
arte da artista visual Ana Luiza Rego.
– Quando eu estava para nascer, havia uma expectativa. O que será que será? Ninguém
previa o que pudesse surgir ali, naquela hora, se um monstro, um duende, um et,
um vampiro, ou o saci Pererê, coisa que valha das abusões e terrores do mundo. Estavam
todos prontos para tudo, eu poderia ser qualquer coisa, inclusive um aleijão,
ou uma maldição, ou a besta do apocalipse. Fisionomias graves se confundiam com
as da minha mãe que não sabia ao certo se estava com oito ou dez meses,
atrapalhada com a contagem. A parteira lá a postos, conferindo as dilatações,
as contrações, dizia: O bregueço vai nascer já já. Está quase na hora dele se
mostrar! E tome espera. Ninguém ali dos presentes, parentes e aderentes sabiam
se três da madrugada, dez da manhã ou cinco da tarde, sabe-se, apenas, que de
repente pinotei do ventre da minha mãe pras mãos da parteira, com um berreiro
macho de quem queria mesmo era azucrinar o mundo. Pronto, disse a parteira toda
ancha, conferindo tudo: Dois olhos, dois buracos no nariz, uma boca, dois
ouvidos, pescoço, dois braços, duas mãos e cinco dedos, dois pés e cinco dedos,
duas pernas, virou, revirou, desvirou, tudo parece perfeito, pelas aparências não
é bicho, nem coisa de outro mundo, parece mesmo que é gente, nunca se sabe. Pode
ser que vire coisa ruim, vai depender das circunstâncias. Mas tem um detalhe!
Ao dizer isso todos ficaram apreensivos. O detalhe é que esse menino será a
perdição do mundo se não cortarem o mal pela raiz. Como assim? Esse menino será
os pés da doida e se derem manha para ele, tudo estará perdido. Por quê? Se não
cortarem logo as asas dele, esse menino quando crescer vai dar muito trabalho,
vejam! Aí ela me futucou, eu dei um espirro e a terra tremeu caindo uma chuva
torrencial. Como é? Ela buliu e eu arrotei. Nessa hora tudo virou de pernas pro
ar. Ôôôô! Deu outra cutucada e eu peidei, pronto, trovões e relâmpagos abriam
serras e morros! Ôôô! Estão prestando a atenção, né? Sim, todos
afirmativamente. Pois bem, quando esse menino sorrir tudo vai desequilibrar,
quando ele chorar os rios transbordarão a ponto das barragens romperem, quando
ele tossir vai mudar a cor das coisas, quando estalar os dedos vai causar
catabis que assustarão todo mundo, quando cagar as placas tectônicas se
reacomodarão, quando ele mijar vai soltar sacarose de virar açúcar cristalizado,
quando ele correr vai sumir, porque vai ficar invisível e só voltará quando bem
quiser, mas não deixem ele cantar, será bastante desafinado, prefira as
mentiras que ele conte porque será um grande mentiroso, mas nunca, sob hipótese
alguma, deixe-o cantar, pois causará um desastre imprevisível. Estão avisados. Muitas
outras coisas esse menino pode proporcionar para prejuízo de todos. Muitas mesmo.
Cuidem dele em cima da risca, não deixem que viva solto, qualquer descuido será
tarde demais, qualquer brecha ele foge, qualquer desatenção ele bota fogo na
casa, tem de ser vigiado vinte e quatro horas por dia. Entendido? Sim, tudo nos
conformes. Só não esperavam que eu começasse ali naquela hora a armar das
minhas até hoje, premiado com a cabeça exposta na bandeja. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do compositor argentino Gustavo Santaolalla: Pajaros, Biutifull & The Best; a cantora e
compositora armênia Lisbeth Scott: Desert song, Globus Preliator & The Best; & muito
mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Temos
de reconhecer que a consciência ordinária do homem comum [...] é uma criatura de desejos e não de estudo
intelectual, investigação e especulação. O homem vive num mundo de sonhos antes
que de fatos, e um mundo de sonhos organizado em tono de desejos cujo sucesso
ou frustração constitui sua própria essência. [...]. Pensamento extraído da
obra Reconstrucion in philosophy (Beacon, 1962), do filósofo e pedagogo
estadunidense John Dewey
(1859-1952). Veja mais aqui.
A CIÊNCIA & A VERDADE - [...] A
ciência não é um sistema de declarações certas e bem estabelecidas, nem
tampouco um sistema que avança para um estado final. Nossa ciência não é
conhecimento (episteme): ela nunca pode pretender haver atingido a verdade, nem
mesmo um substituto para ela, como a probabilidade [...]. Trecho extraído
da obra The logic scientific discovery (Harper
& Bow, 1968), do filósofo austríaco Karl
Popper (1902-1994).
SOBRE AMIGOS & AMIZADE – Você
se sente um homem só? Do ponto de vista amoroso, encontrei Lúcia [...] Mas, diante do resto do mundo, sou um homem
maravilhosamente só. Uma vez fiquei gravemente doente, doente para morrer. Recebi
em três meses de agonia três visitas, uma por mês. Note-se que minha doença foi
promovida em primeiras páginas. Aí eu sofri na carne e na alma esta verdade
intolerável: o amigo não existe. [...]. Trechos da entrevista realizada por
Clarice Lispector com Nelson Rodrigues, extraído da obra Clarice Lispector: entrevistas (Rocco, 2007).
O NASCIMENTO & O FUTURO DA CRIANÇA – [...] - O que é?, pergunta o velho. Menino ou
menina? – Menino, menino, gritou a parteira. R wur mrnino! Tem seis dedos e
nasceu virado! [...] Em primeiro
lugar, falemos dos traços dessa infeliz criança. Ele terá bons dentes, mas
muito largos e espaçados. Suponho que vocês saibam o que isso significa. O menino
será devasso e pródito. Talvez, também, mentiroso. É difícil reconhecer tudo
isso com precisão, com todos esses buracos entre os dentes. Eles podem
pressagiar uma dessas coisas, ou todas as três ao mesmo tempo. – E os seis
dedos, pandit? – Um sinal pavoroso, não é mesmo? Tudo o que posso aconselhar é
que o mantenham longe das árvores e da água. Sobretudo da água. [...].
Trecho extraído da obra Uma casa para o Sr. Biswas (Companhia das Letras,
2010), do escitor britânico nascido em Trinidad e Tobago, Prêmio Nobel de 2001,
Vidiadhar Surajprasad Naipaul. Veja mais aqui.
DOIS POEMAS – CONHECIDO
DA NOITE – Da noite sou conhecido / sob a chuva vou e venho / além das luzes
que tenho ido. / Visto os tristes becos tenho. / Mas, sem ver, passo o rondante
/ fechado em seu sobrecenho. / Paro, e para o passo errante. / Quando
interrompido grito / vem de outra rua distante / não para chamar-me ou aflito /
dar adeus. No ceu, polido / relógio, o tempo descrito / tem, sem bo, nem mau,
sentido. / Da noite sou conhecido. FOGO E GELO – Alguns dizem que o mundo acaba
em fogo / outros dizem que em gelo acabará / pelo que do desejo já provei /
favoreço a versão da ignescência. / Mas se houver de acabar-se duas vezes / eu
penso conhecer o ódio bastante / para afirmar que nessa destruição / o gelo
também serve / e é mesmo suficiente. Poemas do poeta estadunidense Robert Frost (1874-1963).
A ARTE DE ANA LUIZA REGO
A arte
da artista visual Ana Luiza Rego.
&
A
lição de cada amanhecer, Lendas da
Amazônia, a música de Anne Schneider, Edla Fonseca, a arte de Alice Soares
& a escultura de Lorenzo Quinn aqui.