EPIFANIA
TRUCULENTA DO BIRITOALDO – Biritoaldo não
acertava uma. Naquele dia, entre uma golada e outra lapada, clariou as ideias:
a cachaça obra generosidades. Uma mosca voava e foi justo cair para morrer afogada
no copo de aguardente. Teve pena. Providentemente, de um salto salvou-la. Encheu-se
de heroísmo. Quis mostrar pros outros, ninguém deu trela, só beiços puxados de
reprovação na leseira dele. Bem que eu poderia ser salva-vidas, nos afogamentos
do riacho, nos tanques fundos de água, nas cacimbas, nos banhos de rios, praia
não que é muito longe. Pois é, podia ser, né? Podia. Antes teria de aprender a
nadar, evidentemente, não sabia. Ah, é só saber mexer os braços e as pernas,
resolvido. Procurou se inteirar: técnicas de respiração, ôxe, moleza. Não era. Massagens
cardíacas? É só dar uns alisados com sopapos na caixa dos peitos, pronto,
feito. Nada disso. Agilidade nas ações de prevenção, hein? Lascou! Entrevado como
era, um traste. Um segundo e babau. Um segundo? Tá difícil, mas vou praticar. E
foi. Saía dum lado a outro de uma margem a outra do rio, pra cima e pra baixo, caçando
vítimas. Ué, parece mais que ninguém morre por aqui, ora. Um dia, dois, três e
nada. Só se eu começar a salvar os peixes! De quê? Mergulhou, não sabia da
infestação de piranhas. Hum! A primeira deu-lhe uma mordida nos colhões dele
ver estrelas. Aí não teve partes do corpo que não tivesse dentadas delas. Vôte!
De tão inchado ficou irreconhecível. Ao passar pelas ruas, as crianças só:
Bicho feio! Bicho feio! Voltar ali, não dava, nunca mais. Foi pro riacho e logo
viu um pato se debatendo, foi lá e o mundo escureceu com o grasnado de gansos. Era
hora de se salvar e nem deu conta de que se aproximava de um jegue nas
proximidades. Foi. Levou um coice de ficar desacordado por dias. E quando
voltou não sabia onde estava nem mesmo quem era. Pronto. Melhor praticar num
aquário, melhor não. Abandonou a carreira sonhada de super-herói. Queria fazer
o melhor de si, não tinha jeito, era sempre arrastado pelo cabresto do azar, vencido
pelas surpresas, destrambelhado. Sonhos, tudo pelos ares. Bom humor e fome ou
sono, não combinam. Onde a sorte da sua vida? Só podia estar escondida em algum
lugar: no cu da vida dele, reclamava. Apesar da ideia curta, da escassa
inteligência desastrada, sabia que as guerras nasciam no coração humano,
apenas, e não podia ser maior que seu próprio tamanho. Enquanto sonhava com as
almofadas de seda do Alcorão, arrodeado de belas e nuas donzelas dos olhos de
misteriosas pétalas, a sua vida era disco arranhado de imagens bufentas. Quem
era ele senão escravo do labor infindável, tedioso e cruel de todos os dias, o
pecador torturado, castigado que só, mas por quê? A maldita sorte. Maldisse a
si próprio. Quem sou eu? O que estou fazendo aqui, de onde em vim, pra onde
vou? Bateu com o quengo na parede: Tome, seu desgraçado. Começou a esmurrar o
próprio peito, revoltado consigo mesmo. Aos murros contra si próprio, eis que
do seu peito saíram pombos, borboletas, corujas, araras, passarinhos, aranhas, urubus.
Vixe! Virei mágico, foi? Só era o que faltava! Não, não era, sabia lá o que
droga foi que aocnteceu. Sabia que o seu coração mais parecia uma bola se
debatendo aos pulos, saltando alto de querer sair pela boca. Vixe! Viu-se fora
de si, um outro: cara dum, cu de outro, quem não ganhar é gafanhoto. E levou um
bofetão dele mesmo: salafrário! E revidou, quebrou dois dentes. Punhos, munhecas
e muques na contenda. Movido por um ódio terrível na bravata, fez força e se
enfrentou sob furores de trovões e relâmpagos, em selvagem combate. Agarrou-se
ao pescoço do adversário que era ele mesmo e viu-se desfalecer, queria
aniquilar e pôr fim na luta mortal, quase mata, ou seja, na verdade, quase
morre. Ué, lutei contra mim mesmo, foi? O outro era eu! Que doidice! Foi aí que
a sua alma virou pássaro e saiu voando. Ele aterrorizou-se ao se deparar com o
escaravelho, a balança e a pedra, não soube o que dizer. Que droga é nove, hem?
Não sabia e só se sentia um imprestável girando na roda do renascimento pelo
fluxo da existência. Do Livro dos Mortos: o que você quer ser: um cinzeiro, um
seixo, uma andorinha, o quê? Sou aquilo que penso e faço: uma titica catingosa,
uma catota nojenta, uma pereba remelenta, um vômito da miséria, uma gangrena
mortal, um inchaço purulento, uma ameba no instestino do universo, de serventia
alguma. De tanto se autoimolar deu-se a metamorfose: tornou-se uma barata
asquerosa fugindo de sapatos e escorpiões. Correu, fugiu, sumiu. Cadê eu? Perdeu-se
de si. Sacou que sua alma havia transmigrado para um tolote de bosta. Eita! Salvei-me,
pelo menos. Será? Ah, nem morri e virei merda povoada por moscas e mosquitos. Se
não prestava, agora é que deu mesmo. Aceitava a sua ruína, nem servia nem pro
lixo, quanto mais para troco. Era dia dos santos inocentes: e eu que pago o
pato. Enjeitado do mundo, ele se perdeu no pesadelo da sua vida. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá prévia do
Revellon de Ano Novo com especiais de show ao
vivo de frevos com Elba Ramalho & Vassourinhas,
Ninho de Vespa & Passo de anjo com Spok Frevo & muito mais! Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA - [...] Existem diversas filosofias ou concepções de mundo e sempre se faz
escolha entre elas. Como ocorre esta escolha? É esta escolha um fato puramente
intelectual, ou é um fato mais complexo? E não ocorre frequentemente que entre
o fato intelectual e a norma de conduta exista uma contradição? Qual será,
então, a verdadeira concepção do mundo: a que é logicamente afirmada como fato
intelectual, ou a que resulta da atividade real de cada um, que está implícita,
na sua ação? E já que a ação é sempre uma ação política, não se pode dizer que
a verdadeira filosofia de cada um se acha inteiramente contida na sua política?
[...]. Trecho extraído da obra Concepção
dialética da história (Civilização Brasileira, 1978), do filósofo, cientista político e
comunista italiano, Antonio Gramsci (1891-1937). Veja mais aqui e aqui.
CULTURA PÓS-MODERNA – [...] duas vertentes, a do surgimento do
pós-modernismo a partir do modernismo e a do aparecimento da pós-modernidade a
partir da modernidade, seguem caminhos adjacentes, que por vezes se cruzam, mas
outras divergem entre si de maneiras significativas. [...] A comunicação de massa transferiria a vivência
no real para a vivência no signo. Portanto, a cultura pós-moderna seria a cultura
do simulacro. [...] A economia da
cultura de massas, longe de exigir o congelamento das experiências humanas
livremente contingentes em formas comerciáveis, promove conscientemente essas
formas de intensidade transitória, visto que, no final, é muito mais fácil controlar
e estimular a demanda de experiências espontaneamente (que de espontâneas, é
claro, nada têm) sentidas como fora da representação. Do rock ao turismo, da
televisão à educação, os imperativos publicitários e a demanda de consumo já
não tratam de bens, mas de experiências. [...] a cultura capitalista contemporânea, longe de depender da incessante
replicação dos mesmos produtos, na verdade alimenta as energias dissidentes de
formas culturais marginais ou oposicionistas [...]. Trechos extraídos da obra Cultura
pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo (Loyola, 1993), do professor e estudioso britânico Steven Connor.
UMA MULHER QUE PASSOU – Era uma mulher. Uma dessas mulheres de começo de verão, que passam num
vestido justo, de cores vivas, sapato alto aberto em tiras e os cabelos soltos.
Fiquei a admirar-lhe o passo despreocupado, o leve mexer dos quadris, em nada
exagerado. Súbito me comoveu. Por que não sei. Mas há de ser sempre assim.
Algumas mulheres nos surpreendem, muitas nos encantam e poucas – entre tantas –
nos comovem. De algumas mulheres ficam
lembranças. Lembranças vagas, muitas vezes insuspeitadas e que não são
necessariamente da mulher que mais amamos ou de outra por quem nos apaixonamos
perdidamente – digamos – por uma semana. Nada existe de lógico nisso e muito
menos de justo, porque ao homem não é dado nenhum poder sobre a memória, nem
tampouco qualquer controle sobre suas sutilizas. Assim estamos redimidos
perante a própria consciência. Não somos culpados de que nada, particularmente,
nos faça recordar aquela a quem dedicamos um carinho maior e do qual nos
orgulhamos; enquanto que outra, para a qual fomos menos afetivos, ficou para
sempre num perfume, num som ou numa imagem. Para aquela namorada – furiosamente
namorada em Teresópolis – ficou um apito de trem. A manhã fria da serra, quando
atravessei a pracima rumo à estação, para uma despedida que sabia definitiva,
poderia ter ficado para identificá-la na memória. Mas o que ficou foi o apito
do trem, quando lentamente o comboio pôs-se em movimento e ela disfarçou as
lágrimas com um sorriso triste. Sei disso porque – tantos anos depois! – estava
passeando a cavalo pelis campos da fazenda quando um apito de trem me chamou a
atenção. Vinha sozinho e alegre, todo voltado para a quietude e a beleza das
paineiras, mas bastou que o trem apitasse lá longe, do outro lado do rio, para
que no meu pensamento ela se fizesse tão nítida e tão fresca. Era como se ainda
na véspera nós estivéssemos sentados juntos, na amurada da varanda, a dizer-nos
coisas que depois não cumpriríamos. Foi aí que percebi: para sempre a sua
lembrança estaria ligada ao apito distante de um trem. Onde quer que eu esteja,
daqui a muitos anos, mesmo que ela não exista mais, voltará a viver no meu
pensamento, com a nitidez que o tempo não vencerá. São coisas. E são
inexplicáveis. Como a mulher que passou e súbito me comoveu. E a quem interessa
uma resposta, quando lhe basta a sinceridade da emoção? Lá vai a moça
balançando os cabelos cortados na altura da nuca, a cada passo. Vai
inteiramente inocente dos sentimentos que provocou. Não teria nenhum sentido
seguir ao seu lado e comunicar minha surpresa. Não teria sentido, nem seria
correto. Ela não tem culpa nenhuma. Penso que se eu pudesse ser sempre assim,
ponderado nas atitudes, doíam menos em mim as pequenas lembranças de que falei.
Tudo pesado e bem medido, pouca esperança havia de que dela não ficasse alguma
coisa na memória, para doer muito tempo depois, quando já mais nada houvesse da
emoção de hoje. Foi bom que ela sumisse na esquina e eu a deixasse ir sem um
gesto, uma tentativa de – pelo menos – fazer-lhe sentir o bem que me fez, vê-la
passar. Foi bom ou então eu estou ficando velho. Extraído da obra A casa demolida (Agir, 2007), do
escritor, radialista, jornalista e compositor Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta, 1923-1968), Veja mais aqui,
aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
DOIS POEMAS – Doces rios e canaviais da minha
infância: Doces e belos rios ;/
Una, Panelas e Pirangi / onde nadei com meus sonhos / ouvindo canários,
rolinhas, curiós e juritis. / Nas matas viam-se pacas, capivaras e tatus / nos
céus gaviões, sabiás e lambus / como era lindo ver a revoada de outros pássaros
/ quando os trens passavam pelos bambus. / Ainda corre em meu coração / rios de
saudade / que vão aguando memoráveis lembranças / da minha infância e mocidade.
/ Aquele bueiro, ainda apita dentro de mim / aquele saudoso trem, ainda me faz
viajar no tempo / naqueles rios, navego em recordações / por verdes matagais /
mato brilhante dos meus eternos canaviais. A lua e o poeta: A magia da lua / que tanto inspira o amar
/ e sempre está nua / esperando uma roupa de um poeta com seu rimar. / Lua de
todas as noites / lua guia dos apaixonados / lua dos caçadores e pescadores /
lua alma dos poetas inspirados. / Lua nova, cheia, ou minguante / lua dos rios,
das marés, dos mares e dos bares / lua dos Joãos, das Marias e de todos os
nomes / que são rimas para a poesia / lua nova, cheia ou minguante, lua de
todos amantes. / Lua eterna morada do poeta / oxigênio do orquidário das
poéticas do amor / onde se imortalizam poeticamente a crença e a razão / jardim
enluarado da casa do poeta-coração. Poemas do professor, psicólogo e poeta Marcos Carneiro, pós-graduado em Saúde
Pública, doutorando em Psicologia.
A FOTOGRAFIA DE PATRIZIA
SAVARESE
A arte da fotógrafa italiana Patrizia Savarese.
Veja mais:
As presepadas de Tolino & Bestinha
aqui.
A literatura de Manuel Puig aqui.
A literatura de Susan Sontag aqui.
&
A ARTE DE KENNEY
MENCHER
A arte do pintor, escritor e professor estadunidense Kenney Mencher.