A arte
do artista estadunidense
ELA JABUTICABEIRA - É ela, sempre ela, delícia das mirtáceas
do tupi que colhi na Mata Atlântica: nua, linda, desejada. Colho nela todas as
frutas em botão do seu tronco liso que não é só da primavera e verão, é minha
em toda estação, pronta para me empanturrar de tudo que dela emana e ao meu
dispor sempre, como a geleia que me enche a boca d’água, como o suco para matar
minha sede estival, o licor que me embriaga docemente e o vinho que me faz o
mundo rodar em seus flancos e geografia, a aguardente que assalta e me faz
afoito por todo seu território. É o meu pomar doméstico, dela colho todo
deleite e chá para me curar. Ela meu festival de Sabará para a colheita de todos
os atributos de sua floração pro aconchego, toda úmida. Para mim seus braços
são galhos aprazíveis, seu tronco uma formosura, ela é farta e me aproveito,
faço de pouca e me falta a todo instante: engulo tudo que é caroço dela nas
mamas, nas ancas, no púbis, quero é ficar de barriga cheia e nela eu quero é regar
todo dia e o dia todo, ora se vou, só vou dela largar quando a galinha criar
dente. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e
aqui.
DITOS & DESDITOS - Nos
arquivos da polícia secreta nada se perde. É verdade que o número de pessoas
que têm acesso a eles é extremamente limitado. Mas, acredite, não há lugar mais
seguro para guardar alguma coisa. Nada nunca se perde lá. Além disso, é o lugar
onde a verdade histórica é preservada. Pensamento da premiada escritora
russa Liudmila Ulitskaia. Veja mais
aqui.
ALGUEM FALOU: Na
minha opinião, escrever e comunicar significa ser capaz de fazer qualquer
pessoa acreditar em qualquer coisa. Pensamento do escritor franco-mauriciano e Prêmio Nobel de Literatura de 2008, Jean-Marie Gustave Le Clezio. Veja mais
aqui & aqui.
HISTÓRIA & CONSCIÊNCIA DE CLASSE - [...] A
consciência de classe é, considerada abstrata e formalmente, ao mesmo tempo uma
inconsciência de sua própria situação econômica histórica e social, determinada
de conformidade com a classe. [...]. Trecho extraído da obra Consciência de
classe (PCUS, 1960), do filósofo, crítico literário e teórico marxista húngaro Georg
Lukács (1885-1971). Veja mais aqui.
CARTAS PERSAS [...] “Por toda a parte vejo homens
que sem cessar falam de si mesmos; as conversações deles são um espelho que
sempre retrata a sua impertinente cara. Falam das mais pequenas coisas que lhe
sucederam, e querem que a eficácia com que as pintam, as engrandeça aos olhos
alheios; tudo fizeram eles, tudo viram, tudo disseram e tudo pensaram; são
modelo universal, matéria inesgotável de comparações, inextinguível fonte de
exemplos. Oh, que desenxabida coisa é o louvor que recai no lugar donde
parte!”. [...]. Trecho extraído da
obra Cartas Persas (Itatiaia, 1960), do filósofo, político e
escritor francês Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de
Montesquieu, conhecido como Montesquieu (1689-1755), que foi publicada
anonimamente em 1721, com um relato ficcional sobre a temporada francesa de
dois amigos persas, Rica e Usbek, durante o reinado de Luís XIV, criticando a
sociedade, costumes e instituições políticas de seu país com liberdade. Trata-se,
portanto, de uma compilações de textos como um relato imaginário em forma
epistolar espirituosa e irreverente, tornando-se um verdadeiro manual do
Iluminismo. Veja mais aqui & aqui.
A arte
do artista estadunidense
João Melchiades da Silva
Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso
Que levantou vôo na Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso.
Residia na Turquia
Um viúvo capitalista
Pai de dois filhos solteiros
O mais velho João Batista
Então o filho mais novo
Se chamava Evangelista.
O velho turco era dono
Duma fábrica de tecidos
Com largas propriedades
Dinheiro e bens possuídos
Deu de herança a seus filhos
Porque eram bem unidos.
Depois que o velho morreu
Fizeram combinação
Porque o tal João Batista
Concordou com o seu irmão
E foram negociar
Na mais perfeita união.
Um dia João Batista
Pensou pela vaidade
E disse a Evangelista:
- Meu mano eu tenho vontade
de visitar o estrangeiro
se não te deixar saudade.
- Olha que nossa riqueza
se acha muito aumentada
e dessa nossa fortuna
ainda não gozei nada
portanto convém qu'eu passe
um ano em terra afastada.
Respondeu Evangelista:
- Vai que eu ficarei
regendo os negócios
como sempre eu trabalhei
garanto que nossos bens
com cuidado zelarei.
- Quero te fazer um pedido:
procure no estrangeiro
um objeto bonito
só para rapaz solteiro;
traz para mim de presente
embora custe dinheiro
João Batista prometeu
Com muito boa intenção
De comprar um objeto
De gosto de seu irmão
Então tomou um paquete
E seguiu para o Japão.
João Batista no Japão
Esteve seis meses somente
Gozando daquele império
Percorreu o Oriente
Depois voltou para a Grécia
Outro país diferente.
João Batista entrou na Grécia
Divertiu-se em passear
Comprou passagem de bordo
E quando ia embarcar
Ouviu um grego dizer
Acho bom se demorar.
João Batista interrogou:
- Amigo fale a verdade
por qual motivo o senhor
manda eu ficar na cidade?
Disse o grego: - Vai haver
Uma grande novidade.
- Mora aqui nesta cidade
um conde muito valente
mais soberbo do que Nero
pai de uma filha somente
é a moça mais bonita
que há no tempo presente
- É a moça em que eu falo
Filha do tal potentado
O pai tem ela escondida
Em um quarto de sobrado
Chama-se Creuza e criou-se
Sem nunca ter passeado.
- De ano em ano essa moça
bota a cabeça de fora
para o povo adorá-la
no espaço de uma hora
para ser vista outra vez
tem um ano de demora.
O conde não consentiu
Outro homem educá-la
Só ele como pai dela
Teve o poder de ensiná-la
E será morto o criado
Que dela ouvir a fala.
Os estrangeiros têm vindo
Tomarem conhecimento
Amanhã quando ela aparece
No grande ajuntamento
É proibido pedir-se
A mão dela em casamento.
Então disse João Batista
- Agora vou me demorar
pra ver essa condessa
estrela desse lugar
quando eu chegar à Turquia
tenho muito o que contar.
Logo no segundo dia
Creuza saiu na janela
Os fotógrafos se vexaram
Tirando o retrato dela
Quando inteirou uma hora
Desapareceu a donzela.
João Batista viu depois
Um retratista vendendo
Alguns retratos de Creuza
Vexou-se e foi dizendo:
- Quanto quer pelo retrato
porque comprá-lo pretendo.
O fotógrafo respondeu:
- Lhe custa um conto de réis
João Batista ainda disse:
- Eu compro até por dez
se o dinheiro não der
empenharei os anéis.
João Batista voltou
Da Grécia para a Turquia
E quando chegou em Meca
Cidade em que residia
Seu mano Evangelista
Banqueteou o seu dia.
Então disse Evangelista:
- Meu mano vá me contando
se viste coisas bonitas
onde andaste passeando
o que me traz de presente
vá logo entregando.
Respondeu João Batista:
- Para ti trouxe um retrato
de uma condessa da Grécia
moça que tem fino trato
custou-me um conto de réis
ainda achei muito barato.
Respondeu Evangelista
Depois duma gargalhada:
- Neste caso meu irmão
pra mim não trouxe nada
pois retrato de mulher
é coisa bastante usada.
- Sei que tem muitos retratos
mas como o que eu trouxe não
vais agora examiná-lo
entrego em tua mão
quando vires a beleza
mudará de opinião.
João Batista retirou
O retrato de uma mala
Entregou ao rapaz
Que estava de pé na sala
Quando ele viu o retrato
Quis falar tremeu a fala.
Evangelista voltou
Com o retrato na mão
Tremendo quase assustado
Perguntou ao seu irmão
Se a moça do retrato
Tinha aquela perfeição.
Respondeu João Batista
- Creuza é muito mais formosa
do que o retrato dela
em beleza é preciosa
tem o corpo desenhado
por uma mão milagrosa.
João Batista perguntou
Fazendo ar de riso:
- Que é isso, meu irmão
queres perder o juizo?
Já vi que este retrato
Vai te causar prejuizo.
Respondeu Evangelista
- Pois meu irmão eu te digo
vou sair do país
não posso ficar contigo
pois a moça do retrato
deixou-me a vida em perigo.
João Batista falou sério:
- Precipício não convém
de que te serve ir embora
por este mundo além
em procura de uma moça
que não casa com ninguém.
- Teu conselho não me serve
estou impressionado
rapaz sem moça bonita
é um desaventurado
se eu não me casar com Creuza
findo meus dias enforcado.
- Vamos partir a riqueza
que tenho a necessidade
dá balanço no dinheiro
porque eu quero a metade
o que não posso levar
dou-te de boa vontade.
Deram o balanço no dinheiro
Só três milhões encontraram
Tocou dois a Evangelista
Conforme se combinaram
Com relação ao negócio
Da firma se desligaram.
Despediu-se Evangelista
Abraçou o seu irmão
Chorando um pelo outro
Em triste separação
Seguindo um para a Grécia
Em uma embarcação.
Logo que chegou na Grécia
Hospedou-se Evangelista
Em um hotel dos mais pobres
Negando assim sua pista
Só para ninguém saber
Que era um capitalista.
Ali passou oito meses
Sem se dar a conhecer
Sempre andando disfarçado
Só para ninguém saber
Até que chegou o dia
Da donzela aparecer.
Os hotéis já se achavam
Repletos de passageiros
Passeavam pelas praças
Os grupos de cavalheiros
Havia muito fidalgos
Chegado dos estrangeiros.
As duas horas as tarde
Creuza saiu à janela
Mostrando a sua beleza
Entre o conde e a mãe dela
Todos tiraram o chapéu
Em continência à donzela.
Quando Evangelista viu
O brilho da boniteza
Disse: - Vejo que meu mano
Quis me falar com franqueza
Pois esta gentil donzela
É rainha de beleza.
Evangelista voltou
Aonde estava hospedado
Como não falou com a moça
Estava contrariado
Foi inventar uma idéia
Que lhe desse resultado.
No outro dia saiu
Passeando Evangelista
Encontrou-se na cidade
Com um moço jornalista
Perguntou se não havia
Naquela praça um artista.
Respondeu o jornalista:
- Tem o doutor Edmundo
na rua dos Operários
é engenheiro profundo
para inventar maquinismo
é ele o maior do mundo.
Evangelista entrou
Na casa do engenheiro
Falando em língua grega
Negando ser estrangeiro
Lhe propôs um bom negócio
Lhe oferecendo dinheiro.
Assim disse Evangelista:
- Meu engenheiro famoso
primeiro vá me dizendo
se não é homem medroso
porque eu quero custar
um negócio vantajoso
Respondeu-lhe Edmundo
- Na arte não tenho medo
mas vejo que o amigo
quer um negócio em segredo
como precisa de mim
conte-me lá o enredo.
- Eu amo a filha do conde
a mais formosa mulher
se o doutor inventar
um aparelho qualquer
que eu possa falar com ela
pago o que o senhor quiser.
- Eu aceito o seu contrato
mas preciso lhe avisar
que eu vou trabalhar seis meses
o senhor vai esperar
é obra desconhecida
que agora vou inventar.
- Quer o dinheiro adiantado?
Eu pago neste momento
- Não senhor, ainda é cedo
quando terminar o invento
é que eu digo o preço
quanto custa o pagamento.
Enquanto Evangelista
Impaciente esperava
O engenheiro Edmundo
Toda noite trabalhava
Oculto em sua oficina
E ninguém adivinhava.
O grande artista Edmundo
Desenhou nova invenção
Fazendo um aeroplano
De pequena dimensão
Fabricado de alumínio
Com importante armação.
Movido a motor elétrico
Depósito de gasolina
Com locomoção macia
Que não fazia buzina
A obra mais importante
Que fez em sua oficina.
Tinha cauda como leque
As asas como pavão
Pescoço, cabeça e bico
Lavanca, chave e botão
Voava igualmente ao vento
Para qualquer direção.
Quando Edmundo findou
Disse a Evangelista:
- Sua obra está perfeita
ficou com bonita vista
o senhor tem que saber
que Edmundo é artista.
- Eu fiz o aeroplano
da forma de um pavão
que arma e se desarma
comprimindo em um botão
e carrega doze arroba
três léguas acima do chão.
Foram experimentar
Se tinha jeito o pavão
Abriram a lavanca e chave
Encarcaram num botão
O monstro girou suspenso
Maneiro como balão.
O pavão de asas abertas
Partiu com velocidade
Coroando todo o espaço
Muito acima da cidade
Como era meia noite
Voaram mesmo à vontade.
Então disse o engenheiro:
- Já provei minha invenção
fizemos a experiência
tome conta do pavão
agora o senhor me paga
sem promover discussão.
Perguntou Evangelista:
- Quanto custa o seu invento?
- Dê me cem contos de réis
acha caro o pagamento
o rapaz lhe respondeu:
Acho pouco dou duzentos.
Edmundo ainda deu-lhe
Mais uma serra azougada
Que serrava caibro e ripa
E não fazia zuada
Tinha os dentes igual navalha
De lâmina bem afiada.
Então disse o jovem turco:
- Muito obrigado fiquei
do pavão e dos presentes
para lutar me armei
amanhã a meia-noite
com Creuza conversarei.
À meia-noite o pavão
Do muro se levantou
Com as lâmpadas apagadas
Como uma flecha voou
Bem no sobrado do conde
Na cumeeira pousou.
Evangelista em silêncio
Cinco telhas arredou
Um buraco de dois palmos
Caibros e ripas serrou
E pendurado numa corda
Por ela escorregou.
Chegou no quarto de Creuza
Onde a donzela dormia
Debaixo do cortinado
Feito de seda amarela
E ele para acordá-la
Pôs a mão na testa dela.
A donzela estremeceu
Acordou no mesmo instante
E viu um rapaz estranho
De rosto muito elegante
Que sorria para ela
Com um olhar fascinante.
Então Creuza deu um grito:
- Papai um desconhecido
entrou aqui no meu quarto
sujeito muito atrevido
venha depressa papai
pode ser algum bandido.
O rapaz lhe disse: - Moça
Entre nós não há perigo
Estou pronto a defendê-la
Como um verdadeiro amigo
Venho é saber da senhora
Se quer casar-se comigo.
De um lenço enigmático
Que quando Creuza gritava
Chamando o pai dela
Então o moço passava
Ele no nariz da moça
Com isso ela desmaiava.
O jovem puxou o lenço
Ao nariz da moça encostou
Deu uma vertigem na moça
De repente desmaiou
E ele subiu na corda
Chegando em cima tirou.
Ajeitou os caibros e ripas
E consertou o telhado
E montando em seu pavão
Voou bastante vexado
Foi esconder o aparelho
Aonde foi fabricado.
O conde acordou aflito
Quando ouviu essa zuada
Entrou no quarto da filha
Desembainhou a espada
Encontrou-a sem sentido
Dez minutos desmaiada.
Percorreu todos os cantos
Com a espada na mão
Berrando e soltando pragas
Colérico como um leão
Dizendo: - Aonde encontrá-lo
Eu mato esse ladrão.
Creuza disse: - Meu pai
Pois eu vi neste momento
Um jovem rico e elegante
Me falando em casamento
Não vi quando ele encantou-se
Porque me deu um passamento.
Disse o conde: - Nesse caso
Tu já estás a sonhar
Moça de dezoito anos
Já pensando em se casar
Se aparecer casamento
Eu saberei desmanchar.
Evangelista voltou
Às duas da madrugada
Assentou seu pavão
Sem que fizesse zuada
Desceu pela mesma trilha
Na corda dependurada.
E Creuza estava deitada
Dormindo o sono inocente
Seus cabelos como um véu
Que enfeitava puramente
Como um anjo de terreal
Que tem lábios sorridentes.
O rapaz muito sutil
Foi pegando na mão dela
Então a moça assustou-se
Ele garantiu a ela
Que não eram malfazejos:
- Não tenha medo donzela.
A moça interrogou-o
Disse: - Quem é o senhor
Diz ele: - Sou estrangeiro
Lhe consagrei grande amor
Se não fores minha esposa
A vida não tem valor.
Mas Creuza achou impossível
O moço entrar no sobrado
Então perguntou a ele
De que jeito tinha entrado
E disse: - Vai me dizendo
Se és vivo ou encantado.
Como eu lhe tenho amizade
Me arrisco fora de hora
Moça não me negue o sim
A quem tanto lhe adora!
Creuza aí gritou: - Papai
Venha ver o homem agora.
Ele passou-lhe o lenço
Ela caiu sem sentido
Então subiu na corda
Por onde tinha descido
Chegou em cima e disse:
- O conde será vencido.
Ouviu-se tocar a corneta
E o brado da sentinela
O conde se dirigiu
Para o quarto da donzela
Viu a filha desmaiada
Não pode falar com ela.
Até que a moça tornou
Disse o conde: - É um caso sério
Sou um fidalgo tão rico
Atentado em meu critério
Mas nós vamos descobrir
O autor do mistério.
- Minha filha, eu já pensei
em um plano bem sagaz
passa essa banha amarela
na cabeça desse audaz
só assim descobriremos
esse anjo ou satanás.
- Só sendo uma visão
que entra neste sobrado
só chega à meia-noite
entra e sai sem ser notado
se é gente desse mundo
usa feitiço encantado.
Evangelista também
Desarmou seu pavão
A cauda, a capota, o bico
Diminuiu a armação
Escondeu o seu motor
Em um pequeno caixão.
Depois de sessenta dias
Alta noite em nevoeiro
Evangelista chegou
No seu pavão bem maneiro
Desceu no quarto da moça
A seu modo traiçoeiro.
Já era a terceira vez
Que Evangelista entrava
No quarto que a condessa
À noite se agasalhava
Pela força do amor
O rapaz se arriscava.
Com um pouco a moça acordou
Foi logo dizendo assim:
- Tu tens dito que me amas
com um bem-querer sem fim
se me amas com respeito
te senta juntos de mim.
Evangelista sentou-se
Pôs-se a conversar com ela
Trocando o riso esperava
A resposta da donzela
Ela pôs-lhe a mão na testa
Passou a banha amarela.
Depois Creuza levantou-se
Com vontade de gritar
O rapaz tocou-lhe o lenço
Sentiu ela desmaiar
Deixou-a com uma síncope
Tratou de se retirar.
E logo Evangelista
Voando da cumeeira
Foi esconder seu pavão
Nas folhas de uma palmeira
Disse: - Na quarta viagem
Levo essa estrangeira.
Creuza então passou o resto
Da noite mal sossegada
Acordou pela manhã
Meditava e cismada
Se o pai não perguntasse
Ela não dizia nada.
Disse o conde: - Minha filha
Parece que estás doente?
Sofreste algum acesso
Porque teu olhar não mente
O tal rapaz encantado
Te apareceu certamente.
E Creuza disse: - Papai
Eu cumpri o seu mandado
O rapaz apareceu-me
Mas achei-o delicado
Passei-lhe a banha amarela
E ele saiu marcado.
O conde disse aos soldados
Que a cidade patrulhassem
Tomassem os chapéus de
Quem nas ruas encontrassem
Um de cabelo amarelo
Ou rico ou pobre pegassem.
Evangelista trajou-se
Com roupa de alugado
Encontrou-se com a patrulha
O seu chapéu foi tirado
Viram o cabelo amarelo
Gritaram: - Esteja intimado!
Os soldados lhe disseram:
- Cidadão não estremeça
está preso a ordem do conde
e é bom que não se cresça
vai a presença do conde
se é homem não esmoreça.
- Você hoje vai provar
por sua vida responde
como é que tem falado
com a filha do nosso conde
quando ela lhe procura
onde é que se esconde.
Evangelista respondeu:
- Também me faça um favor
enquanto vou me vestir
minha roupa superior
na classe de homem rico
ninguém pisa meu valor.
Disseram: - Pode mudar
Sua roupa de nobreza
A moça bem que dizia
Que o rapaz tinha riqueza
Vamos ganhar umas luvas
E o conde uma surpresa.
Seguiu logo Evangelista
Conversando com o guarda
Até que se aproximaram
Duma palmeira copada
Então disse Evangelista:
- Minha roupa está trepada.
E os soldados olharam
Em cima tinha um caixão
Mandaram ele subir
E ficaram de prontidão
Pegaram a conversar
Prestando pouca atenção.
Evangelista subiu
Pôs um dedo no botão
Seu monstro de alumínio
Ergueu logo a armação
Dali foi se levantando
Seguiu voando o pavão.
E os soldados gritaram:
- Amigo, o senhor se desça
deixe de tanta demora
é bom que não aborreça
senão com pouco uma bala
visita sua cabeça.
Então mandaram subir
Um soldado de coragem
Disseram: - Pegue na perna
Arraste com a folhagem
Está passando na hora
De voltarmos da viagem.
Quando o soldado subiu
Gritou: - Perdemos a ação
Fugiu o moço voando
De longe vejo um pavão
Zombou de nossa patrulha
Aquele moço é o cão.
Voltaram e disseram ao conde
Que o rapaz tinham encontrado
Mas no olho de uma palmeira
O moço tinha voado
Disso o conde: - Pois é o cão
Que com Creuza tem falado.
Creuza sabendo da história
Chorava de arrependida
Por ter marcado o rapaz
Com banha desconhecida
Disse: - Nunca mais terei
Sossego na minha vida.
Disse Creuza: - Ora papai
Me prive da liberdade
Não consente que eu goze
A distração da cidade
Vivo como criminosa
Sem gozar a mocidade.
- Aqui não tenho direito
de falar com um criado
um rapaz para me ver
precisa ser encantado
mas talvez ainda eu fuja
deste maldito sobrado.
- O rapaz que me amou
só queria vê-lo agora
para cair nos seus pés
como uma infeliz que chora
embora que eu depois
morresse na mesma hora.
- Eu sei que para ele
não mereço confiança
quando ele vinha aqui
ainda eu tinha esperança
de sair desta prisão
onde estou desde de criança.
Às quatro da madrugada
Evangelista desceu
Creuza estava acordada
Nunca mais adormeceu
A moça estava chorando
O rapaz lhe apareceu.
O jovem cumprimentou-a
Deu-lhe um aperto de mão
A condessa ajoelhou-se
Para pedir-lhe perdão
Dizendo: - Meu pai mandou
Eu fazer-te uma traição.
O rapaz disse: - Menina
A mim não fizeste mal
Toda a moça é inocente
Tem seu papel virginal
Cerimônia de donzela
É uma coisa natural.
- Todo o seu sonho dourado
é fazer-te minha senhora
se quiseres casar comigo
te arrumas e vamos embora
senão o dia amanhece
e se perde a nossa hora.
- Se o senhor é homem sério
e comigo quer casar
pois tome conta de mim
aqui não quero ficar
se eu falar em casamento
meu pai manda me matar.
- Que importa que ele mande
tropas e navios pelos mares
minha viagem é aérea
meu cavalo anda nos ares
nós vamos sair daqui
casar em outros lugares.
Creuza estava empacotando
O vestido mais elegante
O conde entrou no quarto
E dando um berro vibrante
Gritando: - Filha maldita
Vais morrer com o seu amante.
O conde rangendo os dentes
Avançou com passo extenso
Deu um pontapé na filha
Dizendo: - Eu sou quem venço
Logo no nariz do conde
O rapaz passou o lenço.
Ouviu-se o baque do conde
Porque rolou desmaiado
A última cena do lenço
Deixou-o magnetizado
Disse o moço: -Tem dez minutos
Para sairmos do sobrado.
Creuza disse: - Eu estou pronta
Já podemos ir embora
E subiram pela corda
Até que sairam fora
Se aproximava a alvorada
Pela cortina da aurora.
Com pouco o conde acordou
Viu a corda pendurada
Na coberta do sobrado
Distinguiu uma zuada
E as lâmpadas do aparelho
Mostrando luz variada.
E a gaita do pavão
Tocando uma rouca voz
O monstro de olho de fogo
Projetando os seus faróis
O conde mandando pragas
Disse a moça: - É contra nós.
Os soldados da patrulha
Estavam de prontidão
Um disse: - Vem ver fulano
Aí vai passando um pavão
O monstro fez uma curva
Para tomar direção.
Então dizia um soldado
- Orgulho é uma ilusão
um pai governa uma filha
mas não manda no coração
pois agora a condessinha
vai fugindo no pavão.
O conde olhou para a corda
E o buraco do telhado
Como tinha sido vencido
Pelo rapaz atilado
Adoeceu só de raiva
Morreu por não ser vingado.
Logo que Evangelista
Foi chegando na Turquia
Com a condessa da Grécia
Fidalga da monarquia
Em casa do seu irmão
Casaram no mesmo dia.
Em casa de João Batista
Deu-se grande ajuntamento
Dando vivas ao noivado
Parabéns ao casamento
À noite teve retreta
Com visita e cumprimento.
Enquanto Evangelista
Gozava imensa alegria
Chegava um telegrama
Da Grécia para Turquia
Chamando a condessa urgente
Pelo motivo que havia.
Dizia o telegrama:
"Creuza vem com o teu marido
receber a tua herança
o conde é falecido
tua mãe deseja ver
o genro desconhecido."
A condessa estava lendo
Com o telegrama na mão
Entregou a Evangielista
Que mostrou ao seu irmão
Dizendo: - Vamos voltar
Por uma justa razão.
De manhã quando os noivos
Acabaram de almoçar
E Creuza em traje de noiva
Pronta para viajar
De palma, véu e capela
Pois só vieram casar.
Diziam os convidados:
- A condessa é tão mocinha
e vestida de noiva
torna-se mais bonitinha
está com um buquê de flor
séria como uma rainha.
Os noivos tomaram assento
No pavão de alumínio
E o monstro se levantou-se
Foi ficando pequenino
Continuou o seu vôo
Ao rumo do seu destino.
Na cidade de Atenas
Estava a população
Esperando pela volta
Do aeroplano pavão
Ou o cavalo do espaço
Que imita um avião.
Na tarde do mesmo dia
Que o pavão foi chegado
Em casa de Edmundo
Ficou o noivo hospedado
Seu amigo de confiança
Que foi bem recompensado.
E também a mãe de Creuza
Já esperava vexada
A filha mais tarde entrou
Muito bem acompanhada
De braço com o seu noivo
Disse: - Mamãe estou casada.
Disse a velha: - Minha filha
Saíste do cativeiro
Fizeste bem em fugir
E casar no estrangeiro
Tomem conta da herança
JOÃO MELCHÍADES DA SILVA – João Melchíades Ferreira da Silva nasceu em Bananeiras-PB, aos 7 de setembro de 1869 e faleceu em João Pessoa-PB, no dia 10 de dezembro de 1933. Foi sargento do exército. Combateu na Guerra de Canudos e na questão do Acre. É autor do primeiro folheto sobre Antônio Conselheiro. João Melchíades é autor de mais de 20 folhetos, dos quais destacamos os seguintes: ROMANCE DO PAVÃO MYSTERIOZO, COMBATE DE JOSÉ COLATINO COM CARRANCA DO PIAUÍ, HISTÓRIA DE JUVENAL E LEOPOLDINA, AS QUATRO ÓRFÃS DE PORTUGAL, ROLDÃO NO LEÃO DE OURO, HISTÓRIA DO VALENTE ZÉ GARCIA, A GUERRA DE CANUDOS, PELEJA DE JOÃO MELQUÍADES COM JOAQUIM JAQUEIRA, CAZUZA SÁTIRO, O MATADOR DE ONÇAS e DESAFIO DE JOÃO MELCHÍADES COM CLAUDINO ROSEIRA, dentre outros. Num texto de Maria Lindamir Aguiar Barros: A mulher na literatura de cordel – Análise de "O pavão misterioso": romance de João Melchíades da Silva. Nos versos de João Melchíades da Silva, O pavão misterioso, a personagem feminina, Creuza, assume o papel de donzela que tem sua existência confinada ao desejo do masculino, seja ele representado pelo pai ou pelo esposo. Sem direito a companhia de outras pessoas que não estivessem ligadas ao seu círculo familiar, sem poder falar com ninguém que não fosse seu pai e sua mãe, é mantida sob forte guarda, como um objeto valioso. Creuza é conservada por seu pai à distância da sociedade, no alto da torre do palácio em que vive. Digna apenas de veneração, é apresentada ao povo, através da janela, apenas uma vez por ano. Mulher representante da nobreza. Notória é sua beleza. Ela corresponde ao protótipo de dama casta e frágil, cuja vida monástica a afasta da vida profana e a insere num plano sagrado. A virgindade é condição para que ela participe da moralidade social; sem esta ela seria uma infratora. Sua vida é uma renúncia completa, pois foi educada não para desposar quem seu pai escolhesse, mas para apenas satisfazer o desejo de posse paterno. Os sentimentos que desperta em Evangelista são puros, não paira nenhum artifício de satisfação sexual entre ambos. O casamento aparece como condição básica para que a união entre um homem e uma mulher seja consolidado perante a sociedade. O sim de Creuza a Evangelista não representa a emancipação do feminino, mas a sua subordinação a outro proprietário. No castelo ela é aprisionada pelo pai, no casamento pelo marido. A fuga do castelo não deflagra a possibilidade de uma nova vida, mas da mudança apenas do tutor, aquele que ditará novas regras que Creuza deverá seguir. A trova, portanto, sob esta perspectiva é portadora de um discurso moralizante e conservador, estabelecendo uma falsa cordialidade entre os sexos pois ela revela a exploração, a opressão e a dominação que foram alvo muitas mulheres. Mais do que a luta de Creuza pela liberdade, ela narra a disputa de dois homens pela posse de uma mulher. É um jogo de poder que mostra a imagem da mulher submissa, sacrificada. Uma narrativa que demarca os ideais masculinos num período feudal em que a mulher só tinha papel benéfico como filha obediente ou dentro do casamento. A velha dialética dominação masculina versus opressão feminina se repete. A mãe de Creuza ao viuvar não usa do poder político que poderia gozar, mas reclama a presença do genro para assumir o lugar de governante. Ela não leva em conta a possibilidade de assumir o poder sozinha, opta pelo espaço privado da vida doméstica, colaborando para manter o estado de subordinação do feminino ao masculino. Descortinar o discurso moralizador que traz no seu bojo a literatura de cordel, bem como discutir os padrões de comportamento que estratificaram certos estereótipos atribuídos à figura feminina é um dos objetivos dessa pesquisa. E nessa leitura construir-se-á um pouco da história da mulher brasileira, um campo onde há muito por se fazer, para ser descoberto. Bibliografia básica: AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. 8 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. Autores de cordel/seleção de textos e estudo crítico por Marlyse Meyer. São Paulo: Abril Educação, 1980. CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1978. LUYTEN, Joseph Maria. A literatura de cordel em São Paulo. Edições Loyola, 1981. _______. O que é literatura popular. Brasiliense, 1983. GONÇALO, Ferreira da Silva. Antologia brasileira de literatura de cordel.Rio de Janeiro, 1994. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Fundação Casa de Rui Barbosa. Fundação Universidade Regional do Nordeste. Literatura popular em verso. Antologia. Tomo II. Coleção de textos da Língua Portuguesa Moderna. AGUIAR NEITZEL, Adair de. Mulheres rosianas. Dissertação de mestrado. Publicação em meio eletrônico: http://www.cce.ufsc.br/~neitzel/literatura RIBEIRO, Lêda Tâmega. Mito e poesia popular. Funarte/Instituto Nacional do Folclore. Rio de Janeiro, 1987. TAVARES JÚNIOR, Luis. O mito na literatura de cordel. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980
CLOTILDE TAVARES: “O Pavão Misterioso” é um folheto cujos “objetos misteriosos” possuem um quê de realidade, demonstrando uma vez mais que a magia é parceira e precursora da ciência. Na verdade, se pensarmos bem, o espelho de Josimar, “...magnetizado...(onde) se vê as cenas dramáticas das artistas de cinema...”, sendo inclusive chamado de “aparelho”, nada mais é do que as telas, monitores e écrans que estão presentes em nossa vida. N’O Pavão Misterioso está onipresente a tecnologia, a ciência, e uma exposição clara da mágica subjacente aos objetos. Pode-se dizer que, n’O Pavão, a Ciência assume o status da magia, realizando prodígios, apontando soluções, desenvolvendo estratégias. O pavão do título não é a ave mágica e mítica que sai de dentro de um ovo para levar o herói no seu dorso até os confins do mundo. É nada mais do que um helicóptero, um aeroplano, que pousa e decola verticalmente. É inventado a pedido do herói pelo Dr. Edmundo, um “engenheiro profundo” que reside na “Rua dos Operários”. O poeta explica com riqueza de detalhes: “O grande artista Edmundo/ Desenhou nova invenção/ Fazendo um aeroplano/ De pequena dimensão/ Fabricado em alumínio/ Com importante armação.// Movido a motor elétrico/ Depósito de gasolina/ Com locomoção macia/ Que não fazia buzina/ A obra mais importante/ Que fez em sua oficina.// Tinha a cauda como leque/ As asas como um pavão/ Pescoço, cabeça e bico/ Alavanca, chave e botão/ Voava igualmente ao vento/ Para qualquer direção.” E é o próprio inventor, que não é um mágico ou uma bruxa, mas um inventor, um engenheiro, um artista, que termina a explicação: “Eu fiz um aeroplano/ Do formato de um pavão/ Que se arma e se desarma/ Comprimindo em um botão/ E carrega doze arrobas/ Três léguas acima do chão.” É o triunfo da técnica dando suporte às soluções miraculosas. Além do pavão propriamente dito, há ainda no folheto a presença de uma serra, facilmente identificável com nossas atuais serras portáteis: “Edmundo ainda lhe deu/ Uma serra azougada/ Que serrava caibro e ripa/ Sem que fizesse zoada/ Tinha dentes de navalha/ De gume bem afiada.” Com ela, Evangelista, o herói, depois de aterrar silenciosamente com seu pavão-helicóptero na cumeeira do palácio do Conde, praticava uma abertura pela qual podia descer e contemplar a sua amada Creuza. Ao aparecer o feroz Conde, pai da moça, entrava em cena o outro objeto: “Deu-lhe um lenço enigmático/ Que quando Creuza gritava/ Chamando pelo pai dela/ Aí o moço passava/ Ele no nariz da moça / Com isso ela desmaiava!” Um lenço enigmático, meu caro leitor, que nada mais devia ser do que um lenço embebido em clorofórmio, anestésico e desmaiante. Outras menções à tecnologia acontecem no folheto. Logo no início, a presença dos fotógrafos que se atropelam uns aos outros para tirar o retrato de Creuza e depois vendê-lo; a indelével “banha amarela” que a moça, meio a contragosto, mas obedecendo ao pai, passa na cabeça de Evangelista para que ele possa ser identificado depois; e mais detalhes do pavão: “Com pouco o conde acordou/ Viu a corda pendurada/ Na coberta do sobrado/ Distinguiu uma zoada/ E as lâmpadas do aparelho/ Mostrando luz variada.// E a gaita do pão/ Tocando com rouca voz...” As luzes, os faróis, e a buzina, ou a “gaita” do aparelho, em plena atividade, voando, elevando-se ao céu com o casal de amantes fugitivos. Até os aspectos técnicos da decolagem de um aparelho são mostrados, na visão dos soldados: “Os soldados da patrulha/ estavam de prontidão/ Um disse: Vem ver, Fulano/ Lá vai passando o pavão/ Veja como ele faz curva/ para tomar direção.” Finalmente, um telegrama substitui o “mensageiro” ou o “portador”, levando as notícias no final da história. (IN: http://www.cordelonline.com.br/artigos_001.html).
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