TRÍPTICO DQP –- Era
manhã e anoitecia... Imagem: arte da artista etíope Julie Mehretu & ao som de show do
violonista francês Nicolas Krassik
& Cordestinos - Era quem o menino
senão eu diante do espelho pela
primeira vez: uma esperança voava e pousou em meu peito, a alegria da infância
de todas as manhãs. E eu crescia a sorrir. Com o passar dos anos, fizeram dela
um gafanhoto predador e tornou o dia na noite do horror eterno, um minuto feito
de século de nunca acabar. Nestes últimos de dor, tirei as sandálias e pisei o
chão do quintal para a rua, abri o portão e ganhei o mundo peito aberto. Na carreira
ouvi a estadunidense escritora, Jane
Smiley, a me dizer: Uma criança protegida de todas as idéias
controversas é tão vulnerável quanto uma criança protegida de todos os germes. A infecção, quando vier
- e virá - pode sobrecarregar o sistema, seja o sistema imunológico ou o
sistema de crenças. Se nada entendia, ela insistia na primavera: Todo primeiro rascunho é perfeito, porque
tudo o que um primeiro rascunho precisa fazer é existir. E adolescia como o
pé de planta que se tornava árvore pronta para frutos brotar. E se seguia
errava e nada era melhor que aprender aos escorregões, porque ela insistia: Como a maioria dos educados, nutro uma
predileção pelos pecados do meu passado ignorante. Pleno homem feito com o
menino no coração, eu sonhava olhos abertos e mais me veria em pleno verão. Só
agora sabia o que era a infecção e o que outra vez ela disse: Um romancista tem duas vidas - uma vida de
leitura e escrita e uma vida vivida. Ele ou ela não pode ser entendido de forma alguma fora
disso. E o que
eu lia e vivia das tantas vidas com ela ao outono, previa o inverno de nada
escapar: escombros no quintal e toda redondeza. Hoje a esperança voou e piso os
destroços do meu país.
Duas noites a mais
na escuridão... - Imagem: arte do artista estadunidense Robert Rauschenberg. - Era a tragédia
instalada, sim, antevia e a meninice pulava do travesseiro como se ainda houvesse carnaval, festejos juninos e carrosséis
de natal. Não mais. Outro o cenário devastado. Procurei do outro e tentei ajudá-lo;
indiferente, não me reconhecia – era como se eu fosse estampado algoz. Ao falar
não me ouviu ou fez que não. Em mim o eco de Julia Kristeva: Só conhecemos o outro quando o amamos. O amor
é o apogeu da subjetividade. Só somos pessoas quando enfrentamos o outro, nunca
isolados. O que nos torna pessoas é o vínculo com o outro, a relação de amor. Disso sabia meu coração,
careca de saber; o outro que não e eu não era ninguém: um fantoche entre tantos
outros e não me deixavam com eles. E me negava excluído, não podia ser, mesmo
que aquela escritora chinesa, Shan Sa repetisse aos borbotões: A felicidade é algo que você sitia, é uma
batalha como um jogo de bola. Vou segurar toda a dor e apagá-la. A vida tem sua
vingança da vida. A morte prematura é o segredo da juventude eterna. E as
vi como se fossem Filhas da Dor de um tempo sombrio tão escuro delas e tantas outras torturadas, desfalecidas, esquartejadas dos
pedaços em minhas mãos e insepultas na memória de décadas. Só que eu não queria
saber da morte porque a criança pulava em meu peito, mesmo que os meus e todos
os demais me considerassem tão apenas uma paisagem desbotada.
Estava vivo, as fogueiras no coração... - Atravessei quantas
noites e a solidão, a minha fogueira no meio de tantas outras e só me diziam de
dor e sofrimento. Ficou tão difícil respirar, precisava seguir para viver. Logo,
coisa boa: alguém se aproximou e me alegrei repentinamente - como era bom o
prazer da companhia. E era Ezter Liu trazendo Breves fogueiras: Tem as que nascem azuis. As que morrem cinzas. Tem as que
morrem cedo e as que nascem antes. As que derretem lâminas. E as que mal
aquecem. Depois de um certo tempo, toda fogueira entardece. Até as mais
intensas com percussão de estalos. As cavadas no terreiro e as pousadas na
pedra. As do meio da mata. As da encosta gelada. E ao redor: a roda. E ao
redor: bandeiras. Acalentando os frios e defumando as fomes. Quentes. Ardidas. Ligeiras.
Aqui dançamos em torno de algumas breves fogueiras. E foi outra a hora porque
instalou o aroma da brisa possível, eu vivia e como, ela trouxe o que estava
perdido. Como era bom vê-la de perto, sorria eu de graça e a desconhecer o
cenário de agora, como se por um momento tudo fosse diferente e pudesse ser
feliz ali, ao seu lado. Isso me fez novamente a criança que nunca soprou nem
deixou apagar a vela de quem quer que seja das fogueirinhas andantes de Galeano,
porque eu queria brincar aos pulos e mãos nas mãos e pés por aí até nunca
chegar e a desconhecer do escárnio e das trevas escondidas lá no fundo de cada
gente esquecida de viver. Como era bom, eu podia sorrir e estar ao lado dela.
Até mais ver.