quinta-feira, junho 24, 2021

YVES BONNEFOY, ZELDA MISHKOVSKY, KAFŪ NAGAI, PLÍNIO MARCOS & CARLOS VASCONCELOS


  

TRÍPTICO DQP –- Tantos sangram na indiferença... - Ao som do concerto Espelho no espelho (2021), da Orquestra do Theatro São Pedro - No travesseiro o meu país é Stultifera Navis no desgovernado Fecamepa Coisonário, onde será que vai parar, ninguém sabe, já estamos no fundo do precipício. De lá ouço Mary McCarthy: Na violência, esquecemos quem somos. Na ciência, todos os fatos, por mais triviais ou banais que sejam, gozam de igualdade democrática. Isto meu país ignora, meu povo olvida. De repente, assim do nada, me aparece aquele filósofo austríaco suicida, o Otto Weininger (1880-1903), a me censurar pelo culto recorrente às mulheres, jogando-me na cara o seu polêmico Geschlecht und CharakterEine prinzipiellen Untersuchung (Severus, 2014): Nenhum homem que pense profundamente sobre as mulheres mantém uma opinião elevada sobre elas. Ou os homens desprezam as mulheres ou nunca pensaram seriamente a respeito delas. Hem? Ela se afasta, contorna a minha cama e fica um pouco distante, de um lado da porta do quarto. Fita-me com severidade e divido olhar entre ambos. Penso comigo: ora, como um próspero jovem judeu, no auge dos seus 23 anos, recebe seu doutoramento, torna-se cristão e publica um estudo científico-filosófico, em que distingue entre todas as coisas vivas a combinação de proporções variáveis de elementos masculinos e femininos, com denúncias que o levam a se matar, como é que pode? Ele mantém o olhar sisudo sobre mim. Neste mesmo instante vejo Wittgenstein atravessar a entrada da sala e, cabisbaixo, encosta-se à parede. Com meu olhar indago o que está havendo e ele dá de ombros: Com meu escrito não pretendo poupar aos outros o pensar. Porém, se for possível, incitar alguém aos seus próprios pensamentos. Olho para um e outro, ela está inquieta e mais quando sou surpreendido com a aproximação do dramaturgo e escritor japonês Kafū Nagai (1879-1959) que me entrega autografado o seu Histórias da Outra Margem (Estação Liberdade, 2013), a me dizer: Eu não tinha mais aonde ir. As pessoas que eu queria rever estavam todas mortas. Ele tomou pé da situação, saudou a todos com um gesto na cabeça e ancorou nela o seu olhar. Entreolhamo-nos uns aos outros e éramos então todos lídimos solitários, dividindo cada qual e ao mesmo tempo, a solidão.

 


A noite escura no espelho... - Imagens do fotógrafo Carlos Vasconcelos - Não sei quem era ao espelho, apenas seu olhar firme em mim e não era eu, isto eu sabia. Ficamos assim por um bom bocado de tempo, interrompidos pela chegada da poeta israelense Zelda Schneurson Mishkovsky (1914-1984): Eu pensei que era uma alma livre como um homem morto... E abraçou-me desamparada, deitando sua cabeça ao meu ombro. Nada mais disse e assim ficamos a desconhecer tudo ao redor. Até que se assustou com a chegada de alguém. Imediatamente, afastou-se como se me perguntasse quem era com um gesto aturdido e mãos espalmadas. Sei lá. Seguiu até a porta e cruzou olhar com a poeta Marceline Desbordes-Valmore, que a viu com ar desconfiado, mas ao me ver, apressou os passos e me abraçou apaixonadamente com um verso de sua lavra: Esta noite minhas roupas ainda estão perfumadas ... Venha e inspire em mim sua fragrância chamada. E me puxou com um beijo na escuridão.

 


Ela & Homens de papel - Ao abrir os olhos, despertando do profundo beijo, ela era outra, a Maria-Vai: Nós, todas as noites, enchemos a cara de cachaça. É o jeito. A vida é uma merda mesmo. Só com cachaça a gente escora... Era como se dividíssemos a cena de Dois perdidos numa noite suja, mas não era e ela retomava o seu texto: Ninguém está com a ganância pega. Nós sabe das coisas. Com trabalho ninguém se ajeita nessa merda de vida. Pra que dar duro? Pro Berrão ficar mais rico? Aqui, ó! Na verdade estávamos realmente perdidos e me beijou avidamente, enquanto se desnudava. Aí me largou, afastou-se desabotoando o sutiã para deixar seus seios rijos à mostra, acendeu o Abajur Lilás e a cobiça no meu sexo, enquanto me falava da Navalha na Carne que era a sua vida e me perguntou se eu soube a respeito do Assassinato do anão do caralho grande. Que coisa! E com um puxão me deitou sobre o seu corpo para que amássemos a noite madrugada afora, sem culpa nem fim. Deu-me a sua carne suculenta e misturamos nossas peles, lábios e sexos. Ao despertarmos fomos surpreendidos com a presença do Plínio Marcos, o repórter de um tempo mau, a nos dizer: Se eu não for sincero, estou para sempre perdido. O que foi? E ele debulhou Os dez mandamentos! Ele sabia que eu sabia há muitos anos atrás, quando eu pesquisava sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) e as peças teatrais de Hermilo Borba Filho, e o vi bem próximo do absurdo e da miséria. Foi na mesma época que o poeta francês Yves Bonnefoy (1923-2016) me disse em um verso de crepúsculo estival: Tudo isso eu vi acontecer quando minha alma explodiu em mistério e inspiração. Era tudo como se fosse num redemoinho de eventos e eu quase esqueci que esperava Pinheiros no Largo da Paz. Até mais ver.

 

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