TRÍPTICO DQP – Uma: à sombra de diferentes lugares... - Ao som de Alfonsina y el mar, do compositor argentino Ariel
Ramírez (1921-2010). – Ah, se não perdi a
memória errei o caminho, estava no fim da estrada. Sabia que ali era do
litoral, mas para onde eu me virasse só dava no canavial de um lado a outro. E
se não era miragem, havia aqui e ali um sinal de resto de oásis que dava para
matar a sede e limpar as vistas. De fato, estava perdido ou prestes. Na cabeça
martelava o frevo do amor imortal que dizia do Pontal de
Coruripe só céu e mar. De onde eu vinha, nem sabia direito, quase esquecia já
ter passado pela Lagoa do Pau e, pelo que já andei, ainda faltava muito no
destino, parece. Do que pude saber, tinha que passar por Piaçabuçu, era o que
diziam os poucos passantes solícitos que cruzavam meu trajeto. Talvez fosse
possível dar Boa noite, Penedo, cantando às margens do Velho Chico. Talvez. Antes
disso, não havia mais a faixa do asfalto. Ué? Olhei direito, não me haviam dito
que a faixa recomeçava do outro lado, depois de um pedaço de rodagem no areal.
Segui e depois de tantos passos e paisagens, um povoado. O coração bateu mais
forte, dei fé nas passadas, logo vencer a distância e passar pelas edificações
todas com suas janelas e portas abertas, procurando no interior delas um pé de
gente para remédio. Às ruas não havia a quem perguntar, acho ser ali uma
localidade fantasma. De vivo mesmo só a cana ao redor e intermitentes pés de
coco. Ou uns pedaços de taboa da entrada à saída do local. Deu-me uma sensação Rimbaud: De manhã, eu tinha o olhar tão perdido e a
postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem. Só que todos, ninguém. Acho que enlouqueci, mas não. Não, não era fantasma aquelas paragens,
já distante do lugar um menino me dissera que ali em abril ocorrera um dilúvio
de dois dias, causando muita destruição e desabrigados. Onde estão todos? Não
sei, em casa. Não vi ninguém. Ah, o povo vive entocado. Que lugar é este? Feliz
Deserto. Vi-lhe o beiço virado apontar por ali para lá longe aonde eu deveria
ir. Lembrei Bukowski: Não é morrer
que é ruim, é estar perdido que é ruim. Sim, procede.
Mais assustado
fiquei ao ouvir Mário Perniola: Não é
necessário sermos grandes viajantes para perceber que o mundo contemporâneo
oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida contraposição entre
sagrado e profano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional... Procurei girando as vistas ao redor, não havia ninguém.
Estou, deveras, perdido.
Duas: A festa do fim de ano... – Imagem: arte da escultora, gravadora e artista
visual Rosana
Monnerat. – Ali não era uma miragem. O menino brincava no oitão da
casa. Ouvimos estalidos, ou melhor, disparos. E ele: São fogos da festa! Abriu bem
os olhos de alegria e correu em desabalada para um cajueiro, subindo por seu
tronco, pés nos galhos e lá em cima, olhava para um lado e outro. Sabia que não
eram fogos de artifícios, eram tiros. E ele, mão sobre os olhos, procurava
inquieto descobrir de onde vinham. Dali a pouco ouvi uma correria e no meio
dela, uma mulher desesperada chamando por Nino! Tou aqui, mãe, olha os fogos da
festa! Desce daí menino, não é fogo de festa, desce já! Peraí, mãe, deixa eu
ver! Desce já! Outros estampidos cruzavam o ar, procurei me proteger
escondendo-me, deitado, ao lado de uma mangueira. A mulher aos gritos
deitou-se, nem deu tempo insistir pela descida do menino: ele despencou lá de
cima, entre galhos e folhas, caindo com um baque no chão, de costas, braços
abertos, jorro de sangue na testa e no peito direito. Ao meu lado, Patrícia Melo falava de Inferno: ...o pior veio depois, um silêncio longo, um nada, nem mesmo os cachorros
latiam. Agua até o nariz. É a pior parte... não há nada pior na guerra do que o
silêncio. E eu já não sabia o ponto de partida, muito menos de chegada,
tudo estava perdido.
Três: Onde o deserto feliz... - Estava desolado e caminhei a esmo, se
não perdido já havia esquecido o destino e mais ainda ao me deparar com uma
jovem que chorava à beira da estrada. Prudentemente procurei saber se precisava
de alguma coisa e ela me escorraçou aos gritos. Está bem, se precisar de alguma
coisa é só falar. Peraí. Sim? Estava desorientada, procurava por um alemão,
acho. E desabafou sobre a ruina da família, a fuga para o Recife e se desdizia
desesperada, a prostituição, a loucura do amor, o tráfico de animais, a dureza da
vida, o sofrimento. Não sabia o que fazer, ela não tinha mais que uns quinze
anos de idade e fora violentada pelo padrasto e era o que mais a repugnava, a
ponto de esmurrar meu peito e deitar a cabeça ao meu ombro aos prantos. As pessoas
apareceram e se reuniam interrogativas ao redor, nem tinha tempo de me explicar
direito, não sei se me acusavam ou se compreendiam o que estava ocorrendo. Havia
uma hostilidade no ar. Para minha salvação, ela se recompôs e era a atriz Nash Laila a me dizer: Tanta coisa… A
gente está vivendo um momento muito sensível. O mundo está muito caretão. A
gente tem que quebrar tudo, para ter um pouco de afeto. No nosso trabalho,
mexemos com fogo. Gente é uma coisa que amo e odeio. Admirado fiquei com sua desenvoltura. Era como se ela
atuasse na Valsa nº 6, do Nelson Rodrigues. Cada vez mais não sabia o que fazer. À minha
cabeça cenas, frases, desencontros, tudo desconexo, mal conseguia fazer uma
leitura do momento. O que sei, melhor dizendo, quem tem
o amor ao alcance, tem outra chance de ouvir todos os seus sentimentos para a
pluralidade real da vida. O amor ainda faz sentido hoje?
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