TRÍPTICO DQP – O que é e não mais... - Ao som do álbum Contatos
(GSP Records, 1995), da violonista, compositora, professora e pesquisadora
musical Cristina Azuma. – Nos últimos dias, como já havia vivenciado aventuras no espelho, a exemplo da experiência
inicial com os relatos de Joãodito, pensei
haver chegado a hora de uma trégua na loucura. Nada, Wang Tu apareceu assim do nada para esclarecer: Outora, o imperador Huang-ti mandou forjar
quinze espelhos. O primeiro tinha a largura de um pé e meio e simbolizava a lua
cheia. A largura dos demais ia aumentando, de um para outro, de uma polegada. O
nosso é, pois, o oitavo dos espelhos de Huang-ti. Eita! E contou-me da
família Yang que, premiada com anéis mágicos, prosperara assim do nada. Também
a de Tchang que contemplada com uma espada enfeitiçada e, ao perdê-la, também
perdeu a vida. E mais: certa noite de uma quinta de lua do ano sete de Tai-yei,
uma linda escrava o recepcionara na pousada de Tchen Yong. Achegando-se a ela e
mostrando-lhe o espelho, ela atirou-se trêmula e aos prantos para que fosse
poupada. Atendendo ao seus pedidos, ela confessou ser uma velha raposa que,
quando moça, desposou um camponês que a levou por uma vida infeliz e a
abandonou ali, por isso suplicou clemência e que a deixasse, pelo menos por
mais algumas horas, pela última vez, se embriagar entre os homens. Direito concedido,
ela começou a cantar: Viver é felicidade;
morrer não é tão lamentável assim... Então, interrompeu o canto,
cumprimentou a todos e caiu morta em forma original. Como? Sim. Assustei-me com
o relato e, ao fitá-lo, era ele Yasunari Kawabata: O tempo flui da mesma
maneira para todos os seres humanos; cada ser humano flui através do tempo de uma maneira
diferente. Talvez o sentimento do mal
tivesse ficado anestesiado, confundido com costumes e ordens sociais. Depois de sua fala, não sei
o que aconteceu: vi-me enredado por uma força que emanava do velho espelho, a
me levar por situações nunca dantes experimentadas.
Duas no espelho
de Priya – Perdido no tempo e no espaço, logo apareceu
uma mulher para me recepcionar. Era Monica
Singh, uma jovem que fora vitimada por ataque de um motoqueiro passante,
jogando-lhe ácido às suas faces. O que houve? Contou-me em detalhes: ela tinha
19 anos e um amigo que lhe queria namorar, diante de sua recusa, tramou tudo. Por
conta deste fato, tornou-se estilista e empresária, fundando a Mahendra Singh
Foudation, com o fito de trabalhar no empoderamento de mulheres sobreviventes
da violência. Reunida com Paromita Vohra e Ram Devineni, mais a ilustração de
Dan Goldman, criou a HQ Espelho de Priya, em 2014, inspirada em uma das tantas filhas do
rei Daksha, que tinha seu nome significando amada e, como qualquer mulher hindu sakti, expressava
a mãe divina Terra. A história conta de uma adolescente que foi expulsa de casa
depois de ter sido estuprada. Vagando sozinha, foi salva pela deusa e ganhou um
tigre, afora superpoderes para combater estupradores capitaneados pelo
rei-demônio tirânico Ahankar, salvando as vítimas. A segunda história é a de Anjali, que passa por situações cruéis e se revolta para luta
contra o rei endemoniado cuspidor de ácido. Ao tomar conhecimento de seu
trabalho, ela fitou-me e disse: Uma mulher
vence seus medos e descarta o ridículo, falando como uma sobrevivente e
tornando-se inspiração para milhares de mulheres na Índia que enfrentaram a
mesma experiência – uma super-heroína feminina dos dias modernos. A sua dor
fez eco dentro de mim, remexendo tudo a um ponto revoltante. Baixei a cabeça e
pensei comigo como é que é possível ter a capacidade para atos tão abomináveis.
Ao dirigir-me a ela, solidário, não mais ali e era a Barbara Bodichon: Para as mulheres, o casamento envolve uma grande mudança legal. Passou-me
um dos braços sobre meus ombros e saímos cabisbaixos, assumindo as feições de Bertha von Suttner, a me dizer frases
soltas do seu Abaixo as armas: A guerra é a
negação da evolução em todas as direções... Uma imensa ofensa cometida pelo
homem de hoje contra o homem de amanhã!... A organização militar da nossa sociedade foi
fundada sob a negação da possibilidade de paz, desprezando o valor da vida
humana e aceitando o desejo de matar... Abaixem suas armas: falem para todos, para todos! Já era tempo, eu
mesmo já havia deposto há muito todas as armas das mãos e coração. Lá longe um
brilho intenso e eu não sabia o que era.
Três
caleidoscópios e um reflexo do vazio – Imagem:
Espelho d’água, da artista
performática Lia Letícia – O que é
aquilo, um homem-espelho? Apertei a vista e se aproximava. Lá estava eu diante
do ator e artista visual Fe Vas - Felipe
Vasconcellos com o seu Reflexos: Ensaio
sobre o vazio (2013), uma proposta da pesquisa Corpos poéticos: a relação entre a obra, o espectador e o ambiente
urbano. Com a sua aproximação tentei me esquivar e me alcançou em cheio: vi-me
num Espelho d’água. Temi me afogar, mas tudo parecia uma ilusão de águas, ondas
e correntezas. Ou um Caleidoscópio: o experimental, o gesto, o lúdico,
trajetórias, experiências, similitudes, distâncias, experiências, múltiplas
visões - obras de Daniel Santiago, Gil Vicente e Marcelo Silveira. Onde estou, não sei, sigo adiante: reinvento a
vida e o mundo, se for possível viver neste genocídio, todas as formas de amar.
Até mais ver.
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