TRÍPTICO DQP – Uma: a dança no deserto da vida - Ao som de Vales – I. O vale do amor; II. O vale da dor; III. O
vale da paz, da
compositora. Regente e pianista Maria
Helena Rosas Fernandes, interpretada pela pianista Sylvia Maltese. - Gigi – na verdade, Maria Egipcíaca e só, como a sua mãe:
Maria da Conceição -, viviam uma para a outra, ouvindo a canção de uma caixinha
de música que a pequena ganhara. Gostavam da música a ponto da menina dizer:
Mamãe, quando eu crescer quero ser bailarina. E era embalada pela Cecília Meirelles: Esta menina tão
pequenina quer ser bailarina, não conhece nem dó nem ré, mas sabe ficar na
ponta do pé; não conhece nem mi nem fá, mas inclina o corpo para cá e para lá;
não conhece nem lá nem si, mas fecha os olhos e sorri roda, roda, roda com os
bracinhos no ar e não fica tonta nem sai do lugar. Põe no cabelo uma estrela e
um véu e diz que caiu do céu. Esta menina tão pequenina quer ser bailarina, mas
depois esquece todas as danças, e também quer dormir como as outras crianças. E sorria sonhando a vida a dançar. Quando completou oito anos de seu
nascimento, o pai reapareceu: estava arrependido de tudo, mudou de vida –não
mais bebia para espancá-las, nem fumava - e prometia cuidar delas, pronto que
estava para virar pastor evangélico. Foi para ele que ela contou seu efusivo
sonho, o que ganhou de cara a primeira reprovação. Nada demais, perseguiu
teimosamente seus anseios, até ser violentada pelo próprio pai no dia que
completou treze anos de idade. Reclamou para a mãe e ele: Sou santo! E todas as
noites o constrangimento dos abusos. Não aguentou e fugiu de casa. Da menina
franzina que todo mundo conhecia pela redondeza, tomou corpo e caiu na vida só
com a roupa do couro. Suas formas corporais granjeavam a cobiça dos marmanjos:
ofereciam-lhe mundos e fundos. Só não esperava que em troca, teria de
servi-los. Depois de muito, conseguiu se desgarrar da patota e foi até a igreja
pedir socorro, o padre Quiba a enxotou. Desamparada, caiu nas mãos de uma
benfeitora que lhe empregou por doméstica em sua faustosa residência e lá
serviu de refém pro marido e filhos. Deu com a língua nos dentes e foi
despejada agora com a fama de ladrona. Dormia ao relento, pelas esquinas,
pedindo esmolas a um e a outro, capturada por solitários para ser jogada na rua
no dia seguinte. Soube, então, de Clarice Lispector: O mundo já caiu, só me resta dançar sobre os destroços. A lição ficou por conta de Isadora Duncan: Se você já
foi ousada, não permita que a amansem. Dançar é sentir, sentir é sofrer, sofre
é amar… Tu amas, sofres e sentes. Dança! E dormiu e sonhou ao relento para
se perder no deserto da sua vida.
Duas: do Liber Notarum à sublevação - Ao som de Di-stances (1982), da compositora e pianista Vania Dantas Leite (1945-2018)
– Mal despertou e se
viu no Ballet de Castanhas. Era um palacete suntuoso
e, no salão, pelo visto, o Banquete das Cortesãs, digna de figurar nos dois
volumes do Liber Notarum (BUMichigan, 1906), o diário do protonotário e mestre
de cerimônia Johann Burchard (1450-1506),
que ela conheceu pessoalmente, bailando as escondidas na madrugada para suas
práticas onanistas. Ela era convocada a desfilar sensualmente seguida
por outras quarenta e nove contratadas para entreter os convidados no Morris dance. Lá para as tantas, as
velas eram retiradas dos candelabros e espalhadas pelo chão. Renovado desfile
agora para leiloar suas vestes: primeiro os vestidos, depois os bustiês, os
sapatos, as meias e cintas-ligas e, por fim, as calcinhas. Desnudadas, cada uma
delas engatinhava para apanhar castanhas. Era a hora em que os convidados se
aproximavam lúbricos para ajudá-las na colheita, com achegamentos e alisados,
redundando na cópula carnal consentida ou não. Às risadagens dos promotores, havia
prêmio para os que fossem bem sucedidos com suas parceiras. E elas? Os servos
mediam a pontuação dos orgasmos e a capacidade ejaculativa de cada convidado. Cada
detalhe devidamente anotado pelo historiador William Manchester (1922-2004), que registrava até os brinquedos
sexuais. Também a historiadora Barbara
Tuchman (1912-1989) desenvolvendo o projeto de sua publicação, o The March of
Folly: From Troy to Vietnam (Random House, 1985),
contando detalhes de tudo que ocorria por ali. Não demorou, logo apareceram os
primeiros protestos: o da bailarina francesa Mademoiselle De Lafontaine (1655-1738): Isso não é balé!
A russa Bronislava Nijinska
(1891-1972) fez coro e mais protestou. Logo os convidados exigiram do
patrocinador: Essas são estragas prazeres! As revoltosas
foram afugentadas e ela que não tinha onde cair morta, foi selecionada com
outras tantas novatas contratadas por quantias módicas para os festejos. Logo organizaram
o Dom Quixote, no qual Gigi teve de
interpretar a história de Kitri. E por várias
noites ali interpretou a Bela Adormecida, a camponesa Giselle e a cigana
Esmeralda. No meio das apresentações teve de ouvir Stacey Tookey: Não deixe o medo te
deter. Estar com medo é uma parte essencial da vida. Mas se você acredita em
seu talento, descobrirá que é a única pessoa em seu caminho. E foi puxada por Deborah Colker: Bailarino não
pode parar! Até a Anastassia
Volotchkova denunciou do Bolshoi: Há
dez anos, quando eu dançava no teatro, recebi em diversas oportunidades
propostas para me deitar com homens durante seus banquetes. Viu-se
desamparada com a sublevação das outras que foram imediatamente substituídas e
não lhe restava, mais uma vez, fugir.
Três: da Baderna à recusa do céu & inferno - Ao som de Tríplice andar (2012), da compositora e professora Denise Garcia. - Quando deu por si,
sentia-se na pele a Balada da puta de
judeus Marie Sanders e na Lenda da
puta Evelyn Roe, de Bertolt Brecht.
E ousou além da conta, até ser chamada de Maria Baderna – o que ninguém sabia da Marietta ninguém
sabia, mas era uma alusão à prima
ballerina assoluta italiana Marietta do Il Ballo delle
Fate, que desembarcara exilada no Brasil para
se tornar a musa do povo no meio de um pudico e conservador império
escravocrata que aplaudia a sua performance. Não havia como ser de outro jeito,
vivia na rua pelos festejos populares regados a álcool e sexo. O sua
performance transmitia um furor pélvico inspirado na sensualidade e ritmos de
danças africanas, não dispensando passos de lundu, cachuca ou umbigada,
aclamada pelo fervor das plateias. E pulou frevo nas ladeiras de Olinda e nas
Cirandas de Lia e maracatus, caboclinhos e guerreiros. Não se safou justo por
isso da pecha de símbolo da depravação, nem deixou de ser boicotada com tributos
às avessas. E carregou a maldição da bailarina jogada do palco em baixo, e de
se encantar pelos bandolins, e de ouvir a Germaine Greer furiosa: O ballet
é um câncer cultural! E seguiu os passos de
O despertar da primavera, de Pina Bausch; e no Cendrillon, de Maguy Marin;
e de se decidir Svetlana Zakharova: Essa é a minha
vida. E de se tornar o Cisne Negro: A única coisa
que está em seu caminho para a perfeição, é você mesma. A perfeição não está só
no controle. Também está em se deixar levar. Surpreender a si mesma e depois a
plateia. Transcendência. E poucos têm isso dentro de si. E de segurar no
braço da Marika Gidali e ouvir de Twyla Tharp: A arte é a única maneira
de fugir sem sair de casa. E de falar como Martha Graham: O corpo diz o que as palavras não podem dizer. E de se ver Sylvie
Guillem diante do espelho: Se você tem
medo de perder alguma coisa, você é dependente disso. Se você não tem medo,
então você é livre. E seguiu adiante e se cobriu com o manto de Zósimo e foi retratada na
Vita de Sofrónio; e no Li Gieues de Robin et de Marion, de Adam de la Halle; no National Dance, de Margaret Alhenby-Jaffe; de ser
Marry Gip na Volpone de Ben Jonson;
de ser a Gipsy Mary no La diosa blanca,
de Robert Graves; e n’As tentações de
Miguel Sabido; como de figurar no Retablo
ímpio de José Maria Menéndez López, num poema de Bandeira e noutro de
Cecília Meireles, em duas óperas de Ottorino Respighi e John Tavener, em figuras
de afrescos e descrita em vitrais de catedrais, enfim, em ser a descendente de
Afrodite, a deusa do amor, que ofereceu seu corpo ao capitão do navio em troca
da passagem com destino ao encontro com Jesus, falecendo no meio da viagem e ter
sua alma, por fim, recusada por Deus e pelo diabo. Enquanto peregrina não se
sabe para onde, o mundo
fecha os olhos ao genocídio.
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