quarta-feira, junho 02, 2021

CLARICE, CECILIA, BRECHT, ISADORA, COLKER, BAUSH, MARIKA, CISNE NEGRO & FREVADA

 

 

TRÍPTICO DQP – Uma: a dança no deserto da vida - Ao som de Vales – I. O vale do amor; II. O vale da dor; III. O vale da paz, da compositora. Regente e pianista Maria Helena Rosas Fernandes, interpretada pela pianista Sylvia Maltese. - Gigi – na verdade, Maria Egipcíaca e só, como a sua mãe: Maria da Conceição -, viviam uma para a outra, ouvindo a canção de uma caixinha de música que a pequena ganhara. Gostavam da música a ponto da menina dizer: Mamãe, quando eu crescer quero ser bailarina. E era embalada pela Cecília Meirelles: Esta menina tão pequenina quer ser bailarina, não conhece nem dó nem ré, mas sabe ficar na ponta do pé; não conhece nem mi nem fá, mas inclina o corpo para cá e para lá; não conhece nem lá nem si, mas fecha os olhos e sorri roda, roda, roda com os bracinhos no ar e não fica tonta nem sai do lugar. Põe no cabelo uma estrela e um véu e diz que caiu do céu. Esta menina tão pequenina quer ser bailarina, mas depois esquece todas as danças, e também quer dormir como as outras crianças. E sorria sonhando a vida a dançar. Quando completou oito anos de seu nascimento, o pai reapareceu: estava arrependido de tudo, mudou de vida –não mais bebia para espancá-las, nem fumava - e prometia cuidar delas, pronto que estava para virar pastor evangélico. Foi para ele que ela contou seu efusivo sonho, o que ganhou de cara a primeira reprovação. Nada demais, perseguiu teimosamente seus anseios, até ser violentada pelo próprio pai no dia que completou treze anos de idade. Reclamou para a mãe e ele: Sou santo! E todas as noites o constrangimento dos abusos. Não aguentou e fugiu de casa. Da menina franzina que todo mundo conhecia pela redondeza, tomou corpo e caiu na vida só com a roupa do couro. Suas formas corporais granjeavam a cobiça dos marmanjos: ofereciam-lhe mundos e fundos. Só não esperava que em troca, teria de servi-los. Depois de muito, conseguiu se desgarrar da patota e foi até a igreja pedir socorro, o padre Quiba a enxotou. Desamparada, caiu nas mãos de uma benfeitora que lhe empregou por doméstica em sua faustosa residência e lá serviu de refém pro marido e filhos. Deu com a língua nos dentes e foi despejada agora com a fama de ladrona. Dormia ao relento, pelas esquinas, pedindo esmolas a um e a outro, capturada por solitários para ser jogada na rua no dia seguinte. Soube, então, de Clarice Lispector: O mundo já caiu, só me resta dançar sobre os destroços. A lição ficou por conta de Isadora Duncan: Se você já foi ousada, não permita que a amansem. Dançar é sentir, sentir é sofrer, sofre é amar… Tu amas, sofres e sentes. Dança! E dormiu e sonhou ao relento para se perder no deserto da sua vida.

 


Duas: do Liber Notarum à sublevação - Ao som de Di-stances (1982), da compositora e pianista Vania Dantas Leite (1945-2018) – Mal despertou e se viu no Ballet de Castanhas. Era um palacete suntuoso e, no salão, pelo visto, o Banquete das Cortesãs, digna de figurar nos dois volumes do Liber Notarum (BUMichigan, 1906), o diário do protonotário e mestre de cerimônia Johann Burchard (1450-1506), que ela conheceu pessoalmente, bailando as escondidas na madrugada para suas práticas onanistas. Ela era convocada a desfilar sensualmente seguida por outras quarenta e nove contratadas para entreter os convidados no Morris dance. Lá para as tantas, as velas eram retiradas dos candelabros e espalhadas pelo chão. Renovado desfile agora para leiloar suas vestes: primeiro os vestidos, depois os bustiês, os sapatos, as meias e cintas-ligas e, por fim, as calcinhas. Desnudadas, cada uma delas engatinhava para apanhar castanhas. Era a hora em que os convidados se aproximavam lúbricos para ajudá-las na colheita, com achegamentos e alisados, redundando na cópula carnal consentida ou não. Às risadagens dos promotores, havia prêmio para os que fossem bem sucedidos com suas parceiras. E elas? Os servos mediam a pontuação dos orgasmos e a capacidade ejaculativa de cada convidado. Cada detalhe devidamente anotado pelo historiador William Manchester (1922-2004), que registrava até os brinquedos sexuais. Também a historiadora Barbara Tuchman (1912-1989) desenvolvendo o projeto de sua publicação, o The March of Folly: From Troy to Vietnam (Random House, 1985), contando detalhes de tudo que ocorria por ali. Não demorou, logo apareceram os primeiros protestos: o da bailarina francesa Mademoiselle De Lafontaine (1655-1738): Isso não é balé! A russa Bronislava Nijinska (1891-1972) fez coro e mais protestou. Logo os convidados exigiram do patrocinador: Essas são estragas prazeres! As revoltosas foram afugentadas e ela que não tinha onde cair morta, foi selecionada com outras tantas novatas contratadas por quantias módicas para os festejos. Logo organizaram o Dom Quixote, no qual Gigi teve de interpretar a história de Kitri. E por várias noites ali interpretou a Bela Adormecida, a camponesa Giselle e a cigana Esmeralda. No meio das apresentações teve de ouvir Stacey Tookey: Não deixe o medo te deter. Estar com medo é uma parte essencial da vida. Mas se você acredita em seu talento, descobrirá que é a única pessoa em seu caminho. E foi puxada por Deborah Colker: Bailarino não pode parar! Até a Anastassia Volotchkova denunciou do Bolshoi: Há dez anos, quando eu dançava no teatro, recebi em diversas oportunidades propostas para me deitar com homens durante seus banquetes. Viu-se desamparada com a sublevação das outras que foram imediatamente substituídas e não lhe restava, mais uma vez, fugir.

 


Três: da Baderna à recusa do céu & inferno - Ao som de Tríplice andar (2012), da compositora e professora Denise Garcia. - Quando deu por si, sentia-se na pele a Balada da puta de judeus Marie Sanders e na Lenda da puta Evelyn Roe, de Bertolt Brecht. E ousou além da conta, até ser chamada de Maria Baderna – o que ninguém sabia da Marietta ninguém sabia, mas era uma alusão à prima ballerina assoluta italiana Marietta do Il Ballo delle Fate, que desembarcara exilada no Brasil para se tornar a musa do povo no meio de um pudico e conservador império escravocrata que aplaudia a sua performance. Não havia como ser de outro jeito, vivia na rua pelos festejos populares regados a álcool e sexo. O sua performance transmitia um furor pélvico inspirado na sensualidade e ritmos de danças africanas, não dispensando passos de lundu, cachuca ou umbigada, aclamada pelo fervor das plateias. E pulou frevo nas ladeiras de Olinda e nas Cirandas de Lia e maracatus, caboclinhos e guerreiros. Não se safou justo por isso da pecha de símbolo da depravação, nem deixou de ser boicotada com tributos às avessas. E carregou a maldição da bailarina jogada do palco em baixo, e de se encantar pelos bandolins, e de ouvir a Germaine Greer furiosa: O ballet é um câncer cultural! E seguiu os passos de O despertar da primavera, de Pina Bausch; e no Cendrillon, de Maguy Marin; e de se decidir Svetlana Zakharova: Essa é a minha vida. E de se tornar o Cisne Negro: A única coisa que está em seu caminho para a perfeição, é você mesma. A perfeição não está só no controle. Também está em se deixar levar. Surpreender a si mesma e depois a plateia. Transcendência. E poucos têm isso dentro de si. E de segurar no braço da Marika Gidali e ouvir de Twyla Tharp: A arte é a única maneira de fugir sem sair de casa. E de falar como Martha Graham: O corpo diz o que as palavras não podem dizer. E de se ver Sylvie Guillem diante do espelho: Se você tem medo de perder alguma coisa, você é dependente disso. Se você não tem medo, então você é livre. E seguiu adiante e se cobriu com o manto de Zósimo e foi retratada na Vita de Sofrónio; e no Li Gieues de Robin et de Marion, de Adam de la Halle; no National Dance, de Margaret Alhenby-Jaffe; de ser Marry Gip na Volpone de Ben Jonson; de ser a Gipsy Mary no La diosa blanca, de Robert Graves; e n’As tentações de Miguel Sabido; como de figurar no Retablo ímpio de José Maria Menéndez López, num poema de Bandeira e noutro de Cecília Meireles, em duas óperas de Ottorino Respighi e John Tavener, em figuras de afrescos e descrita em vitrais de catedrais, enfim, em ser a descendente de Afrodite, a deusa do amor, que ofereceu seu corpo ao capitão do navio em troca da passagem com destino ao encontro com Jesus, falecendo no meio da viagem e ter sua alma, por fim, recusada por Deus e pelo diabo. Enquanto peregrina não se sabe para onde, o mundo fecha os olhos ao genocídio.

 

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