sexta-feira, junho 25, 2021

JULIA KRISTEVA, SHAN SA, JANE SMILEY & EZTER LIU

 

 

TRÍPTICO DQP –- Era manhã e anoitecia... Imagem: arte da artista etíope Julie Mehretu & ao som de show do violonista francês Nicolas Krassik & Cordestinos - Era quem o menino senão eu diante do espelho pela primeira vez: uma esperança voava e pousou em meu peito, a alegria da infância de todas as manhãs. E eu crescia a sorrir. Com o passar dos anos, fizeram dela um gafanhoto predador e tornou o dia na noite do horror eterno, um minuto feito de século de nunca acabar. Nestes últimos de dor, tirei as sandálias e pisei o chão do quintal para a rua, abri o portão e ganhei o mundo peito aberto. Na carreira ouvi a estadunidense escritora, Jane Smiley, a me dizer: Uma criança protegida de todas as idéias controversas é tão vulnerável quanto uma criança protegida de todos os germes. A infecção, quando vier - e virá - pode sobrecarregar o sistema, seja o sistema imunológico ou o sistema de crenças. Se nada entendia, ela insistia na primavera: Todo primeiro rascunho é perfeito, porque tudo o que um primeiro rascunho precisa fazer é existir. E adolescia como o pé de planta que se tornava árvore pronta para frutos brotar. E se seguia errava e nada era melhor que aprender aos escorregões, porque ela insistia: Como a maioria dos educados, nutro uma predileção pelos pecados do meu passado ignorante. Pleno homem feito com o menino no coração, eu sonhava olhos abertos e mais me veria em pleno verão. Só agora sabia o que era a infecção e o que outra vez ela disse: Um romancista tem duas vidas - uma vida de leitura e escrita e uma vida vivida. Ele ou ela não pode ser entendido de forma alguma fora disso. E o que eu lia e vivia das tantas vidas com ela ao outono, previa o inverno de nada escapar: escombros no quintal e toda redondeza. Hoje a esperança voou e piso os destroços do meu país.

 


Duas noites a mais na escuridão... - Imagem: arte do artista estadunidense Robert Rauschenberg. - Era a tragédia instalada, sim, antevia e a meninice pulava do travesseiro como se ainda houvesse carnaval, festejos juninos e carrosséis de natal. Não mais. Outro o cenário devastado. Procurei do outro e tentei ajudá-lo; indiferente, não me reconhecia – era como se eu fosse estampado algoz. Ao falar não me ouviu ou fez que não. Em mim o eco de Julia Kristeva: Só conhecemos o outro quando o amamos. O amor é o apogeu da subjetividade. Só somos pessoas quando enfrentamos o outro, nunca isolados. O que nos torna pessoas é o vínculo com o outro, a relação de amor. Disso sabia meu coração, careca de saber; o outro que não e eu não era ninguém: um fantoche entre tantos outros e não me deixavam com eles. E me negava excluído, não podia ser, mesmo que aquela escritora chinesa, Shan Sa repetisse aos borbotões: A felicidade é algo que você sitia, é uma batalha como um jogo de bola. Vou segurar toda a dor e apagá-la. A vida tem sua vingança da vida. A morte prematura é o segredo da juventude eterna. E as vi como se fossem Filhas da Dor de um tempo sombrio tão escuro delas e tantas outras torturadas, desfalecidas, esquartejadas dos pedaços em minhas mãos e insepultas na memória de décadas. Só que eu não queria saber da morte porque a criança pulava em meu peito, mesmo que os meus e todos os demais me considerassem tão apenas uma paisagem desbotada.

 


Estava vivo, as fogueiras no coração... - Atravessei quantas noites e a solidão, a minha fogueira no meio de tantas outras e só me diziam de dor e sofrimento. Ficou tão difícil respirar, precisava seguir para viver. Logo, coisa boa: alguém se aproximou e me alegrei repentinamente - como era bom o prazer da companhia. E era Ezter Liu trazendo Breves fogueiras: Tem as que nascem azuis. As que morrem cinzas. Tem as que morrem cedo e as que nascem antes. As que derretem lâminas. E as que mal aquecem. Depois de um certo tempo, toda fogueira entardece. Até as mais intensas com percussão de estalos. As cavadas no terreiro e as pousadas na pedra. As do meio da mata. As da encosta gelada. E ao redor: a roda. E ao redor: bandeiras. Acalentando os frios e defumando as fomes. Quentes. Ardidas. Ligeiras. Aqui dançamos em torno de algumas breves fogueiras. E foi outra a hora porque instalou o aroma da brisa possível, eu vivia e como, ela trouxe o que estava perdido. Como era bom vê-la de perto, sorria eu de graça e a desconhecer o cenário de agora, como se por um momento tudo fosse diferente e pudesse ser feliz ali, ao seu lado. Isso me fez novamente a criança que nunca soprou nem deixou apagar a vela de quem quer que seja das fogueirinhas andantes de Galeano, porque eu queria brincar aos pulos e mãos nas mãos e pés por aí até nunca chegar e a desconhecer do escárnio e das trevas escondidas lá no fundo de cada gente esquecida de viver. Como era bom, eu podia sorrir e estar ao lado dela. Até mais ver.

 

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