O FANTASMA DO BARÃO - Quando o Barão deu as caras
por essas bandas, Alagoinhanduba ainda nem existia, era mesmo um povoado sem
nome de gente desvalida. Aquele homem abusado com charuto no bico às baforadas,
escanhoado de todos os vincos e impetuoso de ostentação, ia para tudo quanto é
canto acompanhado de brutamontes e tratando tudo que encontrasse pela frente como
se fosse um insulto. O séquito dele tinha mais gente que todos os moradores
dali. Tanto é que o cortejo invadiu, de logo se apropriar de toda a redondeza. Pelo
visto, primava pela decoração e a primeira ordem dele foi transferir tudo pro
outro lado do rio. Daí, começaram a construir uma ponte para poder atravessar
todo seu mando e poderio. Do lado de lá, dias intermináveis de obras: um
castelo, uma capela de um lado e um galpão enorme do outro da residência,
jardins arrodeando tudo, cercados e cocheiras, canavial e pastagens, um
labirinto de passagens e muitas coisas trazidas, isso aos montes. O povo dali
já se acostumara a ficar na beirada de cá do rio, assistindo a tudo, nada para
fazer além disso, só de ver o Barão cagando raios para todo lado. Um ou outro
aproveitado para mão-de-obra, escravaria braba. Trastejasse ou vacilasse na
tarefa, o gogó era torado na hora, inexoravelmente. Passou-se a primeira
primavera, depois o verão, chegou o outono e o inverno mandou ver de quase a
enchente destruir tudo e mudar os planos para subirem o morro com as
construções. O Barão arengava com os ventos, as nuvens, os dias, as noites, as
estações, o rio e tudo que lhe aparecesse pela frente. Sacava da espada
empunhada na mão esquerda numa luta invisível, ameaçando disparar a garrucha
carregada na mão direita, desafiando até o sol, a lua e as estrelas, quem mais
ousasse. A construção estava indo bem e, quase pronta, deu de aparecer mais
gente: madames, meninada, familiares e serviçais, tudo uns branquelos cheios
dos requintes, escoltados por uma ruma de capatazes tudo fortemente armado. Depois
de atravessar a gente toda e uma tuia de catrevagem que ninguém tinha nem
visto, o Barão chegou do lado da ponte e gritou: Quem inventar de atravessar
pro lado de cá, vai morrer crivado de bala, comboio de desgraça! Ouçam bem, estão
avisados! A ordem é para matar quem ouse atravessar essa ponte! Assim foi. Com
o passar dos anos, o homem bafejava: Isso aqui vai se chamar Alagoinhanduba!
Pronto, o lugar estava batizado. E cresceu a olhos vistos. Tudo girava em torno
do Barão, gente que vinha dos estrangeiros, autoridades federais, políticos das
lonjuras do fim de mundo, ricaços poderosos com seus cheleleus estibados, tudo
gente granfina que botaram catinga em bosta e nem fediam, tudo perfumado pelas
melhores fragrâncias do outro mundo dos longes. Tudo uns engravatados, chatosos
e impecáveis. Vez ou outra ouvia duns pipocos: era um desavisado que caía na
esparrela, enterrado ali mesmo. Era cada rojão, mais parecia São João o tempo
todo. Afinal, o homem era a lei e a ordem por estas paragens. Não fosse com a
cara do sujeito, aquele estava lascado do primeiro ao quinto, fritinho da
silva. Questão de minutos, tudo arranjado. Ninguém se lembrava mais, outra já
sucedia encobrindo tudo que se passasse. O nome dele? Barão num sei quê lá.
Ninguém sabia não, era só Barão que se ouvia, pra lá e pra cá. Ele tinha mais
anel no dedo que matuto de pantim, afora um molho de fitas e medalhas
penduradas nos ombros pelo casaco, e um barrunfo ineivado de meter medo em
tudo. Duvide não, o homem tinha topete e dos brabos. Os que ele esquartejasse ou
mandasse matar, viravam tudo alma do seu exército, um bando de mortos-vivos
mal-encarados que passavam pelo meio do povo com bafo de morte pronde se
virassem. O Barão, na vera, viveu quase 200 anos nessa pisada. Isso não fosse
uma dor lá nele no carnaval, de deixá-lo arriado, acho que ruim dos bofes como
já era. Ah, mas não morreu de mesmo, não. Nada. Dizem que ele ressuscitou, ou
tapiou a morte. Quem chega à beirada de cá do rio quando anoitece, vê logo ele
bufando de sair fogo pelas ventas, correndo pelas terras com seu batalhão, todas
as noites. Isso dizem, do muito. Ninguém é doido de conferir nem de atravessar.
Acho mesmo que é o fantasma dele, oxente. Brinque não. E se um dia inventarem
de revolver aquelas terras só vão achar caveiras enterradas na sua sina. Não
vai dar outra. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] ainda vivemos
num mundo similar àquele que a Escola de Frankfurt condenava – conquanto seja
um mundo no qual temos mais liberdade de escolha do que jamais tivemos antes.
[...] Inegavelmente porque a dominação do
homem pela indústria cultural e pelo consumismo é hoje mais intensa que nunca.
Pior, o que uma vez foi um sistema de dominação das sociedades europeia e
norte-americana agora expandiu seu alcance. Não vivemos mais num mundo em que
as nações e o nacionalismo são a chave para o seu significado, e sim num
mercado globalizado onde somos ostensivamente livres apenas para escolher o que
é sempre o mesmo, livres apenas para escolher qual é a espiritualidade que nos
apequena, que nos mantém obrigatoriamente submissos a um sistema opressor.
[...] os escritos da Escola de Frankfurt
nos são úteis agora, quando vivemos num tipo diferente de escuridão. Não
vivemos num inferno que a Escola de Frankfurt criou, mas num que ela pode
ajudar a compreender. É um bom momento para abrir sua mensagem na garrafa.
Trechos de Contra a
corrente – Introdução, extraídos da obra Grande hotel abismo – a Escola de Frankfurt e seus personagens: Adorno,
Benjamin, Horkheimer, Marcuse, Fromm, Pollock, Neumann e Habermas
(Companhia das Letras, 2018), do escritor e jornalista inglês Stuart Jeffries, na qual combina
reconstituição biográfica e discussão filosófica em uma prosa afiada, revelando
como os pensadores procuraram discutir a política da cultura durante a ascensão
do fascismo. No volume são apresentadas a biografia e ideias, além das
reflexões que moldaram eventos importantes do século XX. Alguns deles foram
forçados a fugir dos horrores da Alemanha nazista e se exilaram nos Estados
Unidos. Ao tomar como objeto de estudo a cultura popular em suas várias formas
— a Escola de Frankfurt discutiu sobre a natureza e a crise de nossa sociedade
de massas —, enquanto a obra mostra como essas ideias ainda são pertinentes
para os tempos das mídias sociais e do consumismo desenfreado. Veja mais aqui,
aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
DO
CLAUSTRO, DE RUY JOBIM NETO
[...] CENA 2 (as duas
clarissas já se encontram em cena, enquanto a luz abre em resistência) CECÍLIA: Vosmecê sequer tocou no pão e na água. MARIANA: Não é possível que não haja
correspondência alguma do Dr. Gonçalo. Não é possível. CECÍLIA: Mas isso não é motivo. MARIANA: É motivo suficiente! (tempo) Perdão. Peço que me perdoe, Irmã Cecília. Eu tenho
estado um tanto quanto fora de mim. Mas eu prometo que com muita oração e com
muita alegria na alma, tudo vai se encaminhar da melhor forma possível. CECÍLIA: Por certo que vai. E agora eu
peço, por amor do Cristo, que vosmecê se alimente um pouco, ao menos um pouco. MARIANA: Irmã Cecília! Houve alguma
vez em tua vida em que vosmecê precisou fazer alguma coisa, em virtude de como
se encontrava em determinado momento? CECÍLIA:
Como assim? MARIANA: Vosmecê
sabe que eu estou morrendo. CECÍLIA: Eu
não sei de nada. E vosmecê, por favor, não me repita mais uma sandice dessas!
Saiba que tudo o que eu fizer será para que vosmecê não se enfraqueça. Afinal
de contas, pelo que eu saiba, nenhuma de nós aqui tem qualidades suficientes
para atingir a santidade através de martírio. MARIANA: Não a santidade, mas a realidade. Se eu te disser que é
apenas em vosmecê que eu deposito toda a minha confiança, e que diante de tudo
o que tem acontecido, eu pedir a vosmecê dois favores imensos, eu agradeceria
eternamente se puder ser atendida. É algo sério. Não tenciono brincar com isso.
CECÍLIA: Não foi justamente
nossa Santa Mãe Clara quem nos ensinou a ajudar as irmãs que estivessem
descobertas e necessitadas? MARIANA: Sim.
CECÍLIA: Façamos uma troca.
Vosmecê come do pão e bebe da água que eu lhe trouxe e eu te serei toda ouvidos
para esses teus dois pedidos. (IRMÃ
MARIANA se serve e bebe um gole) Pois bem... Quais são eles? MARIANA: Eu quero me confessar
contigo. E depois vosmecê me conceda a extrema unção. CECÍLIA: Vosmecê disse que não ia brincar com esse tipo de coisa. MARIANA: Eu não estou brincando. [...].
Trecho
da peça teatral Do Claustro (2007), do autor
teatral, roteirista, cartunista e blogueiro Ruy Jobim Neto, contando a história de uma freira está
enclausurada, às portas da loucura, e precisa da ajuda de outra, em quem
confia, para salvar a vida do homem por quem está apaixonada - um poeta e advogado
ameaçado de degredo para a África. A ação se passa numa das celas do Convento
de Santa Clara do Desterro da Bahia, no final do século XVII, em 1692. Veja
mais aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE MARI KATAYAMA
Uma coisa que eu sei com
certeza é que a beleza não é algo bonito ou limpo. Não é sobre o corpo em si, mas
mais sobre a lacuna de "experiências" em todo o meu corpo que eu
estou interessada. Coisas como memórias.
A arte
da fotógrafa e artista visual japonesa Mari
Katayama, que nasceu com hemimelia tibial – doença rara que impediu o
crescimento da parte inferior das pernas e causou fissura na mão esquerda – e
faz uso de autorretratos descrevendo objetos meticulosamente organizados com
espaços íntimos ou em paisagens vastas e inspiradoras, homenageando o seu
signo, câncer/caranguejo. Veja mais aqui.
A OBRA DE JULIO CORTÁZAR
Cada vez irei sentindo menos, e, recordando
mais.
A obra do
escritor argentino de origem belga Julio Cortázar (1914-1984) aqui,
aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.