A SEDUTORA DA NOITE – Era pouco mais de meia noite e eu guiava dominado pelo cansaço, quando,
de repente, uma inesquecível Kelly LeBrock fez sinal do acostamento. Sim, não, sim, vou me arrepender, eu sei,
meti o pé no pedal de freio, encostei, engatei marcha à ré, e ela,
estonteantemente linda, apareceu. Parecia mesmo, rosto bem aparentado, só que
da minha altura e mais sensual. Baixei o vidro da porta lateral, sua voz macia
e melosa: Meu carro quebrou, pode me dar uma carona até o próximo posto? Sim.
Destravei a porta, ela abriu e sentou-se ao lado, deixando-me extasiado com sua
elegância e inebriado com o seu perfume e sedução: Faz tempo que peço socorro,
ninguém parava, obrigado, você salvou a minha pele. Providencialmente, segui a
rodovia, enquanto ela arrumava umas coisas na sua bolsa suntuosa. Pediu-me um
cigarro, saquei do bolso e lhe entreguei o maço, enquanto pude ver suas pernas
elegantes e forneadas no detalhe do corte de seu vestido vermelho. Ofereci-lhe
o isqueiro, segurou e manteve o cigarro apagado. Vi-lhe a boca sensual, carnuda
e vermelha, lábios salientes, nunca vira nada igual. Sou Magda Burla, muito prazer, disse-me dócil e pousou a sua mão macia
e terna na minha coxa, pude, então, dar conta de suas unhas esmaltadas de
vermelho. Disse-lhe meu nome e procurei palavras, todas sumiram na minha admiração
diante dos seus olhos luminosos, levou-me às raias da fascinação. Logo
deparamos o posto e pediu-me para estacionar em frente da conveniência. Pronto,
obrigado. Tenho que ir, compromisso inadiável, te vejo amanhã? Acendeu o cigarro,
devolveu-me o isqueiro. Fiquei sem saber o que dizer. Queria tomar um drinque
com você, mas não posso. Eu te encontro amanhã, faça isso por mim. Piscou-me o
olho e saiu desfilando. Desci do carro, acompanhei seu formoso andar, ainda magnetizado
pelo decote de seus fartos seios, seguia sensualmente com a cintura afunilada
nos largos quadris, uma corrente de ouro contornando o tornozelo sobre um salto
alto com tiras que se entrecruzavam pelas pernas vistosas até o joelho e sumiu.
Fiquei atordoado, nada mais dissera. Como encontrá-la novamente, não sabia como.
Ouvi uma voz me chamar de sortudo. Virei-me intrigado, era a garçonete: Você é
o primeiro que sai com ela e reaparece. Como? Ela riu: Com certeza, você sequer
sabe quem é ela! Passou-me pela cabeça um monte de coisas. Coquete? Pior. O
quê? Não sabe mesmo? E saiu com uma gargalhada. Não dei ouvidos, fui embora. No
outro dia, ao sair do trabalho e parar diante do primeiro semáforo, ela
apareceu, bateu no vidro, destravei a porta, entrou e já sentada: Pode me dar
uma carona? Fiquei imóvel, atabalhoado. Vamos. Claro, para onde? Um restaurante,
preciso beber alguma coisa. Pediu-me um cigarro, dei-lhe e, em seguida, passei
o isqueiro, enquanto remexia alguma coisa na bolsa que não conseguia encontrar.
Ah, esse restaurante está ótimo, podemos? Sim, contornei a entrada, estacionei
e ela já se esgueirou para a primeira mesa que encontrou, pedindo ao garçom um
uísque duplo. Acompanhei o seu pedido, sentando-me ao seu lado. Ela virou a
cabeça para mim, mirou firme nos meus olhos: Pensei muito em você, Luiz! Fiquei
estupefato, aliás, já estava completamente domado por toda aquela beleza ao meu
lado. Colou seu joelho ao meu, pousou sua mão direita sobre minha coxa
alisando-a carinhosamente, roçou seus lábios nos meus, massageou meu sexo e
sussurrou com hálito perfumado: Quero você! Não tive dúvidas, tomei-a entre
meus braços e a beijei demoradamente. O garçom trouxe as doses, nos recompomos.
Ela sorveu de um só gole: Hoje não posso, compromisso, te vejo amanhã.
Beijou-me a face e saiu. Tentei segurá-la, mas esgueirou-se rua afora. Ao acompanhar
o seu trajeto vi-lhe desaparecer na primeira esquina. Voltei, sentei-me e tomei
a minha dose, tentando me refazer daquilo. Ouvi uma gargalhada acompanhada,
novamente, da expressão: sortudo! Era a mesma voz que ouvira no dia anterior,
virei-me, era a garçonete. Você de novo? Ela riu. Pois é, segunda vez,
coincidência, não? Fiquei ainda mais intrigado. Outra dose? Pode ser. Posso lhe
contar tudo se quiser, basta pedir outra dose. Traga. Ela foi, minutos depois
retornou e em pé: Não vá me dizer que não sabe quem é aquela? Sei, Magda Burla.
Quem? Repeti-lhe o nome dela. Ela riu: Já vi que não sabe. E mais riu. Ah, meu,
tenha cuidado, ela não tem nome, é inventado, aquela é a sedutora da curva!
Quem? Já vi que não sabe mesmo, é o seguinte: desde as últimas décadas do
século XIX, pela curva de Dois Unidos, sabe onde é? Sei. Pois bem, ali nas
proximidades de uma antiga fábrica, essa bela aparece e desaparece conquistando
homens e mais homens. Se você olhar direitinho nos olhos dela, verá uma caveira,
um fantasma insaciável que seduz os homens que nunca mais reaparecerão, uma
alma penada que vaga pelas noites e altas madrugadas, ninguém resiste aos seus
encantos, é uma terrível assombração. Está avisado, agora é com você. E saiu. Fiquei
desconcertado. Procurei pela garçonete, chamei o garçom: Cadê aquela garçonete
que falou comigo a pouco? Quem? A garçonete. Aqui não tem nenhuma garçonete,
senhor. Oxe! Aquela que falei. Desculpa, senhor, não temos garçonetes neste
estabelecimento. Que coisa! Paguei a conta e saí pensando coisas obscuras, uma
mulher bonita que só agora me dera conta de que ela estava com as mesmas vestes
vermelhas, o mesmo salto alto elegante com tiras, o mesmo perfume inesquecível.
O que dizer da garçonete que, assim do nada, apareceu duas vezes para zombar de
mim e me contar tudo. Mistério rondava na minha cabeça. Chegando ao carro,
deparei com um livro aberto sobre o assento do passageiro, justo na página
marcada onde se lia o título: A bandeja diante da porta. Estava com uma parte
da página dobrada, olhei a capa, Alberto Moravia, A casa de praia das sextas-feiras. Li e entendi porque sou o único
sobrevivente de tudo. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] a hipótese de que todo o
espectro da matéria viva na Terra, das baleias aos vírus, e dos carvalhos às
algas, poderiam ser considerados como constituintes de uma entidade sistêmica
viva única, capaz de manipular a atmosfera da Terra para adaptá-la às suas
necessidades globais e dotada de faculdades e poderes muito além daqueles das
suas partes constituintes [...] Gaia [...] uma entidade
complexa envolvendo a atmosfera, os oceanos e o solo da Terra: a totalidade
constituindo um sistema cibernético ou de retroalimentação que busca um
ambiente físico e químico ótimo para a vida neste planeta. A manutenção de
condições relativamente constantes por controle ativo pode ser convenientemente
descrita pelo termo ‘homeostase’ [...] Uma
das propriedades mais características de todos os organismos vivos, do menor ao
maior, é a sua capacidade de desenvolver, operar e manter sistemas que fixam
uma meta e então se esforçam para alcançá-la através de processos cibernéticos
de tentativa e erro. A descoberta de tal sistema, operando em uma escala global
e tendo como seu objetivo o estabelecimento e a manutenção de condições físicas
e químicas ótimas para a vida, certamente forneceria evidência convincente da
existência de Gaia [...] Seria
verdadeiro afirmar que a maior parte de nossa busca por Gaia está preocupada em
descobrir se a temperatura é determinada pelo acaso, na forma de uma alça
aberta, ou se Gaia existe para aplicar as retroalimentações positiva e negativa
com uma mão controladora [...] Um
sistema como Gaia é improvável de ser perturbado. No entanto, nós devemos pisar
com cuidado para evitar os desastres cibernéticos da retroalimentação positiva
fora de controle ou da oscilação continuada. Se, por exemplo, os métodos de
controle do clima que postulei fossem sujeitos a uma perturbação severa, nós
poderíamos sofrer uma febre planetária ou o frio de uma idade glacial, ou mesmo
oscilações continuadas entre esses dois estados desconfortáveis [...].
Trechos extraídos de Gaia a New Look at Life on Earth
(Oxford University Press, 1979), do premiado cientista britânico James Lovelock, autor dos livros As eras de Gaia: uma biografia do nosso
planeta vivo (Campus, 1991) e Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra (Edições 70, 1995), criador da Teoria de Gaia ou Hipótese biogeoquímica, que defende que “A Terra é um ser vivo do qual somos o
sistema nervoso”, e pela qual o planeta é um superorganismo vivo e, como
tal, pode desfrutar de boa saúde ou simplesmente adoecer. Veja mais aqui e
aqui.
FONTE DOS AMORES
Onde se estende o Passeio Público, do Rio de
Janeiro, refletiam-se ao sol as águas estagnadas da lagoa do Boqueirão,
terrenos do Campo da Ajuda, com orla de lama e orquestra de sapos. Para o alto,
na direção do morro de Santa Teresa, erguia-se uma casinha romântica, ao lado
de uma palmeira ornamental. Morava aí a linda Suzana, a moça mais bonita e mais
pobre dos arredores, com sua velha avó. Suzana era noiva de Vicente Peres,
auxiliar de botânica de Frei Conceição Veloso, apaixonado e ciumento. Dom Luís
de Vasconcelos e Souza, décimo segundo Vice-Rei do Brasil, governava. Vez por
outra, passeando, o futuro Conde de Figueiró encontrava Suzana, parando para
admirá-la. E acabou desejando por sua a menina carioca, descuidada e simples,
moradora na solidão da lagoa sinistra. Cheio de planos de reforma, Dom Luís
fazia-se acompanhar pelo seu executor fiel nas constrições e sonhos, Valentim
da Fonseca e Silva, Mestre Valentim, mestiço, fusco e genial, cujos modelados
orgulham a torêutica brasileira. O Vice-Rei e Mestre Valentim, ocultos numa
touceira de bambus, espreitavam Suzana, surpreendendo-a em idílio com o
enamorado Vicente Peres. O noivo soubera dos encontros com Dom Luís, e
lamentava a traição ingrata da futura esposa. A menina defendia-se, defendendo
o Vice-Rei, tão longe e tão próximo. - Não deve acusar nem desconfiar de mim.
Dom Luís é um coração de ouro, pai dos pobres, justiceiro e valente. Nunca
oprimiu nem perseguiu ninguém. Deus o protege porque ele é forte e generoso. Em
vez de você pensar que ele está contra a nossa felicidade, deve, bem antes,
procurá-lo e pedir-lhe a proteção. Estou convencida de que tudo ficará melhor
para nós. Tenha confiança nele como eu tenho. Dom Luís, bem contra a sua
vontade, enterneceu-se. Jurou, mentalmente, que faria melhor serviço a Deus,
protegendo um casalzinho jovem, que conquistando uma mocinha pobre. Sem fazer
rumor, sempre com Mestre Valentim, recuou, ganhou o piso sinuoso da estrada,
montou a cavalo e voltou para o Paço, sonhando as compensações que Vicente
Peres merecia. No outro dia mandou-o chamar. Nomeou-o secretário de Frei
Veloso, que estava classificando o material brasileiro da "Flora Fluminense",
e mais um cargo na Alfândega, quando terminasse a tarefa. E, meses depois,
acompanhou Suzana e Vicente ao altar, na manhã do casamento, como padrinho e
protetor. A lagoa do Boqueirão foi vencida pelos trabalhos que Mestre Valentim
chefiava, sob a palavra animadora do Vice-Rei. Sobre o terreno consolidado
plantou-se um horto, e dezenas de árvores cobriram de sombras agasalhadoras o
que dantes era lodo e cisco. Nascera, por mais de cem anos, o mais popular e
querido dos logradouros do Rio de Janeiro. Mestre Valentim, sob comando,
concebeu e realizou uma fonte-monumento, a Fonte dos Amores, nome de mistério
que a lembrança de Suzana presidia e explicava. Acostada ao muro do lado do
mar, via-se uma cascata. No cimo, alta e esguia, subia uma palmeira de bronze,
representando aquela que cobrira a choupana desaparecida. Entre as pedras,
irregulares e artísticas, pisavam três garças de bronze, leves, airosas,
ignorantes do perigo oculto, materializado em dois grandes jacarés, de caudas
entrelaçadas, goelas abertas, de onde caía, em continuidade sonora, as águas
límpidas. As garças eram Suzana, Vicente e a avozinha. Os dois jacarés
personalizavam o próprio Vice-Rei e seu companheiro, o modelador do fontenário,
inaugurado em 1783. O tempo derrubou a palmeira de bronze, lembrança da
tranquilidade primitiva e bucólica. As três garças, memórias das vidas doces e
confiadas, desapareceram. Quem for visitar o Passeio Público, e olhar a Fonte
dos Amores, verá que somente os dois jacarés, símbolo da cobiça astuciosa, resistiram
e estão vivendo, mandíbulas abertas, através dos séculos.
Extraída
da obra Lendas brasileiras para jovens (Global, 2006), do historiador,
antropólogo, advogado e jornalista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
Veja aqui e aqui.
A ARTE DE GISELE ALVIM
A arte
da bailarina Gisele Alvim,
intérprete-criadora artista formada pela Escola de Dança do Theatro Municipal
do Rio de Janeiro e licenciada em Educação Física pela UERJ, participando do Corpo
de Baile do Theatro Municipal, na Companhia Lúmini. Foi professora e fundou a
Companhia de Giz, introduziu o método “Dinâmica muscular”, formada como
terapeuta ayurvédica pela Associação Brasileira de Ayurveda, atendendo pessoas com
o cuidado com a saúde, a melhora do bem-estar e da qualidade de vida.
Atualmente é integrante da Cia da Ideia e diretora do seu próprio espaço – o
Gisele Alvim Espaço de Dança, fundado em 2010. Veja mais aqui.
&
A OBRA DE GUSTAVE FLAUBERT
O autor na sua obra, deve ser como Deus no
universo, presente em toda a parte, mas não visível em nenhuma.