EPÍSTOLA SOLITÁRIA – Olha a dida, 1 real! Não era isso, só
personagem. Vestiu-se da bermuda vermelha, suspensórios, blusa branca de
algodão, meião e sapatilha, boné, foi pro mundo, carregado. A máscara, a
própria face nua: fisionomia do desassossego, premência da vida. Um curioso: Tem
de quê? Morango, cajá, coco, sabores... O sonho de escritor distante, talento
algum entre frases desconexas. Cometia versos esdrúxulos, enchia o peito
entoando dores: voz estival no negrume invernoso: erros de alvo, talhos da
alma. Suportava o escárnio, miséria calamitosa e suicida. Olha a dida, 1 real! Hem?
Graviola, araçá, mangaba... O calor capaz de degelar tudo, até seu coração de
rio. Também sangrava no mormaço, arrastando os ferros da chacota entre centavos
e engulhos, cuspe escasso na consideração. Tem esfirra? Cavaco? Lágrimas no
picolé. Gente, muita gente, 2 para 500, ofertas, liquidações, jogo, chamamentos,
toldas, parques de diversão, praça entulhada de rostos vazios, duas de
quinhentos no pátio da igreja, músicas de radiola de fichas, o cabaré do meio
dia. Arrodeava, as ruas cheias de pernas. Fim da tarde, a mão alisa o queixo,
vergonha é coisa sem vigência. Não havia lenda na situação tão sisuda. Ao banheiro,
porta aberta, entrou, a micção. Pronto, novo fôlego, higiene pessoal, o trinco,
cadê? Mãos molhadas, nenhum ferrolho, maçaneta, trancado. E agora? Sábado, todo
mundo já largou, 36 horas de espera, a fome, a sede, pensando, o passado
envelhecido, ressentimentos redivivos, frustrações, mágoas, fazer o quê? Só faltava
essa! As didas que sobraram dava para molhar o bico pela noite, outro dia
inteiro, domingo mais sem jeito, mais uma noite longa, madrugada infinda,
amanhecer vazio. E se a segunda fosse feriado? Faça isso não! A sorte por um
triz. Nenhuma dida, a pia, o espaço da cela, o estuque de mármore, a água do
vaso sanitário, o buraco do chuveiro tapado com um toco de madeira, o chão
frio, o calor de lascar: Vou morrer, ninguém dará conta. Pagar todos os meus
pecados: Quem mandou errar tanto na vida? Bem empregado. Esperar, esperança longínqua.
Vozes. Tem alguém aí? Tem. Vai demorar? Estou preso! E beibeibei, pesadas, pé
de cabra, arrombamento. Finalmente, o alivio, o frio do mundo se libertara. E ele,
com tanta gente, sitiado exangue na sua solidão. Era só voltar para casa, dar
conta do sumiço, aguentar o resto de vida. ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Então ressoaram os passos dele num andar
atribulado. A chave deu uma volta quase completa na fechadura. A maçaneta preta
girou. Ficamos um defronte do outro. Ele estava mais magro, a barba crescida. Os
olhos tinham um brilho de febre. [...] Debruçou-se
na mesa, apanhei um lápis e comecei a desenhar distraidamente numa folha que
tinha um borrão de tinta. Como dizer-lhe que ele também representava? E tão
mal. Decorara o papel e agarrava-se a ele sem talento, sem vocação. O que aconteceria
quando descobrisse que a solução era rasga-lo? [...] Limpei na saia as palmas úmidas das mãos. Só porque não era proibido? Quis
perguntar-lhe. Tirei os sapatos. [...] Sorri
para mim mesmo. Não? Se o amava, estava condenada. Se não o amava, estava
condenado ao castigo maior de viver sem amor. Não havia mesmo por onde escapar.
Ajoelhei-me diante dele. [...] Tomei-lhe
as mãos. E vi no seu pulso uma cicatriz de bordas franzidas como uma boca que
se nega a falar. [...].
Trechos extraídos
do romance Verão no aquário
(Presença, 2006), da escritora premiada e membro da Academia Brasileira de
Letras do Brasil e de Lisboa, Lygia Fagundes Telles. Veja mais aqui,
aqui, aqui, aqui & aqui.
A MÚSICA DE LEO BOUWER
A música do violonista, compositor e regente da Orquestra
de Cuba, Leo Brouwer. Veja
mais aqui e aqui.
A A ARTE DE MAURIZIO BARRACO
A arte do artista visual italiano Maurizio Barraco. Veja mais aqui.
&
A OBRA DE HILDA HILST
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas
escomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te
sôfrega
Como se fosses morrer colado à
minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do
amanhecer.
A obra da
poeta, dramaturga e ficcionista Hilda Hilst (1930-2004) aqui, aqui,
aqui, aqui, aqui & aqui.