REVELAÇÃO ANAGRAMÁTICA - Na cidade
vizinha de Malrepas descobriram um livro que tomaram por mágico e que estava
enterrado nos fundos do cemitério. Nada demais, evidentemente. Foi mão-de-obra
para transportar a coisa, sem saber o que fazer com ela. Livro, nem deram
bolas; antes fosse uma botija com muito ouro, isso sim, valeria. Mas livro,
nenhuma serventia. Como parecia uma Bíblia, deram de início certa atenção,
porém, como não era, caiu no desdém. Afinal, era só uma dessas coisas que
aparecem do inopinado e, depois de matar a curiosidade, tornam-se banal. E tudo
voltaria ao normal, não fosse o fato de, repentinamente, alguém enlouquecer. Como?
Foi, birutou. Ninguém sabia o motivo. Como é que pode? É normal. Logo outro endoideceu
assim do nada. De novo? Mais outro e outros tantos, muitos. Peraí, o que é que
está havendo? Quem sabe! Ué, deram de desassisar, foi? Pois é. Por que será?
Não se tinha a menor ideia. Investigações foram diligenciadas. Todos queriam
saber por que, de um tempo para cá, as pessoas deram de amalucar sem qualquer
motivo aparente. E foram juntando as pedras, montaram o quebra-cabeça e só deu
uma por resultado: o tal do livro desenterrado. Vamos ver! O mistério se
mantinha. Ué, mas fulano num foi com beltrano ver isso? Foram, endoidaram
juntos. Como é que pode? E sicrano e outro mano também foram e piraram,
outranos também. Vixe! Um a um na fila, encangados. O título, em letras de
ouro: Revelação Anagramática. Com a ponta dos dedos, de um lado a outro, de
cabeça pra baixo, a lombada, nada mais, só o título gravado em caligrafia
artística numa capa dura de camurça escura, dumas mil páginas, 40x60
centímetros, difícil de apalpar e segurar de tão pesado e grosso. Quem abrisse
em qualquer página, findava ruim da bola! Atenção redobrada. Receio, precaução.
Ah, tem coisa. Tem. Que danado de livro é esse? Só vendo. Uma comitiva topou
desvendar o mistério. Abriram. O primeiro: Oxe, isso sou eu? Como? Eita! Que foi?
A minha vida! Como assim? O que estava lendo, fechou de repente e saiu sem
falar. O que estava do lado, curioso, abriu: Ave, Maria! Depois de pregar as
vistas na leitura, também saiu todo desequilibrado. Até alguém dizer: Ninguém abre,
esse livro, é amaldiçoado. Já havia mais de duas centenas de hospedados no manicômio.
Estava líquido e certo: quem abriu, acabou no hospício. E agora? O que havia de
gente bisbilhoteira para saber detalhes do caso, não findava de chegar. Logo a
notícia chegou à Alagoinhanduba, justo para saber do doutor Zé Gulu, o único
que parou para pensar a respeito e deu uma resposta razoável para os
incrédulos: Ah, deve de ser o fabuloso Livro de Areia que encontraram! O quê?
Um livro diabólico que foi narrado por um escritor argentino chamado Borges. Hem?
É um livro estranho, sem começo nem fim, carregado de fábulas! Mas fica pinel
quem lê-lo? Sei não. Então, vamos lá! Ah, eu já li. E o que tem de tão
apavorante de desaprumar a cachola do leitor? Só narrativas fabulosas. E por
que quem bota o olho nele funde a cuca? Ué, eu li e não fiquei louco, vou lá
saber por que estão perdendo a sanidade mental, ora! Ah, então vamos lá! Nada demais.
Vamos, homem! Nada. Fizeram tudo para ele ir, não teve jeito. Ele amuou-se e
não cedeu nem a rogos da população. Então, tá. Quem correu para saber detalhes de
tudo foi o bispo que, aos cochichos, quis saber o que se sucedia. Padre Quiba
que tinha visto o piripaque do padre novato, ficou na dele, nem chegou perto da
suposta danação e narrou tintim por tintim ao superior. Pois, então, vamos
abri-lo! Deus me livre! É uma ordem! Nem amarrado. Vamos os dois! Vou nada! Que
é que tem no livro? Não sei, só sei que tem um monte de gente aí que abilolou
só de ler a primeira página. Hummmmm. Só está salvo desse estrupício quem não
leu, quem não abriu uma página sequer daquilo, só dizendo quem lia que era ele que
estava lá escrito, a vida dele e saía todo desgovernado fazendo bilu-bilu. Ah,
quero ver esse livro. Arrepara. Ao chegarem diante daquele volume ainda todo
empoeirado, logo deram de cara com os juízes e delegados das duas cidades e doutras,
confabulavam. Quem é maluco de abrir uma praga dessa? Procuraram voluntários, nenhuma
iniciativa. Convocaram a polícia e elegeram um condenado a abrir na marra e
dizer o que tinha escrito. Assim feito, amarrado, o sujeito dizia: Eita, sou
eu! Vixe! E o cara abria um boticão de quase os olhos pularem fora. Fale! Ficou
hipnotizado. Fale! Ele não tirava as vistas daquela página. O que está vendo,
responda, é uma ordem! Nem batia as pálpebras, de boca aberta. Pronto, já era. O
sujeito começou a gritar, espernear, tiveram de levá-lo pro sanatório. Logo estavam
todos os prefeitos da região, deputados, senadores, pais de santo, fuxiqueiros,
autoridades de todo tipo arrodeando a obra esquisita, sacudindo um pro outro a
responsabilidade de abri-la e dizer o que é que tem nessa maldita publicação. Depois
de muito puxa-encolhe, resolveram colocá-la numa redoma indestrutível e
transparente, colocaram num altar para exploração turística, rendendo altas
receitas até hoje. Pronto, resolvido. O que não querem saber é de leitura, tem
feitiço no livro, dito e feito: quem lê perde o juízo. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Abolida a escravidão e não se podendo mais
comprar negro, as senhoras de Minas tomavam para criar negrinhas e mulatinhas
sem pai e sem mãe ou dadas pelos pais e pelas mães. Começava para as desgraçadas
o dormir vestidas em esteiras postas em qualquer canto da casa, as noites de
frio, a roupa velha, o nenhum direito, o pixaim rapado, o pé descalço, o tapa
na boca, o bolo, a férula, o correão, a vara, a solidão. Apesar disso, íntimas
das sinhás, ajudando nos fuxicos, nas intrigas – servis, bajuladoras, vendo
tudo, alcovitando namoros, sabendo dos podres e integradas em cheio nos
complexos sexuais dos meninos da família. Em casa de minha avó materna,
funcionava o sistema. Ela era mesmo tida como grande disciplinadora de
negrinhas, disputando a palma dessa primazia, em Juiz de Fora, com D.
Guilhermina do Dr. Rosa da Costa e a D. Clementina do Dr. Feliciano Pena. Para
o arbítrio de Inhá Luisa, nem o batismo tinha barreiras. Ela revogava o
sacramento quando a graça das negrinhas parecia de moça branca. O quê?
Evangelina Berta? Absolutamente. Fica sendo Catita, que isto que é nome de
negro! [...]
Trecho
extraído da premiada obra Baú de Ossos
(José Olympio, 1978), do escritor e médico brasileiro Pedro Nava
(1903-1984), primeiro volume das memórias do autor. Veja mais aqui e aqui.
A POESIA DE MICHELINY VERUNSCHK
PROPÓSITO: ela se abre / pétala
a pétala / e branca é a sua carne / ela se abre / pétala a pétala / e exala a
doce abacaxi. / ele duro e brilhante / mal sabe o que o traz aqui / mal sabe do
pólen / que traz nas patas / no abdome / ele só sabe do que sente / do que o
consome / a noite vem e ela se fecha / de novo / pétala por pétala / ele
guardado dentro dela / ele luz e calor / quando ao dia mais uma vez chegar / ela
será vermelha / ela será ele / ela será amor.
O CORPO AMOROSO DO DESERTO: Teu corpo / branco e morno / (que eu deveria
dizer sereno) / é para mim / suave e doloroso / como as areias cortantes / dos
desertos. / Que importa / que ignores minha sede / se tua miragem / é água
cristalina. / E a miragem eu firo com mil línguas / e cada uma é um pássaro / a
bebê-la. / Ferroam a minha pele / escorpiões de fogo e sol / com seu veneno / e
vejo, / magoada de desejo, / os grãos tão leves / indo embora ao vento.
RÁPIDO MONÓLOGO DO CAÇADOR COM SUA CAÇA: Trago / Pardos / Os olhos / De
cobiça / Que atiro / Sobre ti, / Teu verbo/teu sexo: / Tua presa / de / marfim.
Poemas
da poeta e historiadora Micheliny Verunschk, autora dos livros Geografia Íntima
do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada
(Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme, 2010), Nossa
Teresa - vida e morte de uma santa suicida (Patuá/Petrobras Cultural, 2014)
e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Ela é mestre em Literatura e
Crítica Literária, doutora em Comunicação e Semiótica e doutoranda em Letras
pela PUC-SP. Veja mais aqui.
A ARTE DE ANA PAULA HOPPE
A arte da escritora e artista visual Ana Paula Hoppe, co-autora da obra interativa Baleia Rosa: você
está espalhando o bem? (Buzz,2017), em parceria
com Rafael Tiltscher, construído com desafios lúdicos e práticos a partir de
frases como: Seja você a mudança que
deseja ver no mundo ou Não faça aos
outros o que não gostaria que fizessem para você, direcionadas para a
alegria de viver, a autoestima e o sentimento de pertencimento. Veja mais aqui.
&
A OBRA DE LUDWIG WITTGENSTEIN
Os problemas filosóficos surgem quando
a linguagem sai de férias.
A obra do
filósofo austríaco naturalizado britânico Ludwig Wittgenstein
(1889-1951) aqui, aqui e aqui.