AJUSTE DE CONTAS
– Imagem: Abissal (2010), da artista plástica Regina Silveira. - Tirando por mim, a vida é curta e vale muito, a
gente pouco e ela é demais pro que se quer. Pelejei muito, agora sozinho na
noite só resta escrever cartas e mais cartas e colocá-las no fundo das garrafas
para jogá-las às correntes dos rios, quem sabe, ou gravar versos confessionais
às areias das praias entre sargaços ou nas encostas, nas rochas, estradas, para
serem levados aos ventos à qualquer beira de fim, ou riscar meus sentimentos
mais íntimos nas bordas do tempo, em voz alta no alto de um morro, ah, como
agora escrevo nada que se aproveite porque nunca fiz nem fui nada, mesmo na
tentativa de fazer nada melhores a todo instante e momento, mesmo que pra nada
servissem nem sirvam meus préstimos, nunca serviram, valho-me da indolência de
inventar histórias com os malassombros do mundo e fantasmas frequentes que
rondam minha insônia a roubar meus pesares e anseios numa brincadeira sem fim.
Só me resta de mesmo sentar num banco de praça a debulhar meus prantos e
lavar-me a alma por ter sido vítima do injusto, a perdoar-me pela sordidez dos
meus atos e vexames, como ajuste de contas pelo que fui e deixei de ser, ah,
isso não, jamais. Certamente nunca fui lá achegado a lamúrias, pois ri demais e
me esbaldei oportuno às condições favoráveis, quando permite uma folga por
instantinho de nada que fiz valer séculos, confesso. Por isso, sempre me achei
mal-agradecido, cada qual experimenta do doce e amargo, o castigo do remorso
silencioso de quantos suicidas, solitários, eu mesmo nada disso, apesar das
sobradas, eu morri muitas vezes e das cinzas renasci mais de mil vezes e cá
estou prestando contas pra ver do que devo e do que sou credor, se é que
crédito algum ainda me reste completamente ao rés do chão, reles espantalho, homiziado
de pernoite, a me fazer débil entre moucos e cegos maçantes com seus parvos
alcunhas e reuniões mundanas e secretas, grupelhos de interesses a ouvirem e
espiarem para tudo e nada distinguirem, meros substantivos sem significado nem vergonha
em seus rostos amargurados, arrogantes, cínicos, indóceis, portadores da
palavra sem verdade e a rogarem favores em nome da graça de Deus e de clemência
por seus degradantes dissabores, na voz gutural de duas dissimulações, sem
pressa para fazer as malas enquanto se assustam com o fim do mundo daqui a
pouco. Ignorado por todos sou na generosidade do sossego sem escapar de mim
mesmo, no desabafo de sentimentos enterrados no mais profundo do íntimo, um
acerto de contas feito e refeito comigo mesmo, já que dos outros paguei tudo
até o pato alheio, foi tudo preto no branco, um ou outro, talvez, lembre tenha
sido com folga, na maioria das vezes era ali mesmo justado e pesado com
percentagem de usura por impagáveis falhas e deslizes, mal-entendidos, e
levasse a sério era estouro das coronárias e eu já era esquecido e desmemoriado,
sem buscar o muito e de tudo que persegui a vida toda, augurando êxito aqui e
ali, lavando a alma e peito ao flagrar alguma cena na paisagem, sempre um vulto
de mulher a chamar atenção na calçada, maravilha da vida a me empolgar e a
confirmar que Deus existe naquela majestosa assimetria bem distribuída no
balanço das ancas, no perfil gracioso dos seios, a cadência dos passos no mundo
das pernas e coxas, o olhar fascinante que vê e não me reconhece atordoado, o
prêmio do sorriso nos lábios de festa a confirmar que sou eu o premiado. Graças!
Louros e salvas pra mim, pelo que escapei de traições e perigos, pelo que perdi
e nem precisava, pelo que ganhei de afeto e me fez pronto pra seguir adiante,
perseguir e perseverar, resiliente, pelo menos, até amanhã, se Deus quiser. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá é dia de especial com o guitarrista, compositor, cantor,
arranjador e produtor musical Luciano
Magno: A máquina, Marco
Zero/Carnaval do Recife & De Olinda a Los Angeles; da cantora e compositor Liah Soares: Quatro cantos & As melhores; & muito mais nos
mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Baratas
e formigas nos sobreviverão. Quando os átomos desintegrarem cidades e corpos,
com capacetes de fereza, esses prestimosos insetos saberão o que fazer da
terra, já que nós não sabemos. E talvez a concha perdida na praia restaure a
última senha. [...] Toda barbárie
principia na linguagem. E caminha para os gestos, fecundando a cotidiana
convivência. Impõe-se uma tácita comunidade. A mais brutal selvageria é a da
alma. [...] Toda ideologia é uma
neblina. Envelhece à morte de um dia. [...]. Trechos extraídos da obra O
túnel perfeito (Relume Dumará, 1994), do poeta, ficcionista, tradutor e crítico
literário Carlos Nejar. Veja mais aqui.
REFLEXÃO PARA OS TEMPOS ATUAIS - [...]
O recuo no tempo constitui uma função da
cadeia de determinações causais e genéticas com que se opera. Raramente é
aconselhável forçar a mão, na suposição de que “o passado explica o presente”.
A sociedade se reconstitui e, se importa não perder os elos com o passado,
nunca se deve perder de vista que é no presente que se encontram as
determinações essenciais, que regulam a reprodução das estruturas e
profundidade, a rapidez e a amplitude das transformações históricas em
processo. No Brasil, porém, como em muitos outros “países capitalistas dependentes
e atrasados” [...] O passado não se
“repete” pura e simplesmente. Exigências e necessidades novas condicionam ou
determinam a reprodução de comportamentos coercitivos e violentos, arcaicos ou
semi-arcaidos, o que instaura um paradoxo histórico. [...] Assim, a violência institucional se cruza
com a submissão reativa, a produção de apatia generalizada e a exclusão
sistemática dos dominados, oprimidos e explorados. [...]. O que fica claro – e que as elites das
classes possuidoras e dominantes procuram salvar do “caos” das mudanças – é que
a monopolização do poder (de todas as formas de poder e, no caso, do poder
especificamente político) se decide em um patamar pré-político. Os partidos
apenas contam como agência de fruição, distribuição e centralização do poder
entre facções dos estratos sociais privilegiados e “dirigentes”. [...] Os estudiosos do preconceito e da
discrimanção raciais descobriram a essência de uma tradição mistificadora,
arraigada no Brasil: o preconceito de não ter preconceito – uma fragilidade
humana aparentemente universal, que deveria ser inerente a qualquer forma de
ideologia e até mesmo ser assimilável aos mores inabaláveis de uma sociedade de
origem escravista. É possível que a contradição entre o império da fé e as
iniqüidades da escravidão tenha forjado uma espécie de entorpecimento infantil
da consciência social e produzindo essa tendência complacente de dissimular as
misérias humanas, transcendndo aos limites e às necessidades das ideologias.
[...] De outro lado, embora não se possa
separar o referido preconceito de não ter preconceito da violência sublimada e
da violência elementar subjacente às relações estamentais-escravistas e às
relações de classes de uma sociedade multiracial com fortíssima concentração
racial da riqueza, do prestigio social e do poder, é evidente que o paradigma
que vale para a representação do “não-preconceito” vale igualmente para outras
representações essenciais à humanidade dos “mais humanos” (no calo, do que diz
respeito à “não-violência”). A violência incorporada aos mores dos que se
atribuem a responsabilidade da defesa da ordem, da moralidade ou da religião e
de todo um padrão de civilização, objetiva-se como um direito natural – ou, na
pior das hipóteses, como uma coação “legítima” e “necessária”, que se justifica
por si mesma, por prevenir irrupções destrutivas da violência e por se
institucionalizar como um “direito sacrossanto”. [...]. Trechos da obra A ditadura em questão (T.A. Queiroz,
1982) do
sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Veja mais aqui e aqui.
CASAMENTO DO CÉU E DO
INFERNO – [...] As religiões dualistas sustentam que o homem
possui dois princípios reais de existência, um corpo e uma alma; que a energia
provem apenas do corpo, enquanto a razão, inteiramente da alma; e que Deus atormentará
o homem por toda a eternidade por ele seguir suas energias. A verdade é que o
homem não possui corpo distinto da alma – o chamado corpo é uma porção da alma
discernida pelos cinco sentidos; que essa energia é a única vida que provém do
corpo; que a razão é o limite externo ou circunferência da energia; e que a
energia é o deleite eterno [...]. Extraído da obra O matrimônio do céu e
do inferno (Iluminuras, 1995), do poeta, tipógrafo e pintor inglês William Blake (1757-1827). Veja mais
aqui, aqui, aqui e aqui.
TALENTO – Quando
completou dezoito, Ingrid saiu de casa com a disposição de entrar para o
teatro: - Hei de vencer, custe o que custar. Não foi mole. Durante dois meses
freqüentou tudo quanto é restaurante onde vão jantar os artistas, depois do
espetáculo. Só que ela não jantava: roubava uma batatinha aqui, outra ali, e ia
fazendo os contatos, que hoje chamam de relações públicas. Até que um dia
surgiu a primeira oportunidade e arranjou sem primeiro emprego: tinha de bater
palmas, de vez em quando, pra incentivar a plateia. Mas não durou muito: uma
vez bateu palma fora de hora e acabou indo pra rua. Pra arranjar colocação em
outro teatro, foi duro, pois essa é uma das raras profissões que não
possibilitam a tal carta apresentação. – Mesmo assim, hei de arranjar. E
arranjou mesmo, porque sempre aparece um brincalhão para tirar partido da
agonia alheia. O fato é que Ingrid conseguiu uma carta nos seguintes termos:
“Prezado diretor, pela presente quero lhe recomendar o extraordinário talento
da jovem portadora desta carta, excelente batedora de palmas de nossa ‘claque’,
com uma folha de serviços digna dos maiores elogios. Graças às suas palmas,
sempre estridentes e oportunas, nossas peças têm sido muito bem aceitas, tanto
pelo público como pela crítica ainda não se acostumou a gostar das peças
aplaudidas. De qualquer forma, como o nosso objetivo direto é o público,
peço-lhe que ouça com atenção as palmas desta jovem, cujo futuro está em suas
mãos (dela é claro)”. – O senhor acha mesmo que posso fazer carreira? Ingrid
tremia, quando o direitor lhe pediu para bater palmas. – O senhor gostou mesmo?
– Demas. Agora pode vestir a saia e passe para a outra sala pra assinar o
contrato: a senhoria será a nossa principal vedete. O que é o destino. Ingrid
ingressou no teatro através das mãos, mas o seu talento estava todo nas pernas.
Extraído da obra A mulher em flagrante
(Círculo do Livro, 1986), do escritor e jornalista Leon Eliachar
(1922-1987). Veja mais aqui e aqui.
AXIOMAS – Sempre é melhor / saber / que não
saber. / Sempre é melhor / sofrer / que não sofrer. / Sempre é melhor /
desfazer / que tecer. / Sem mão / não acorda / a pedra / sem língua / não
ascende / o canto / sem olho / não existe / o sol. Extraído da obra Teia: poemas (Geração, 1996), da poeta Orides Fontela (1940-1998).
ADEUS, MENINOS
Adeus, meninos foi inspirado na lembrança
mais dramática da minha infância. Em 1944, eu tinha 11 anos e era interno num
colégio católico, perto de Fontainebleu. Um de meus colegas, que havia chegado
no começo do ano, me intrigava muito. Ele era diferente, discreto. Comecei a
conhece-lo, a amá-lo, quando, certa manhã, nosso pequeno mundo desabou. Esta
manhã de 1944 praticamente decidiu minha vocação de cineasta. É a minha
fidelidade, minha referência. Deveria tê-la feito a matéria de meu primeiro
filme, mas hesitava, esperava. O tempo passou, a lembrança se tornou mais
aguda, mais presente. No ano passado, após dez anos nos Estados Unidos, senti
que era chegado o momento e escrevi o roteiro de Adeus, meninos. A imaginação
utilizou-se da memória como um trampolim, reinventei o passado, além da
reconstituição histórica, em busca de uma verdade ao mesmo tempo lancinante e
intemporal. Através do olhar desse garotinho que se parece comigo, tentei
reencontrar esta primeira amizade, a mais forte, bruscamente destruída, e a
descoberta do mundo absurdo dos adultos, com sua violência e preconceitos. 1944
está longe, mas eu sei que um adolescente de hoje pode partilhar a minha
emoção. Louis Malle.
Extraído
do livro Adeus, meninos (Bertrand Brasil, 1987), com o roteiro do premiado
drama Au revoir les enfants (1987), dirigido, escrito e produzido
pelo cineasta Louis Malle (1932-1995), baseado na própria infância
ocorrida durante o inverno de 1943-44, quando na II Guerra Mundial a França é
ocupada e dividida entre os invasores nazistas entre os “colaboracionistas”
(cidadãos franceses que ajudam os alemães), os opositores resistentes e demais
habitantes, meninos de diferentes idades assustem aulas dadas e organizadas por
padres cristãos, descobrindo que um dos mais inteligentes e introspectivos
alunos, veste solidéu e reza em língua hebraica. O filme revela a crueldade da
guerra e a ocupação. Veja mais aqui, aqui e aqui.
Veja mais:
O mundo
parou pro coração pulsar, o pensamento de Sêneca, a música de Liah Soares & a pintura
de Jean Fautrier aqui.
Por você
na Crônica de amor por ela, Safo,
Gilles Deleuze & Félix Guattari, Autran Dourado, Regina Silveira, Khadja Nin, Alexandre
Dáskalos, Sam Taylor-Wood, Erika
Leonard James, Eduardo Schloesser, Dakota Johnson & Kel Monalisa aqui.
Darcy Ribeiro, Autran Dourado, Damaris Cudworth Masham, Loius Claude de
Saint-Martin, Juan Orrego-Salas, Irina Vitalievna Karkabi, Doença & Saúde aqui.
Farra do
Biritoaldo aqui.
Educação
Ambiental aqui.
Albert Camus, Maceió, Robert Musil, Denys Arcand,
Jools Holland, Eugene Kennedy, Pál Fried, Sandu Liberman, Lady
Gaga, Anna Luisa Traiano, Gestão do Conhecimento & do Capital Humano aqui.
Judicialização
do SUS aqui.
Educação
por água abaixo pra farra dos mal-educados aqui.
Depois
da tempestade nem sempre uma bonança aqui.
É
preciso respeitar as diferenças aqui.
Pra
fazer do Brasil um país melhor tem que começar tudo em casa aqui.
A teoria
de Anthony Giddens & a Introdução à estética de Ariano Suassuna aqui.
Solidariedade
aqui.
&
A ARTE DE REGINA
SILVEIRA
A arte da
artista plástica Regina Silveira. Veja mais aqui.