quinta-feira, janeiro 18, 2018

WILLIAM BLAKE, CARLOS NEJAR, FLORESTAN, ORIDES FONTELA, LEON ELIACHAR, REGINA SILVEIRA, LOUIS MALLE, LUCIANO MAGNO & LIAH SOARES

AJUSTE DE CONTAS – Imagem: Abissal (2010), da artista plástica Regina Silveira. - Tirando por mim, a vida é curta e vale muito, a gente pouco e ela é demais pro que se quer. Pelejei muito, agora sozinho na noite só resta escrever cartas e mais cartas e colocá-las no fundo das garrafas para jogá-las às correntes dos rios, quem sabe, ou gravar versos confessionais às areias das praias entre sargaços ou nas encostas, nas rochas, estradas, para serem levados aos ventos à qualquer beira de fim, ou riscar meus sentimentos mais íntimos nas bordas do tempo, em voz alta no alto de um morro, ah, como agora escrevo nada que se aproveite porque nunca fiz nem fui nada, mesmo na tentativa de fazer nada melhores a todo instante e momento, mesmo que pra nada servissem nem sirvam meus préstimos, nunca serviram, valho-me da indolência de inventar histórias com os malassombros do mundo e fantasmas frequentes que rondam minha insônia a roubar meus pesares e anseios numa brincadeira sem fim. Só me resta de mesmo sentar num banco de praça a debulhar meus prantos e lavar-me a alma por ter sido vítima do injusto, a perdoar-me pela sordidez dos meus atos e vexames, como ajuste de contas pelo que fui e deixei de ser, ah, isso não, jamais. Certamente nunca fui lá achegado a lamúrias, pois ri demais e me esbaldei oportuno às condições favoráveis, quando permite uma folga por instantinho de nada que fiz valer séculos, confesso. Por isso, sempre me achei mal-agradecido, cada qual experimenta do doce e amargo, o castigo do remorso silencioso de quantos suicidas, solitários, eu mesmo nada disso, apesar das sobradas, eu morri muitas vezes e das cinzas renasci mais de mil vezes e cá estou prestando contas pra ver do que devo e do que sou credor, se é que crédito algum ainda me reste completamente ao rés do chão, reles espantalho, homiziado de pernoite, a me fazer débil entre moucos e cegos maçantes com seus parvos alcunhas e reuniões mundanas e secretas, grupelhos de interesses a ouvirem e espiarem para tudo e nada distinguirem, meros substantivos sem significado nem vergonha em seus rostos amargurados, arrogantes, cínicos, indóceis, portadores da palavra sem verdade e a rogarem favores em nome da graça de Deus e de clemência por seus degradantes dissabores, na voz gutural de duas dissimulações, sem pressa para fazer as malas enquanto se assustam com o fim do mundo daqui a pouco. Ignorado por todos sou na generosidade do sossego sem escapar de mim mesmo, no desabafo de sentimentos enterrados no mais profundo do íntimo, um acerto de contas feito e refeito comigo mesmo, já que dos outros paguei tudo até o pato alheio, foi tudo preto no branco, um ou outro, talvez, lembre tenha sido com folga, na maioria das vezes era ali mesmo justado e pesado com percentagem de usura por impagáveis falhas e deslizes, mal-entendidos, e levasse a sério era estouro das coronárias e eu já era esquecido e desmemoriado, sem buscar o muito e de tudo que persegui a vida toda, augurando êxito aqui e ali, lavando a alma e peito ao flagrar alguma cena na paisagem, sempre um vulto de mulher a chamar atenção na calçada, maravilha da vida a me empolgar e a confirmar que Deus existe naquela majestosa assimetria bem distribuída no balanço das ancas, no perfil gracioso dos seios, a cadência dos passos no mundo das pernas e coxas, o olhar fascinante que vê e não me reconhece atordoado, o prêmio do sorriso nos lábios de festa a confirmar que sou eu o premiado. Graças! Louros e salvas pra mim, pelo que escapei de traições e perigos, pelo que perdi e nem precisava, pelo que ganhei de afeto e me fez pronto pra seguir adiante, perseguir e perseverar, resiliente, pelo menos, até amanhã, se Deus quiser. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá é dia de especial com o guitarrista, compositor, cantor, arranjador e produtor musical Luciano Magno: A máquina, Marco Zero/Carnaval do Recife & De Olinda a Los Angeles; da cantora e compositor Liah Soares: Quatro cantos & As melhores; & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Baratas e formigas nos sobreviverão. Quando os átomos desintegrarem cidades e corpos, com capacetes de fereza, esses prestimosos insetos saberão o que fazer da terra, já que nós não sabemos. E talvez a concha perdida na praia restaure a última senha. [...] Toda barbárie principia na linguagem. E caminha para os gestos, fecundando a cotidiana convivência. Impõe-se uma tácita comunidade. A mais brutal selvageria é a da alma. [...] Toda ideologia é uma neblina. Envelhece à morte de um dia. [...]. Trechos extraídos da obra O túnel perfeito (Relume Dumará, 1994), do poeta, ficcionista, tradutor e crítico literário Carlos Nejar. Veja mais aqui.

REFLEXÃO PARA OS TEMPOS ATUAIS - [...] O recuo no tempo constitui uma função da cadeia de determinações causais e genéticas com que se opera. Raramente é aconselhável forçar a mão, na suposição de que “o passado explica o presente”. A sociedade se reconstitui e, se importa não perder os elos com o passado, nunca se deve perder de vista que é no presente que se encontram as determinações essenciais, que regulam a reprodução das estruturas e profundidade, a rapidez e a amplitude das transformações históricas em processo. No Brasil, porém, como em muitos outros “países capitalistas dependentes e atrasados” [...] O passado não se “repete” pura e simplesmente. Exigências e necessidades novas condicionam ou determinam a reprodução de comportamentos coercitivos e violentos, arcaicos ou semi-arcaidos, o que instaura um paradoxo histórico. [...] Assim, a violência institucional se cruza com a submissão reativa, a produção de apatia generalizada e a exclusão sistemática dos dominados, oprimidos e explorados. [...]. O que fica claro – e que as elites das classes possuidoras e dominantes procuram salvar do “caos” das mudanças – é que a monopolização do poder (de todas as formas de poder e, no caso, do poder especificamente político) se decide em um patamar pré-político. Os partidos apenas contam como agência de fruição, distribuição e centralização do poder entre facções dos estratos sociais privilegiados e “dirigentes”. [...] Os estudiosos do preconceito e da discrimanção raciais descobriram a essência de uma tradição mistificadora, arraigada no Brasil: o preconceito de não ter preconceito – uma fragilidade humana aparentemente universal, que deveria ser inerente a qualquer forma de ideologia e até mesmo ser assimilável aos mores inabaláveis de uma sociedade de origem escravista. É possível que a contradição entre o império da fé e as iniqüidades da escravidão tenha forjado uma espécie de entorpecimento infantil da consciência social e produzindo essa tendência complacente de dissimular as misérias humanas, transcendndo aos limites e às necessidades das ideologias. [...] De outro lado, embora não se possa separar o referido preconceito de não ter preconceito da violência sublimada e da violência elementar subjacente às relações estamentais-escravistas e às relações de classes de uma sociedade multiracial com fortíssima concentração racial da riqueza, do prestigio social e do poder, é evidente que o paradigma que vale para a representação do “não-preconceito” vale igualmente para outras representações essenciais à humanidade dos “mais humanos” (no calo, do que diz respeito à “não-violência”). A violência incorporada aos mores dos que se atribuem a responsabilidade da defesa da ordem, da moralidade ou da religião e de todo um padrão de civilização, objetiva-se como um direito natural – ou, na pior das hipóteses, como uma coação “legítima” e “necessária”, que se justifica por si mesma, por prevenir irrupções destrutivas da violência e por se institucionalizar como um “direito sacrossanto”. [...]. Trechos da obra A ditadura em questão (T.A. Queiroz, 1982) do

CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO – [...] As religiões dualistas sustentam que o homem possui dois princípios reais de existência, um corpo e uma alma; que a energia provem apenas do corpo, enquanto a razão, inteiramente da alma; e que Deus atormentará o homem por toda a eternidade por ele seguir suas energias. A verdade é que o homem não possui corpo distinto da alma – o chamado corpo é uma porção da alma discernida pelos cinco sentidos; que essa energia é a única vida que provém do corpo; que a razão é o limite externo ou circunferência da energia; e que a energia é o deleite eterno [...]. Extraído da obra O matrimônio do céu e do inferno (Iluminuras, 1995), do poeta, tipógrafo e pintor inglês William Blake (1757-1827). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

TALENTOQuando completou dezoito, Ingrid saiu de casa com a disposição de entrar para o teatro: - Hei de vencer, custe o que custar. Não foi mole. Durante dois meses freqüentou tudo quanto é restaurante onde vão jantar os artistas, depois do espetáculo. Só que ela não jantava: roubava uma batatinha aqui, outra ali, e ia fazendo os contatos, que hoje chamam de relações públicas. Até que um dia surgiu a primeira oportunidade e arranjou sem primeiro emprego: tinha de bater palmas, de vez em quando, pra incentivar a plateia. Mas não durou muito: uma vez bateu palma fora de hora e acabou indo pra rua. Pra arranjar colocação em outro teatro, foi duro, pois essa é uma das raras profissões que não possibilitam a tal carta apresentação. – Mesmo assim, hei de arranjar. E arranjou mesmo, porque sempre aparece um brincalhão para tirar partido da agonia alheia. O fato é que Ingrid conseguiu uma carta nos seguintes termos: “Prezado diretor, pela presente quero lhe recomendar o extraordinário talento da jovem portadora desta carta, excelente batedora de palmas de nossa ‘claque’, com uma folha de serviços digna dos maiores elogios. Graças às suas palmas, sempre estridentes e oportunas, nossas peças têm sido muito bem aceitas, tanto pelo público como pela crítica ainda não se acostumou a gostar das peças aplaudidas. De qualquer forma, como o nosso objetivo direto é o público, peço-lhe que ouça com atenção as palmas desta jovem, cujo futuro está em suas mãos (dela é claro)”. – O senhor acha mesmo que posso fazer carreira? Ingrid tremia, quando o direitor lhe pediu para bater palmas. – O senhor gostou mesmo? – Demas. Agora pode vestir a saia e passe para a outra sala pra assinar o contrato: a senhoria será a nossa principal vedete. O que é o destino. Ingrid ingressou no teatro através das mãos, mas o seu talento estava todo nas pernas. Extraído da obra A mulher em flagrante (Círculo do Livro, 1986), do escritor e jornalista Leon Eliachar (1922-1987). Veja mais aqui e aqui.

AXIOMASSempre é melhor / saber / que não saber. / Sempre é melhor / sofrer / que não sofrer. / Sempre é melhor / desfazer / que tecer. / Sem mão / não acorda / a pedra / sem língua / não ascende / o canto / sem olho / não existe / o sol. Extraído da obra Teia: poemas (Geração, 1996), da poeta Orides Fontela (1940-1998).

ADEUS, MENINOS
Adeus, meninos foi inspirado na lembrança mais dramática da minha infância. Em 1944, eu tinha 11 anos e era interno num colégio católico, perto de Fontainebleu. Um de meus colegas, que havia chegado no começo do ano, me intrigava muito. Ele era diferente, discreto. Comecei a conhece-lo, a amá-lo, quando, certa manhã, nosso pequeno mundo desabou. Esta manhã de 1944 praticamente decidiu minha vocação de cineasta. É a minha fidelidade, minha referência. Deveria tê-la feito a matéria de meu primeiro filme, mas hesitava, esperava. O tempo passou, a lembrança se tornou mais aguda, mais presente. No ano passado, após dez anos nos Estados Unidos, senti que era chegado o momento e escrevi o roteiro de Adeus, meninos. A imaginação utilizou-se da memória como um trampolim, reinventei o passado, além da reconstituição histórica, em busca de uma verdade ao mesmo tempo lancinante e intemporal. Através do olhar desse garotinho que se parece comigo, tentei reencontrar esta primeira amizade, a mais forte, bruscamente destruída, e a descoberta do mundo absurdo dos adultos, com sua violência e preconceitos. 1944 está longe, mas eu sei que um adolescente de hoje pode partilhar a minha emoção. Louis Malle.
Extraído do livro Adeus, meninos (Bertrand Brasil, 1987), com o roteiro do premiado drama Au revoir les enfants (1987), dirigido, escrito e produzido pelo cineasta Louis Malle (1932-1995), baseado na própria infância ocorrida durante o inverno de 1943-44, quando na II Guerra Mundial a França é ocupada e dividida entre os invasores nazistas entre os “colaboracionistas” (cidadãos franceses que ajudam os alemães), os opositores resistentes e demais habitantes, meninos de diferentes idades assustem aulas dadas e organizadas por padres cristãos, descobrindo que um dos mais inteligentes e introspectivos alunos, veste solidéu e reza em língua hebraica. O filme revela a crueldade da guerra e a ocupação. Veja mais aqui, aqui e aqui.

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