EU & MEUS
DOIS OUTROS EUS – Imagem: arte do
artista indiano Kalicharan
Gupta.- Desde menino que
eu desconfiava haver mais alguém dentro de mim mesmo. Um só, não; dois outros, muitos
até. Pode? Isso porque quando criança o que eu conversava sozinho ou com uma
tuia de amigos invisíveis, não era brincadeira. Quando o outro deu sinal de
vida, eu já era quase adolescente. Chegou implicando: Vá, escreva, você será um
triunfante escritor, um grande artista. Ah-rá! Doce ilusão, só bestices
inauditas. Já me acostumando com o papo a dois, logo surgiu um terceiro e parecia
saído de um disparo de canhão, tal homem-bala: Alto lá! Você não serve pra
escritor. Sua mãe o quer médico; seu pai, advogado. Está na hora de decidir:
melhor engenharia. Eita! Minha vida virou um pandemônio e eu espremido no meio por
meus dois outros eus. Lá era a minha cara de asteroide sonhando galáxias
distantes e isso baixava o nível de oxigênio na redondeza: era o roubo das
minhas contradições sacudindo tudo. Coitada da minha alma de petisqueira velha
lançada por terra: um catálogo de inutilidades, coisas imprestáveis guardadas
e, consequentemente, extirpadas do meu íntimo pras minhas escritas. Repreensão:
Você tem que ser sério e profissional como manda o figurino, ouça seus pais,
escolha logo entre as opções, sirva a sociedade, vá pro mercado. Enquanto isso,
o outro futucava: Realize seus sonhos, se persistir será famoso, persevere e
suas obras laureadas e aplaudidas. Coitado de mim, vivia de biscate, assando e
comendo, parecia mais que carregava um andor nos ombros: o pesadelo real que
ninguém queria sonhar. Escrevi uns troços, coisas chochas, secreções das
tripas, tais histórias insossas de estrelas cadentes que se engasgavam com a
angústia ao crepúsculo: a certidão de que não estou preparado para este mundo. Arre!
Aí afogava as mágoas com goles e tragadas, a depressão debulhando culpas que
sequer sabia tê-las, numa catarse autista de bloco do eu sozinho, ocultando as
carapaças e carapuças na transfiguração derradeira. Ah, nunca tive vocação pra
robô, nem bater pontos na chegada ou saída, salários na carteira, um extraviado
entre a miséria e o bezerro de ouro, esmagado por pagar o preço do que não
tinha nem podia. Capitulava da ascensão social, amuado, invisível, e da janela
eu espiava o mundo tão sem amor, desprezo da humanidade por ser o reino da
inumanidade, da desumanização com sua deformação implacável entre a desordem e
a injustiça. Eu ensandecia, não precisava pedir desculpas por existir e não
valer nada, nem mesmo mais apostar que um dia a humanidade tomasse jeito, se nem
amigos ou parentes nem aderentes para fazer uma vaquinha, eu me valia. Era
somente eu e meus outros eus às tapas, compelido a renunciar, pronta pra
resignação, até dizer basta, chega! Enfim, como sempre, só me restava mão
espalmada, linhas apagadas, ontens esquecidos, futuro algum, não diziam nada,
nada a dizer. Pra fugir dessa balbúrdia, vez ou outra, assaltado por Cuscuz
tarde da noite até o dia amanhecer. Tal como todas as outras que se foram e se
danaram pro esquecimento, não era tão bonita, mas jeitosa: os lábios carnudos
alisados por sua língua provocante pronta pra felação a me extasiar de prazer
imerecido; o decote dos peitos volumosos duros que eu adorava me asfixiar
neles; o ventre acuscuzado – razão do seu apelido – a me fazer de deus e rei
pra ser destronado às pressas; umas coxas e pernas realçadas pelo riso do
pódice às reboladas, era aí que ela gostava e eu sozinho aos regalos. Foi ela e
outras tantas peitudas deusas que queriam me enlouquecer e acabar comigo, e
quase conseguiram, fiapinho de nada. Sempre embroncado e liso, afora o plantão
perseguidor de Oficiais de Justiça pro despejo, levando-me por favelas,
sarjetas e perdições que faziam chegar e sair de lugar algum, desterrado. Ah,
minhas noites infindas, meus versos inconclusos. Sempre com a cabeça a prêmio,
escapava o quanto podia das guilhotinas. Não sobrou ninguém dos amigos e amigas
que tivera, antes fossem. Cara pra parede a me perguntar: cadê a vergonha? E eu
é que sei, ora. Cara pro chão, assumi meus erros e desacertos. Quase nada por
posse, juntava os cacarecos: um par de sapatos velhos, um tênis em petição de
miséria, duas calças jeans desbotadas, umas três ou quatro camisas meia-vida,
duas cuecas encardidas, meia dúzia de livros soltando as páginas nas brochuras desencadernadas,
uma bolsa com utensílios pessoais e outras baboseiras. Como nunca me aproveitei
de ninguém, precisava mesmo era dar um trato no corpo e na alma. Nada, se nem salvo-conduto:
o que não mata, engorda! A gente, todo mundo, vai morrer de qualquer jeito. E
sei que não será o fim. Vou até às últimas consequências, não aguento mais a
barulheira. Mergulhei na golada, matei os outros afogados. Nem sabia que morria
por mim mesmo, com um bilhetinho pra ninguém: Era uma vez, assinado: escritor
anônimo. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá é dia de especial com o compositor,
maestro, pianista, cantor, arranjador e violonista brasileiro Tom Jobim
(1927-1994) Live Concert in Montreal & Passarim; a cantora, pianista,
compositora, atriz e produtora musical Alicia
Keys em Concert Mawazine & Concert Live; & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog
& nos 35 Anos de Arte
Cidadã. Para conferir é só ligar o
som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA - [...] As relações entre o ser
humano e o ambiente urbano são extremamente complexas e é impossível separar um
do outro, com suas centenas de processos e atores [...] as atividades humanas desenvolvidas nos
socioecossistemas urbanos são altamente desestabilizadores [...]. Trechos
extraídos da obra Pegada ecológica e sustentabilidade humana (Gaia,
2002), do professor, ecologista e ambientalista Genebaldo Freire Dias. Veja mais aqui.
HEMENÊUTICA FILOSÓFICA - [...] A
universalidade do aspecto hermenêutico, também em outros contextos, não se
deixa restringir ou podar pela arbitrariedade. Não foi um mero artifício de
composição, se eu coloquei o meu ponto de partida na experiência da arte, para
garantir a amplidão correta ao fenômeno do compreender. Aqui a estética do
gênio prestou um trabalho prévio importante, na medida em que dela segue-se que
a experiência da obra de arte sempre ultrapassa, de modo fundamental, todo
horizonte subjetivo de interpretação, tanto o do artista como daquele que
recebe a obra. [...] Toda re-produção é imediatamente interpretação, e quer ser correta
enquanto tal. Nesse sentido, também ela é "compreensão". A
universalidade do ponto de vista hermenêutico não tolera uma restrição, segundo
meu parecer, também lá onde se trata da multiplicidade da tomada dos interesses
históricos, que se reúnem na ciência da história. Certamente que existem muitos
modos de escrever a história e de pesquisar a história. Não se pode dizer, de
modo algum, que toda tomada de interesse histórico tenha seu fundamento na
realização consciente de uma reflexão histórico-efeitual. [...]
A infinitude da conversação, onde
se realiza o compreender, relativiza a própria validação do indizível que se dá
em cada caso. Porém, o compreender, como tal, será o único e adequado acesso à
realidade da história? Evidentemente que o perigo ameaça a partir desse
aspecto, perigo de enfraquecer a verdadeira realidade do acontecer,
especialmente a sua absurdidade e contingência, e falsificá-la em uma forma de
experiência dos sentidos. [...]. Trecho extraído da
obra Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica
(Vozes, 1998), do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Veja
mais aqui.
TEMPOS ATUAIS - [...] se encerrou a tradição
dogmática de passar adiante uma verdade imaculada, iniciando-se a nova tradição
racional de submeter à discussão crítica todas as reflexões. O erro começou a
ser encarado sob outro prisma: em vez de ser um desastre, era uma vitória ou
uma vantagem. O homem dogmático, como os animais e os organismos inferiores,
permaneceu de pé ou caiu com suas teorias. [...]. Trechos extraídos da obra
As ideias de Popper (Cultrix, 1974),
do filósofo, radiodifusor e poeta britânico Bryan Magee.
O JARDIM DAS OLIVEIRAS – [...] Nasci
pelas mãos de minha mãe, mas morrerirei sem o socorro da sua vagina. Tenho a
vida determinada por um começo e um fim. E, embora sujeito e objeto da
história, este começo conheceu data, ano, local, horas precisas. A carteira de
identidade facilita, aliás, meu trânsito pela terra. [...] Sou grato à Luiza. Através dela descobri que
o amor é um lodaçal onde se afundam a ética, a generosidade, o livre-arbítrio.
E que é da sua batalha, e da sua fome, dizimar famílias, devastar a terra,
arrecadar tesouros, a pretexto de enriquecer o ser amado, assegurando-lhe a
felicidade. Sempre a serviço de si mesmo, e daqueles a quem quer bem, o egoísmo
do amor é preverso e limitado, e não conhece castigo, e nem críticas sociais.
Em seu nome, ao contrário, tudo é justificado. Tem desculpas nobres, inventa
princípios que a sociedade consagra constantemente numa roda-viva, sangrenta e
predatória. [...] E para que o amor
me sorria e devolva eu ao mundo um sorriso, devoto-me às pilhagens e aos
espólios. Os meus interesses concentram-se no objeto amado. Nas moedas que
necessito arrastar para a alcova. Amar, pois, é o desastre da coletividade. Mas
a coletividade sem o amor é fria superfície a qual a tirania estabelece para
sempre os seus domínios. O amor por Luíza não me aprimora. Dispersa-me até,
torna-me ainda mais insensível e medroso. Não me arrisco a perder o que
arrecadei nestes nove anos. Ela é a única a conhecer o limite máximo da
sensibilidade da minha pele, o grau de temperatura em fogo do meu corpo, a
gentileza que não deixo deslizar da porta para o mundo concer os seus
atributos. O que somos no quarto trancado a chaves só a nós beneficia, expulsa
a humanidade. Saindo dali, visto a armadura diariamente trocada e sou
grosseiro. Praguejo em vez de solidarizar-me com o outro, de abandonar os bens
terrestres, esquecer os ressentimentos, perdoar. O amor não me ensina a
transferir o excesso do seu arrebato para a casa do vizinho. Não me ajuda a dar
rosto a uma homanidade hoje abstrata para mim. Assim, esta abstração do humano
e o meu amor somados indicam-me a desesperada solidão do ato de amar.
Indicam-me que grudado à cama, agarrado ao corpo do próximo, nada mais faço que
amálo para poder amar a mim mesmo, amá-lo para ser menos só, para assim
alcançar-me e ao mesmo tempo oferecer ao outro a falsa ilusão de que contamos
com a nossa mútua companhia, com o nosso recíproco arrebato. Amar é um ato
solitário e sem repercussão ideológica. Mas, náufrago que sou, resta-me ofertar
à Luiza o meu coração. Dar-lhe o meu futuro, e que o salgue a seu gosto. Ela
ri, acusa-me de ser uma máscara sem passado. Ou um passado com invenções, uma
biografia a que se acrescentam dados móveis e falsos. Asseguro-lhe, então, que
na terra já não tenho espaço. Não sei onde me localizo. [...]. Trechos
extraídos da obra O calor das coisas
(Record, 2009), da premiadíssima escritora e imortal da Academia Brasileira de
Letras, Nélida Piñon. Veja mais aqui e aqui.
CONVICAÇÃO - Aqui,
onde uma mulher se curva / e se inventa,/ é onde de uma dor imensa e turva / se
alimenta. / Aqui, quando tonta e avulsa / se procura, / é onde viva a luta
lenta pulsa / e transfigura. / Aqui, onde o que é e será retorna / ao berço, / é
onde busca âncora, estrela, bigorna / e terço. Poema extraído da obra Canção
das horas úmidas (São Luís, 1973), da poeta Arlete Nogueira da Cruz.
LA BELLE PAULE & LA BELLE
NOISEUSE
A beleza de Paule de Vuiguier (1518-1610), a popularizou como a Belle
Paule, uma senhora de Toulouse do século XVI, conhecida por sua beleza e
imortalizada pela pintura do artista plástico francês Henri Rachou
(1855-1944). Os habitantes da localidade conseguiram das autoridades que a
formosíssima mulher fosse intimada a comparecer, duas vezes por semana, à
janela de sua residência, para ser contemplada. Rezam as crônicas sobre a
tamanha multidão que se aglomerava diante da formosa jovem, que se corria o
risco de perder a vida em tais reuniões. Já o drama La belle noiseuse (A bela intrigante), do
cineasta francês Jacques Rivette é baseado no conto Le chef-d´ouvre
incomu (1831) do autor francês Honoré
de Balzac (1799-1850) e de três contos recolhidos da obra do escritor
estadunidense Henry James
(1843-1916). Veja mais aqui.
Veja mais:
Mesmo
apelando pra sorte, a gente se atrapalha com a obviedade, o pensamento
de John Rawls, a poesia de Isabel Furini, a música de Vanessa Moreno & Fi
Maróstica aqui.
Derluza,
saúde na justiça, Federico
García Lorca, Marquês de Sade, Robert Burns, Jean-Luc Godard, Reay Tannahill, Fernanda Chaves Canaud, Virgílio, Jules Ralph Feiffer, Sebastian
Llobet Ribas & Chilica Contadora de
Histórias aqui.
Tom
Jobim, Virginia Woolf, William Somerset Maughan, Adelaide Cabete, Pompeu
Girolamo Batoni, Renata Bonfiglio Fan, Vivendo & Aprendendo a Jogar &
Servidão humana aqui.
Crônica
de amor por ela & Todo dia é dia da mulher aqui.
Contratos
Administrativos aqui.
Big Shit
Bôbras: a chegada, primeira emboança aqui.
Octavio Paz, Gestão
Ambiental do Trabalho, Psicodrama & Role-Playing aqui.
Fecamepa:
antecedentes & consequências aqui.
Sócrates
& a sofística no pensamento grego aqui.
A
justiça & a injustiça aqui.
&
A ARTE DE ALEX ROSS
A arte
do pintor e ilustrador de quadrinhos estadunidense Alex Ross.