VAMOS APRUMAR A CONVERSA:
SEGUNDA FEIRA, NOTÍCIAS DO DIA
- (BG: Maraton, de Carlos Santana) – 3, 2, 1, no ar! – Ô, macobeba, diminui
esse ar condicionado aí que tô com a garganta engilhada, capaz de sair a voz
tremendo! – Já tá no ar, desgraçado! – Desculpe, falha nossa. Podexá. – Solta o
BG de novo, contando: 3, 2, 1, no ar! (Sobe BG). Na Terra de todos os bichos
são pontualmente... que horas são? O relógio parou! Lascou! Isso é um
vitupério! (Sobe BG) Acidente de Minas Gerais: lama de Mariana deixa Governador
Valadares sem água e já chega no Espírito Santo! (Sobe BG) O rompimento da barragem
de Mariana já um dos maiores acidentes do Brasil (Nossa, que coisa! Putzgrila! Parece
mais aquele tsunami que vitimou vários municípios de Pernambuco e Alagoas em
plena Copa do Mundo de 2010. Só que dessa vez se sabe de quem é a barragem; na
outra, de quem era mesmo a barragem e quem arcou com os prejuízos?!?). Sobe BG:
Protestos contra Cunha movimentam as principais capitais do Brasil! (O cara é
duro na queda! Antes a gente falava de São Benedito; agora, será o Eduardo Cunha?
Pois é, de olho no PL 5069 e mais uma derrota na Suíça deixa o apaideguado na
maior saia-justa! Na trave! Não é futebol não, desajustado! Isto é
Brasilzilzilzilzilzilzilzilzil! Tô de olho!). Sobe BG: Greve dos caminhoneiros
promete parar o país! (Pausa para o comercial: inserção de 15 segundos com a
Wanessa Morgado falando sobre depilador de pererecas e anunciando promoção imperdível
dos de última geração para proctos!). Sobe BG: Muro antigo descoberto no Peru
traz novas informações sobre agrogramas na América Latina! (Rapaz, como é que
aquilo foi parar ali? Ô papo chato da porra! Parece mais o History Channel!).
Sobe BG: Astronomia investiga buraco negro! (Assim não dá! Hum, hum! –
Desenrola aí! Bg Claire de Lune, de Debussy: Procure aliviar o estresse com
respirações profundas, relaxamento corporal e tome muita água durante o dia. Nem
ligue se aparecerem com um pelo de dinossauro, unha de dragão, ou pentelho de
mamute! Você precisa é acabar com essa ansiedade, respire fundo e viva mais!).
Sobe BG (Maraton, Carlos Santana): Indústria recorre aos bancos para pagar 13º
(eita! Tão dizendo que a crise brasileira já poluiu uma grande parcela dos
aquíferos, chegando até a atingir uma placa tectônica que pode provocar maior
mudança geológica do planeta! Bote a coragem em dia e não se atrase: a coisa é
séria e não saia fora da oferta do momento!) Pausa para o comercial: inserção
de quinze segundos de uma bosta qualquer dessa aí! Vai porra, bota o comercial!
É?... ótima oportunidade! Oferta imperdível! De que mesmo? Pelamordedeus, isso
é estelionato! Cadê a reputação? Manda ver no Código de Defesa do Consumidor
aí, meu! Aumenta BG: Seca castiga Rio São Francisco! (Danou-se! Tão matando
mesmo o Velho Chico! Enquanto isso, não fazendo a menor ideia, empresa promete
lançar no mercado um produto revolucionário capaz de atiçar os casais com
relações esfriadas, deles ficarem subindo pelas paredes e andando feito aranha
pelo teto. Peraí, como é que é? Aguarde, lançamento em dezembro. Enquanto isso,
discaí... cadê o número? Ah, nuvem tsunami na Austrália? Vixe! Não tem um lugar
mais pertinho, não? É longe pra caraca! Pô, meu, você não tem o menor senso de
ridículo? Aprumaí, vai!). Sobe BG: Avaliação no país da violência contra
mulheres! Cuma? Já faz tempo que ouço a ladainha, tanto tempo passou e não
melhora, eu não sei por que há tanta demora, pra tirar essa causa a picuinha. A
mulher para mim é ser rainha, ser humano que merece louvação, vem da mãe que é
só adoração, querer bem que se ama e bem-me-quer, todo homem que maltrata a
mulher, não merece jamais qualquer perdão. Sobe BG (créditos, patrocinadores,
legenda geral. Pronto, passou, tudo creditado! Fecha a barraca!). E vamos aprumar a conversa
aqui!
Imagem: Mary Spencer Watson - Sunlight Nude, do pintor britânico George
Spencer Watson (1869-1934).
Curtindo o álbum Il tormento e l’estasi (Torment and Ecstasy, Daroca, 2010), do compositor italiano
Domenico Mazzocchi (1592-1665) &
do compositor Giacomo Carissimi (1605-1674)
& compositor Luigi Rossi
(1597-1653), com Los Musicos de Su Alteza, direção de Luis Antonio
Gonzalez.
COSMOS
– O livro Cosmos (Random House,
1980), do astrônomo e biólogo estadunidense Carl Sagan (1934-1996),
trata sobre divulgação científica abordando sobre as fronteiras do oceano
cósmico, a harmonia dos mundos, céu e inferno, planeta vermelho, histórias de
viajantes, a espinha dorsal da noite, viagem no espaço e no tempo, as vidas das
estrelas, o limite do eterno, a persistência da memória, Encyclopaedia Galactica, quem responde
pela Terra, Reductio ad Absurdum e a Raiz Quadrada do Dois, os Cinco Sólidos
Pitagóricos, entre outros assuntos. Da obra destaco os trechos: [...] A
superfície da Terra é uma fronteira do oceano cósmico. Dele aprendemos a maior
parte do que sabemos. Recentemente, aventuramo-nos no mar o suficiente para
umedecer os pés ou, no máximo, molhar nossos tornozelos. A água parece nos
convidar. O oceano chama. Uma parte do nosso ser sabe que lá é o local de onde
viemos. Demoramos a retornar. Estas aspirações, penso, não são irreverentes,
embora possam perturbar, independente dos deuses que existem. As dimensões do
Cosmos são tão grandes que, se utilizássemos as unidades de distância
familiares, como metros ou milhas, escolhidas pela sua utilidade na Terra,
fariam pouco sentido. Medimos, então, as distâncias com a velocidade da luz. Em
um segundo, um raio de luz percorre 186.000 milhas, aproximadamente 300.000
quilômetros ou sete voltas em torno da Terra; em oito minutos ele viaja do Sol
à Terra. Podemos dizer que o Sol está a oito minutos-luz de distância. Em um
ano ele atravessa perto de dez trilhões de quilômetros, cerca de seis trilhões
de milhas de espaço. Esta unidade de comprimento, a distância que a luz
percorre em um ano, é chamada ano-luz. Mede não o tempo, mas distâncias —
distâncias enormes. A Terra é um lugar. De maneira nenhuma o único lugar, nem
mesmo um lugar típico. Nenhum planeta, estrela ou galáxia pode ser típica, pois
o Cosmos é, em sua maior parte, vazio. O único lugar típico é o vácuo
universal, frio e vasto, a noite interminável do espaço galáctico, um local tão
estranho e desolado que, por comparação, planetas, estrelas e galáxias parecem
dolorosamente raros e adoráveis. Se estivéssemos aleatoriamente inseridos no
Cosmos, a chance de nos descobrirmos em um planeta ou próximo a um deles seria
menos de uma em um bilhão de trilhão de trilhão (1033, um seguido de 33 zeros).
Na vida diária, tais probabilidades são chamadas de "forçadas". Os
mundos são preciosos. De um ponto do espaço intergaláctico privilegiado,
veríamos, espalhados como espuma no mar em ondas do espaço, inumeráveis
punhados de estilhaços de luz pálida. São as galáxias. Algumas são viajantes
solitárias, muitas habitadas por aglomerados comunais em confusão, levadas
eternamente na imensa escuridão cósmica. Diante de nós está o Cosmos, na maior
escala que conhecemos. Estamos no reino das nebulosas, oito bilhões de anos-luz
da Terra, a meio caminho da fronteira do universo conhecido. Uma galáxia é
composta de gás, poeira e estrelas — bilhões e bilhões de estrelas. Cada uma
delas pode ser um sol para alguém. Em uma galáxia existem estrelas e mundos e,
talvez, uma proliferação de formas de vida e seres inteligentes e civilizações
espaciais. Mas de tão longe uma galáxia me lembra uma coleção de objetos,
conchas marinhas, ou talvez corais, produtos do trabalho da Natureza por
eternidades no oceano cósmico. [...] Somos a
personificação local de um Cosmos que cresceu pelo autoconhecimento. Começamos
a contemplar nossas origens: material estelar meditando sobre estrelas; assembleias
organizadas de dezenas de bilhões de bilhões de bilhões de átomos considerando
a evolução dos átomos, traçando a longa jornada através da qual, pelo menos
aqui, a consciência surgiu. Nossas lealdades são para com a espécie e com o
planeta. Nós respondemos pela Terra. Nossa obrigação quanto à sobrevivência é
devida não somente a nós mesmos, mas também a esse Cosmos, antigo e vasto, do
qual surgimos. Veja mais aqui e aqui.
A
MORALISTA – No livro Histórias do amor
maldito (Record, 1967), da romancista, contista e cronista brasileira Diná
Silveira de Queirós (1911-1982), encontro o conto A moralista, o qual
transcrevo: Se me falam em virtude, em moralidade ou
imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu
vejo Mamãe em minha ideia. Mamãe — não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta
branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires.
Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando — só nós três em casa —
vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos,
decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena
atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava nunca, mas
não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a
transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante
daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde
eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros
escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu
prazer. A risada de Mamãe era um "muito obrigada" a meu Pai, que a
adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e
a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a
Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha: — Procure
impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros,
mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista.
Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria
mediunidade... Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas, e
a coisa pegou, em Laterra. Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa
para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia
que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste.
Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia
era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma
vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível.
Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do
Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a
miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas.
Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera,
porém sua voz não subia do tom natural. O moço e a senhora choravam juntos. Papai
ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre
patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em
nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno
negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios. Foi
nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo
não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo
Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe.
De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu
de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam
que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria
aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma
espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia
quando estávamos sós. Nessa época, até um caipira perguntou na feira de
Laterra: — Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora? Contaram a Mamãe.
Ela não riu: — Eu não gosto disso. — E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma
louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se
continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço. Mas, nessa noite,
eu vi sua garganta tremer, deliciada: — Já estão me chamando de
"padra"... Imagine! Ela havia achado sua vocação. E continuou a
aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma
vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito
da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a
noite, que o compadre pediu: — Por que a senhora não faz, aos domingos, uma
prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons
conselhos... Todos acharam ótima a idéia. Fundou-se uma sociedade:
"Círculo dos Pais de Laterra", que tinha suas reuniões na sala da
Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela
fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem
estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai
acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe
fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão
claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo
me perguntava: — Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se
separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente
incorrigíveis? Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço: — Hoje me
trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo
pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre
chorou tanto, implorou... contando a sua miséria. É um desgraçado! Um sonho de
glória a embalou: — Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum
jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é
sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que
dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade! O novo empregado parecia
uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem
fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o
balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai — foram avisá-lo: — Isso não é
gente para trabalhar em casa de respeito! — Ela quis — respondeu meu Pai. — Ela
sempre sabe o que faz! O novo empregado começou o serviço com convicção, mas
tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como
ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes,
Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de
repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma,
porém sorrindo de bondade: — Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e
assim, então... Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir: —
Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos
outros? Erga a cabeça... Vamos! Animado, meu Pai garantia: — Em minha casa
ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso! Não tinha mesmo. Até
os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e
fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar
nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um
leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma
mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como
ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. À hora da reza, ele, que era tão
humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se
chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como
fazia antes. E ficava num canto, olhando tranqüilo, com simpatia. Pouco a pouco
eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos
afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas. Mamãe,
que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um
estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece
que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente,
nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas
compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham
raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar: — Você
não acha que ela consertou... demais? Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa
mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição
que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto
duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua
sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar
dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade
conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase
imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer
absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa. Mamãe foi a última a
notar a paixão que despertara: — Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A
própria mãe o considerava um perdido — chegou a querer que morresse! Eu falo —
porque todos sabem — mas ele hoje é um moço de bem! Papai foi ficando triste.
Um dia, desabafou: — Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você
queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer
um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é
extraordinária! — Mas — disse Mamãe admirada. — Você não vê que é preciso mais
tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um
pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência. Houve uma noite em que
o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca,
levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora —seu
pescoço — naquele gorjeio trêmulo. Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos
brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia feliz e
assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe
fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez
a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava
restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai: — Você tem razão. É
melhor que ele volte para casa. À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada: — Só
nós três jantamos em casa! Ponha três pratos... No dia seguinte, à hora da
reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro
lugar junto de Mamãe: — Saia!... — disse ela baixo, antes de começar a reza.
Ele ouviu — e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos. Todas as cabeças o
seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar
discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite. — Padre Nosso, que
estais no céu, santificado seja o Vosso Nome... Desta vez as vozes que a
acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias. Ele não voltou para a
sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de
Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore.
Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos
chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo
do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma
multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci
de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não
transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela
cidade. Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita
e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora
continuasse agora, sem grande convicção — eu o sabia — a dar os seus conselhos.
Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço. Veja mais aqui.
COGITO, TRÊS DA MADRUGADA
& GO BACK – No livro Os últimos dias de paupéria:
do lado de dentro (M. Limonad, 1982), do poeta, jornalista, letrista e
experimentador da contracultura, Torquato Neto (1944-1972), destaco
inicialmente o poema Cogito: eu sou como eu sou / pronome / pessoal
intransferível / do homem que iniciei / na medida do impossível / eu sou como
eu sou / agora / sem grandes segredos dantes / sem novos secretos dentes / nesta
hora / eu sou como eu sou / presente / desferrolhado indecente / feito um
pedaço de mim / eu sou como eu sou / vidente / e vivo tranquilamente / todas as
horas do fim. Também o poema Três da Madrugada: Três da madrugada / Quase nada / Na cidade
abandonada / Nessa rua que não tem mais fim / três da madrugada / tudo é nada /
a cidade abandonada / e essa rua não tem mais / nada de mim... / nada / noite
alta madrugada / na cidade que me guarda / e esta cidade me mata / de saudade /
é sempre assim... / triste madrugada / tudo é nada / minha alegria cansada / e
a mão fria mão gelada / toca bem leve em mim / saiba: / meu pobre coração não
vale nada / pelas três da madrugada / toda palavra calada / nesta rua da cidade
/ que não tem mais fim / que não tem mais fim. Por fim o poema Go Back: Você me chama / Eu quero ir pro cinema / Você
reclama / Meu coração não contenta / Você me ama / Mas de repente / A madrugada
mudou / E certamente / Aquele trem já passou / E se passou, passou / Daqui pra
melhor, foi / Só quero saber do que pode dar certo / Não tenho tempo a perder. Veja
mais aqui e aqui.
A NATUREZA DO DRAMA – No livro Uma anatomia do drama
(Zahar, 1978), do jornalista, professor de arte dramática, tradutor e crítico
húngaro Martin Esslin (1918-2002), encontro o capítulo A natureza do
drama, do qual destaco o trecho: Em
grego, a palavra drama significa apenas ação. Drama é ação mimética, ação que
imita ou representa comportamentos humanos (à exceção dos poucos casos extremos
de ação abstrata que já mencionei). O que é crucial é a ênfase sobre a ação. De
modo que o drama não simplesmente uma forma de literatura (muito embora as
palavras usadas em uma peça, ao serem escritas, possam ser tratadas como
literatura). O que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento que
reside fora e além das palavras, e que tem de ser visto como ação – ou
representado – para que os conceitos do autor alcancem sua plenitude. [...]
O que o drama tem de imediato e concreto,
bem como o fato de ele forçar o espectador a interpretar o que está acontecendo
a sua frente em uma multiplicidade de níveis, fazendo com ele seja obrigado a
decidir se o tom de voz do personagem era amigável, ameaçador ou sarcástico,
significa que o drama tem todas as qualidade do mundo real, das situações reais
que encontramos na vida – porém com uma diferença fundamental: na vida as
situações que se nos confrontam são reais; no teatro – ou nas outras formas de
drama (rádio, TV, cinema) – elas são apenas representação, faz-de-conta, jogo.
Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
LOVE NEST – A comédia dramática Love Nest (O segredo das viúvas),
dirigida por Joseph Newman, é baseado no romance The Reluctant Landlord
do escritor estadunidense Scott Corbett (1913-2006), contando a história de um
soldado que retorna de Paris para sua cidade natal, espantando-se ao descobrir
que bem-intencionada mas irrealista esposa, investiu todo seu salário em um
deteriorado edifício residencial. A história vai ganhar com outras tramas
envolvendo riqueza e pobreza, num interessante drama de vitórias e perdas,
consequências para umas boas risadas. O destaque do filme vai para a atriz
estadunidense e estrela do cinema mudo Leatrice
Joy (1893-1985), que nesse filme vai contracenar com nada mais nada menos
que o furacão sensual Marilyn Monroe e a não menos bela June Haver. Veja mais
aqui.
IMAGEM DO DIA
Todo dia é dia da controvertida atriz,
modelo e artista popular burlesca estadunidense Dita Von Teese, que reinventou a estética pin-up e do burlesco, tornando-se sex symbol com o livro duplo Burlesque and the Art of
Teese/Fetish and the Art of Teese.
Veja mais no MCLAM: Hoje é dia do
programa Crônica de Amor, a partir das
21hs (horário de verão), com apresentação sempre especial e apaixonante de Meimei Corrêa. Em seguida, o programa Mix
MCLAM, com Verney Filho e na madrugada Hot
Night, uma programação toda especial para os ouvintes amantes. Para
conferir online acesse aqui .