VAMOS
APRUMAR A CONVERSA? E O POEMA SE FEZ DOMINGO – O domingo é tão valioso quanto a segunda
de branco e de ressaca, ou a terça, ou que dia for, não tenho data para louvar,
nem o que comemorar. Para mim, todo dia é dia de tudo sem faltar nada; dia do
que for pra tudo, nada em especial. Tudo de ontem, até agora! Ora, ora. Indagora
mesmo me perguntaram: - O que você faz pra viver? Respondi: - Nada, apenas vivo.
Entendeu? Hehehehehehehehe. Pois é, em pleno domingo dou-me por condenado,
responsável por tudo! Assumo todos os pecados, sei das minhas mazelas. Todavia,
a vida não seria nada se a gente não sucumbisse vez em quando aos infortúnios, manjar
da inhaca dos esgotos. Aprendo com as minhas quedas, se bem que nunca fui
privado doutra coisa que não seja da vertigem abissal da vida. Estou sempre aos
baques, aperfeiçoando o discernimento. Quando tenho o que sou, sei que não sou
nada. Contudo, posso construir um canto, uma esperança, e por que não uma vida?
Da gente, só o que fizermos ficará. Seja de bom ou ruim, é melhor que não fazer
nada. Melhor errar que se omitir nem se acovardar. Não tenho índole pra fugir
da raia, nem cagar fora do penico – Deus proteja os que fraquejam, os que abrem
mão ou os que acham que passam impunes, incólumes; eu erro e erro pra burro, hem? Se meus
desastres fossem dinheiro, estaria hoje multimilionário. Mas pouco importa,
prefiro as aprendizagens, errando, refazendo, recomeçando de novo e tudo de
novo e sempre no sisifismo, sem abrir mão. Pudera fosse assim mesmo, que outro
jeito? Não sou dado ao fácil, muito menos infalível. Sou como qualquer um, só
que errando mais por ter-me o coração nas mãos ou saindo pela goela boca afora.
E fui, e vou, irei, seja lá o que Deus quiser. Não deu, vou de novo, persevero,
persisto, insisto até não mais. Aí, pulo pra outra, ora. Sou bem água mole em
pedra dura, uma dia fura e avacalha. E que o valha! Tomara. Pior que perder a
viagem é nem ter ido. Errou, se arrependeu; não foi, ora, perdeu a
oportunidade, pelo menos, de conferir, experienciar. Prefiro correr o risco do
arrependimento, ao invés de me lamentar pelo que não fiz. E é por isso mesmo
que o domingo se me revela em poesia, em ser-me a poesia como o beijo ardente
da mulher amada em que se sente a vitalidade voluptuosa do seu corpo nu e
latente de prazer dentro do vestido solto, a roçar-lhe os seios e os contornos
corporais, e sentir na minha mão o seu o ventre eruptivo e cobiçado no entre
coxas para conhecer-lhe a prodigalidade de todo prazer de zis sensações por
todo universo a curvar e usufruir do seu corpo pra ser a viola que empunho para
todo meu canto e ela Santa Cecília e despudorada quase desnuda princesa que já
me tinha e qual rainha soberana e possessiva que se torna cônscia serviçal,
submissa, escrava e eu a cometer-lhe os Cantos de Pound na sua carne suculenta,
a lapidar o meu lance de dados de Mallarmé no seu enleio de musa viva e pronta
pra ser seviciada até que tudo dure e eu me perca no abandono de todas as
horas. Pra quem nunca disse adeus – só uma vez! Aliás, só uma única vez eu
disse adeus, porque já não havia mais jeito de se ajeitar e a teimosia e a
incompreensão imperava porque não viu senão como queria a si própria e sem
ver-me a alma entregue e pronta pra varar o mundo além de todos os limites -,
porque pra mim há sempre uma porta aberta para a possibilidade da compreensão e
do perdão. Quando não há perdão, não há saída. E plenamente condenado, nunca
transferi para ninguém meus erros e pecados. São todos meus e eu. Infelizmente,
às vezes a gente faz coisas das quais nem se dá conta. Mas paga por isso. E por
isso mesmo, pago com minhas dores não ter o poder de restituir o dano – mas
quando posso e ao meu alcance ou ao tomar ciência, providencio logo todo e
qualquer ressarcimento. Se esqueci dalgum ou de alguém, estou disposto a
qualquer sanção! Pago no devido, que venha! Braços abertos para qualquer circunstância
e a qualquer momento pra entoar meu canto com a alma pela boca do amor. E vamos
aprumar a conversa aqui.
Imagem: Nus, do
pintor alemão Christian Rohlfs
(1849-1938).
Curtindo o álbum Complete
Piano Works (Sony, 2002), do compositor e maestro espanhol Joaquín Rodrigo (1901-1999), com a pianista Sara Marianovich.
ENRAIZAMENTO CULTURAL – O livro Introdução à Sociologia: complexidade,
interdisciplinaridade e desigualdade social (Atlas, 2013), do sociólogo Pedro Demo, trata sobre o olhar
metodológico, a sociologia desafiada, trajetória humana, debate do
igualitarismo, formas e dinâmicas da sociedade, debate sociológico, pesquisa
social e sociologia pequena. Da obra destaco o trecho Mudança de paradigma
sociológico da parte atinente à sociologia desafiada: [...] surge o enraizamento cultural, próprio da
grande decolagem humana, por meio do processo imemorial de hominização. Por
volta de seis ou sete milhões de anos, um ramos dos primatas separou-se,
tomando caminho evolutivo próprio e se acelerando por volta de duzentos mil
anos. Surge a humanidade. O bipedismo e o uso de utensílios foram resposta aos
desafios ecológicos, na savana e na floresta. Com o tempo, preferiu-se o solo
às copas das árvores, desenvolvendo-se habilidade de locomoção ereta e tipo de
corpo bem adaptado. Conhecemos ainda muito pouco tais origens. Mas, como a
ausência de prova não é necessariamente prova da ausência, parece cada vez mais
claro que somos, de uma parte, apenas ramos mais evoluído na aventura cósmica,
biológica e cultural, e, de outra, que temos nossas originalidades relativas,
em particular a habilidade da inteligência reconstrutiva política. A ciência,
que não dispõe a aceitar a hipótese do criacionismo, segundo a qual o ser
humano teria sido criado por Deus ou por algum ser superior, prefere
compreender o ser humano no processo evolucionário, agora também visto como
histórico desde sempre. Embora o ser humano seja típico processo de emergência
evolutiva, não é entidade especial no sentido de que é superior; assim, o fato
de nosso cérebro produzir pensamento complexo não significa que seja superior,
mas apenas mais evoluído. Para o processo evolucionário, ao final, tudo é
apenas questão de tempo e circunstância: se começasse de novo, não poderia ser
o mesmo, pois é irreversível como toda formação histórica; poderiam surgir
outros seres mais ou menos inteligentes que nós, ou que já tivessem sido
exterminados prematuramente, ou que fossem mais felizes que nós. [...] Ao lado da sexualidade, o ser humano
desenvolve o erotismo, tipo de relação que polariza as pessoas, primeiro entre
os sexos diferentes, mas igualmente entre todas as pessoas, porque parte
integrante de qualquer relação social. O eros é filho do espirito e do sexo,
provocando o auto-embriagamento de ambos. Desborda as partes genitais e está
sempre próximo do imundo. Não conhece regras. Penetra até mesmo a religião,
sobretudo em suas manifestações místicas. Alimenta-se de profundezas
subterrâneas que jamais dominamos a contento. Eleva-nos e perturba-nos,
enobrece-nos e arrasta-nos, desafia-nos e faz-nos sofrer. Geralmente, porém
ressaltam-se no ser humano a racionalidade (do homo sapiens) e a técnica (do
homo faber). Sabemos já que tais caracteres também são encontrados nos animais,
por exemplo, nos comportamentos expressos para fugir do perigo, buscar
alimento, reproduzir-se. Mais original dos humanos parecer ser a prática do
mito e magia, ainda que as ciências os denunciem como irracionais. Parece claro
que são parte, tanto dos humanos, quanto de sua racionalidade. Momentoso é
certamente o fato de que a racionalidade iria conhecer desenvolvimento
extraordinário, até tornar-se nas visões modernistas de cariz europeu algo
excessivo e unilateral. Há que manter a conexão com o homo faber e sapiens,
acrescendo-se o homo demens, ludens e mythologicus. [...] Toda sociedade humana engendra sua noosfera,
o mundo das coisas do espirito, saberes, crenças, mitos, lendas, ideias. Aí
nascem entidades, gênios e deuses, ideias-força que podem tomar vida própria
com base na crença e na fé. [...] Pode-se
aludir ainda à unidade humana diante da morte, além da unidade cultural e
sociológica, expressa, por exemplo, em certo modelo universal de sociedade,
marcado por parentesco, regulação da sexualidade, exogamia, etc. Cultura humana
são propriamente culturas, assim como linguagem são línguas. [...] Como, porém, é complexa essa identidade, é
também ambivalente, paradoxal. O que nos une também nos separa, a começar pela
linguagem e pela cultura – o patrimônio no fundo comum não impede a
incompreensão, a ponto de vermos apenas a diferença. Existe unidade e
diversidade humana, pela biológica e cultural. [...]. Veja mais aqui.
SINFONIA
PASTORAL – No romance Sinfonia Pastoral (Livros do Brasil, s/d), do
escritor francês Prêmio Nobel de Literatura de 1947, André Gide (1869-1951), destaco o trecho: [...] A
mulher ajoelhada levantou-se. Não era uma parente, como a princípio supus, mas
simplesmente uma vizinha, uma amiga, que a criada fora procurar ao ver sua
patroa enfraquecer, e que se oferecera para velar o corpo... A velha, disse-me
ela, se extinguira sem sofrimento. Pusemo-nos de acordo sobre as providências a
tomar para o enterro e a cerimônia fúnebre. Como tantas vezes antes, nesta
região perdida, cabia a mim decidir tudo. Não me agradava a ideia, confesso, de
deixar aquela casa, por mais pobre que fosse a sua aparência, aos cuidados
apenas daquela vizinha e daquela criada criança. Não me parecia absolutamente
provável, no entanto, que houvesse em algum recanto daquela miserável habitação
algum tesouro escondido... E o que poderia eu fazer? Perguntei, entretanto, se
a velha não deixava nenhum herdeiro. A vizinha apanhou então a vela, que
dirigiu para uma pequena lareira, e pude distinguir, acocorado sobre a laje, um
ser indefinido, que parecia adormecido. A espessa massa de seus cabelos
cobria-lhe quase que inteiramente o rosto. ― Esta menina cega. Uma sobrinha,
pelo que diz a criada. É a que se reduz a família, parece. Será preciso
colocá-la no asilo, senão não sei o que poderá lhe acontecer. Eu me chocava por
ouvir decidir assim a sua sorte diante dela, preocupado com o sofrimento que
aquelas palavras brutais lhe poderiam causar. ― Não a acorde ― disse
mansamente, para convidar a vizinha, pelo menos, a baixar a voz. ― Oh! Não
creio que durma, mas é uma idiota, não fala e não compreende nada do que se
diz. Estou neste quarto desde a manhã e ela praticamente não se moveu. A
princípio achei que fosse surda, a criada diz que não, mas simplesmente que a
velha, ela própria surda, nunca lhe dirigia a palavra, nem a ninguém mais, não
abrindo a boca havia muito tempo a não ser para que o senhor... ― Que idade tem
ela? ― Uns quinze anos, suponho. Mas não sei mais do que o senhor... Não me
veio imediatamente a ideia de tomar eu mesmo conta daquela pobre abandonada,
mas depois de ter rezado ― ou mais exatamente durante a prece que fiz, entre a
vizinha e a pequena criada, ambas ajoelhadas à cabeceira da cama, eu também
ajoelhado ― pareceu-me subitamente que Deus colocava em meu caminho uma espécie
de obrigação, e que eu não poderia me furtar a ela sem certa covardia. Quando
me levantei, estava tomada minha decisão de levar a criança naquela mesma
noite, ainda que não me houvesse claramente perguntado o que faria dela a
seguir, nem a quem a confiaria. Permaneci ainda alguns instantes a contemplar o
rosto adormecido da velha, cuja boca enrugada e funda parecia repuxada como os
cordões de uma sacola de avarento, instruída para nada deixar escapar. Depois,
voltando-me na direção da cega, comuniquei à vizinha minha intenção. ― Será
melhor que ela não esteja mesmo aqui amanhã, quando vierem buscar o corpo ―
disse ela. E foi tudo. Muitas coisas se fariam facilmente, sem as quiméricas
objeções que os homens se comprazem às vezes em inventar. Desde a infância,
quantas vezes somos impedidos de fazer isto ou aquilo que desejaríamos,
simplesmente porque escutamos repetir à nossa volta: ele não poderá fazê-lo... A
cega deixou-se levar como uma massa involuntária. Os traços de seu rosto eram
regulares, bastante bonitos, mas absolutamente inexpressivos. Eu apanhara um
cobertor no enxergão onde ela habitualmente devia repousar, num canto do
quarto, sob uma escada interna que levava ao celeiro. A vizinha mostrara-se
prestativa e me ajudara a embrulhá-la cuidadosamente, pois a noite, muito
clara, estava fresca, e, depois de acender a lanterna do cabriolé, parti
levando encolhido contra mim aquele embrulho de carne sem alma e do qual eu só
percebia a vida pela comunicação de um calor tenebroso. Durante todo o caminho,
eu pensava: ela dorme? E em que negro sono... E em que a vigília difere aqui do
sono? Hóspede deste corpo opaco, uma alma sem dúvida aguarda, emparedada, que
venha enfim, tocá-la algum raio de vossa graça, Senhor! Permitireis que meu
amor, talvez, afaste dela as terríveis trevas?... Preocupo-me demais com a
verdade para calar sobre a dolorosa acolhida que tive de suportar em minha volta
ao lar. Minha mulher é um jardim de virtudes e, mesmo nos momentos difíceis que
nos aconteceu por vezes atravessar, não pude duvidar nem por um instante da
qualidade de seu coração, mas sua caridade natural não gosta de ser
surpreendida. É uma pessoa disciplinada, que cuida de não ir além, não mais do
que de não ficar aquém do dever. Sua própria caridade é medida, como se o amor
fosse um tesouro esgotável. Este é o nosso único ponto de divergência... Seu
primeiro pensamento, ao me ver voltar naquela noite com a menina, escapou-lhe
nesse grito: ― Do que mais ainda você foi se ocupar? Como todas as vezes em que
deve haver uma explicação entre nós, comecei por fazer saírem as crianças que
ali estavam, boquiabertas, cheias de interrogação e surpresa. Ah! Quão longe
estava aquela acolhida da que eu poderia ter desejado. Apenas a minha pequena
Charlotte começou a dançar e a bater palmas quando compreendeu que algo novo,
algo vivo, iria sair do cabriolé. Mas os outros, já adestrados pela mãe,
trataram rapidamente de esfriá-la e de fazê-la voltar à seriedade. Houve um
momento de grande confusão. E como nem minha mulher nem as crianças sabiam
ainda que estavam diante de uma cega, não compreendiam o extremo cuidado que eu
tomava para guiar seus passos. Eu mesmo fiquei muito embaraçado com os
estranhos gemidos que começou a lançar a pobre enferma tão logo minha mão
abandonou a sua, que eu segurara por todo o trajeto. Seus gritos nada tinham de
humano, dir-se-iam os ganidos queixosos de um cãozinho. Arrancada pela primeira
vez do estreito círculo de sensações costumeiras que constituíam todo o seu
universo, seus joelhos se dobravam sob ela, mas, quando empurrei uma cadeira em
sua direção, deixou-se cair por terra, como alguém que não soubesse sentar-se;
levei-a então ao pé da lareira, e ela recuperou um pouco de calma ao poder se
acocorar, na posição em que eu primeiro a vira ao pé da lareira da velha,
apoiada na guarda da laje. Já no cabriolé ela se deixara deslizar para baixo do
assento e fizera toda a viagem encolhida a meus pés. Minha mulher, apesar de
tudo, me ajudava, ela em quem o movimento natural é sempre o melhor. Mas sua
razão ininterruptamente luta e com frequência a conduz contra seu coração. ― O
que você pretende fazer disto? ― recomeçou ela depois que a menina estava
instalada. Minha alma estremeceu ao ouvir o emprego daquele neutro, e me foi
difícil dominar um movimento de indignação. Entretanto, ainda imbuído de minha
longa e tranquila meditação, me contive e, voltado para todos eles que
novamente nos rodeavam, uma das mãos pousada sobre a fronte da cega: ― Trago a
ovelha desgarrada ― disse, com o máximo de solenidade que pude. Mas Amélie não
admite que possa haver nada de insensato ou de exagerado no ensinamento do
Evangelho. Vi que ela ia protestar e foi então que fiz um sinal a Jacques e
Sarah que, acostumados às nossas pequenas desavenças conjugais, e ademais pouco
curiosos por natureza (com frequência até mesmo insuficientemente, na minha
opinião), saíram com os dois menores. Depois, como minha mulher permanecia
ainda confusa e um pouco exasperada, parecia-me, com a presença da intrusa: ―
Pode falar diante dela ― acrescentei ― a pobre criança não compreende nada. Amélie
começou então a afirmar que não tinha nada a me dizer ― o que é o prelúdio
habitual das explicações mais longas -, e que só tinha que se submeter como
sempre ao que eu pudesse inventar de menos prático e de mais contrário aos
costumes e ao bom senso. Já escrevi que não me havia absolutamente definido
quanto ao que pretendia fazer com aquela criança. Eu ainda não entrevira, senão
muito vagamente, a possibilidade de instalá-la em nosso lar e posso quase dizer
que foi Amélie quem primeiro me sugeriu essa ideia quando me perguntou se eu
achava que "não éramos já bastantes na casa". Depois ela declarou que
eu sempre ia em frente sem nunca me preocupar com a resistência dos que me
seguiam, que quanto a ela já lhe parecia que cinco filhos eram suficientes, que
desde o nascimento de Claude (que exatamente naquele momento, como que ouvindo
seu nome, pôs-se a berrar em seu berço) ela tinha "a sua quota" e que
se sentia exausta. Às primeiras frases de seu ataque, algumas palavras de
Cristo me subiram do coração aos lábios, que no entanto contive, pois me
pareceu sempre impróprio abrigar minha conduta atrás da autoridade do livro
santo. Mas desde que argumentou com seu cansaço fiquei embaraçado, pois
reconheço que me aconteceu mais de uma vez deixar pesar sobre minha mulher as
consequências dos impulsos irrefletidos de minha devoção. Contudo, aquelas recriminações
me esclareceram quanto ao meu dever; supliquei então muito suavemente a Amélie
que examinasse se em meu lugar ela não teria agido da mesma forma e se lhe
teria sido possível deixar ao abandono um ser que evidentemente não tinha mais
em quem se apoiar; acrescentei que não me iludia quanto à carga de novos
trabalhos que o cuidado com aquela hóspede enferma acrescentaria às
preocupações domésticas, e que meu pesar era de não poder secundá-la com mais
frequência. Enfim, acalmei-a o melhor que pude, suplicando-lhe também de não
deixar recair sobre a inocente um ressentimento que esta nada fizera por
merecer. Depois, fiz-lhe notar que, de ora em diante, Sarah estaria em idade de
ajudá-la mais, Jacques de não precisar de seus cuidados. Em suma, Deus colocou
em minha boca as palavras necessárias para ajudá-la a aceitar o que estou certo
teria assumido de boa vontade, se o acontecimento lhe tivesse dado tempo de
refletir e se eu não houvesse daquela forma disposto de sua vontade pela
surpresa. Eu julgava a partida praticamente ganha, e já minha cara Amélie se
aproximava afavelmente de Gertrude. Mas subitamente sua irritação explodiu com
mais violência quando, tendo apanhado a lanterna para examinar um pouco a
criança, ela se apercebeu de seu estado de sujeira indescritível. ― Mas é uma
imundície ― exclamou. ― Escove-se, escove-se rápido. Não, aqui não. Vá se
sacudir lá fora. Ai, meu Deus As crianças vão ficar cobertas disto. Não há nada
no mundo de que eu tenha mais medo do que de piolhos e vermes. Inegavelmente, a
pobrezinha estava cheia deles: e eu não pude me defender de um movimento de
repugnância ao me lembrar que a havia tão longamente apertado contra mim no
cabriolé. Ao voltar dois minutos mais tarde, depois de me ter limpo o melhor
que pude, encontrei minha mulher desabada sobre uma poltrona, a cabeça entre as
mãos, presa de uma crise de soluços. ― Não pensava submeter sua paciência a uma
prova com esta ― disse-lhe ternamente. ― Seja como for, é tarde, e não se pode
ver suficientemente. Ficarei de vigília para cuidar do fogo junto ao qual
dormirá a menina. Amanhã nós lhe cortaremos os cabelos e a lavaremos
devidamente. Você só começará a se ocupar dela quando puder olhá-la sem horror.
― E implorei-lhe que nada dissesse sobre aquilo às crianças. Era hora de cear.
Minha protegida, em cuja direção nossa velha Rosalie, sempre nos servindo,
lançava inúmeros olhares hostis, devorou avidamente o prato de sopa que lhe
estendi. A refeição foi silenciosa. Eu teria apreciado contar minha aventura,
falar às crianças, emocioná-las fazendo-as compreender e sentir a estranheza de
uma miséria tão absoluta, excitar sua piedade, sua simpatia para com aquela que
Deus nos convidava a recolher; mas receei reavivar a irritação de Amélie.
Parecia que havia sido dada a ordem para ignorar e esquecer o acontecido, ainda
que certamente nenhum de nós pudesse pensar em outra coisa. Fiquei extremamente
emocionado quando, mais de uma hora depois que todos se deitaram e que Amélie
me deixara só na sala, vi minha pequena Charlotte entreabrir a porta, avançar
mansamente, de camisola e descalça, e se atirar então a meu pescoço, e me
abraçar com selvageria, murmurando: ― Eu não dei boa-noite direito. Depois,
baixinho, mostrando com a ponta de seu dedinho a cega que descansava
inocentemente e que ela sentira curiosidade de rever antes de se entregar ao
sono: ― Por que é que eu não a beijei? ― Você a beijará amanhã. Por enquanto,
vamos deixá-la. Ela está dormindo ― disse-lhe, acompanhando-a até a porta. Voltei
então a me sentar e trabalhei até a manhã, lendo e preparando meu próximo
sermão. Sem dúvida, eu pensava (lembro-me), Charlotte se mostra hoje muito mais
afetuosa do que seus irmãos mais velhos, mas cada um deles, naquela idade, não
me enganou a princípio? Meu grande Jacques, mesmo, hoje tão distante, tão
reservado... Acreditamos que são ternos, eles são bajuladores e indolentes. [...] Veja mais aqui.
O MOMENTO, O CORAÇÃO &
A SOMBRA – O livro A porta (The door – Rocco, 2013), da premiadíssima
escritora e crítica literária canadense Margaret
Atwood, reúne poemas da autora, entre os quais destaco O momento: O momento quando, após muitos anos / de trabalho duro e uma longa
travessia / te encontras no centro do teu quarto, / casa, meio acre, milha
quadrada, ilha, país / sabendo por fim como lá chegaste, / e dizes, eu possuo isto, / é o mesmo
momento em que as árvores desatam / os seus macios braços em teu redor, / as
aves retiram a sua língua, / as falésias fissuram e colapsam, / o ar vem
devolvido de ti como uma onda / e tu não consegues respirar. / Não, murmuram eles. Tu não possuis nada. / Tu foste um
visitante, uma e outra vez / subindo a colina, cravando a bandeira,
proclamando. / Nós nunca te pertencemos. / Tu nunca nos encontraste. / Foi
sempre o contrário. Também o poema Coração coração: Algumas pessoas
vendem o sangue. Você vende o coração. / Era isso ou a
alma. / O difícil é tirar a porcaria lá de dentro. / Uma espécie de
torção, como tirar da concha uma ostra, / sua coluna um
punho, / e então, upa! ei-lo em sua boca. / Você se vira
parcialmente do avesso / como uma anêmona do mar tossindo uma pedra.
/ Há um
chape curto, o ruído alto / de entranhas de peixe caindo num balde,
/ e lá está
ele, um imenso coágulo brilhante vermelho-escuro / do passado ainda
vivo, inteiro no prato. / Passam-no ao redor. É escorregadio.
Derrubam-no, / mas também o experimentam. Áspero demais, um
diz. Salgado demais. / Azedo demais, diz outro, fazendo careta.
/ Cada um é
um gourmet momentâneo, / e você fica ali ouvindo tudo isso
/ no canto,
como um garçom recém-contratado, / a mão reservada e competente na ferida
escondida / no fundo da camisa e do peito, / timidamente, sem
coração. Por fim, o
seu belíssimo poema A voz da sombra: Minha sombra me perguntou: / O que se passa? / A lua não é quente / O
suficiente para ti? / por que necessitas / do cobertor de outro corpo / cujo
beijo é mofo? / Em redor das mesas de piquinique / as mãos rosadas sustêm
sanduiches / desintegrados pela distância. As moscas / voam sobre a doçura do
instante / Tu sabes o que há nessas mantas / As àrvores se dobram sob o peso / dos
meninos que disparam suas armas. / Deixá-oos em paz. Que joguem / Os seus
próprios jogos. / Te dou água, te dou certezas limpas / Não há suficientes
palavras / flutuando em tuas veias / tanto para manter como para seguir? Veja mais aqui.
MULHERES
NUAS – A
peça teatral Mulheres nuas (1990), de Márlio Silveira Silva, encenada pelo
catarinense Grupo Círculo - Aline
Maya, Graziela Meyer e a cantora Emília Carmona -, que
reúne artistas diferentes em seus projetos, reúne uma proposta de surrealismo,
humor negro, poesia, filosofia, transgressões sexuais, a mulher e a questão de
gênero, o casamento e a sociedade, tudo com movimento, objeto, som,
mediocridade, frustrações, confusões, palavrões, dores e prazeres, gozos e
repressão, loucura e tensão, nojo e tesão, avançando para romper com todos os
limites físicos, morais e sociais, com desnudamento poético, físico e
psicológico das mulheres em cena. Veja mais aqui.
GAROTA
DE IPANEMA – Quem não foi embalado nos anos 1960/70 pelo samba bossa
nova Garota de Ipanema, da dupla ilustre Tom
Jobim & Vinicius de Morais: Olha
que coisa mais linda / Mais cheia de graça / É ela menina / Que vem e que passa
/ Num doce balanço / A caminho do mar / Moça do corpo dourado / Do sol de
Ipanema / O seu balançado é mais que um poema / É a coisa mais linda que eu já
vi passar / Ah, por que estou tão sozinho? / Ah, por que tudo é tão triste? /
Ah, a beleza que existe / A beleza que não é só minha / Que também passa
sozinha / Ah, se ela soubesse / Que quando ela passa / O mundo inteirinho se
enche de graça / E fica mais lindo / Por causa do amor. Essa canção inspirada
na empresária e apresentadora Helô
Pinheiro, virou trilha sonora nacional, que rompeu as barreiras
territoriais de alcançar o planeta. A obra virou filme em 1967, pelas mãos do
cineasta, documentarista e escritor Leon
Hirszman (1937-1987). Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte do pintor, ilustrador, etnólogo,
historiador e caricaturista mexicano Miguel
Covarrubias (1904-1957).
DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada ao poetamigo Natanael Lima & Domingo com Poesia. Veja mais a respeito aqui, aqui e aqui.