VAMOS APRUMAR A CONVERSA?
PORQUE HOJE É SÁBADO –
Quando é sábado tudo finda pra recomeçar. Os últimos poderão ser os primeiros,
quem sabe. Cada qual, coisa e tal. Se o dia logo amanhece, logo se renovam as
esperanças. Pode não ser a hora certa, mas o riso pode se fazer presente com os
raios do Sol. É um novo dia e, por isso mesmo, tudo pode acontecer. Até o
impossível. Feito luz que se propaga e segue adiante, como a correnteza do rio
até desembocar não sei onde. Sei que vou, voo, sei que todos vamos, segundo
a segundo, minuto a minuto, de hora em hora. Pra onde? Que importa? Nascemos
nus e desprovidos de qualquer posse. Quem prevê o futuro? No máximo sabemos de
ontem. De hoje? Só o aqui e agora, nada mais além do átimo que chega e já se
foi e a gente nem percebe que vamos, e indo sem saber pra onde nem de nada. Só
que vamos. Ou não. Pode ser que sintamos a ida, podendo até estarmos todos
imobilizados na camisa de força do tempo e do espaço, mesmo que nem sintamos
nada disso. Só que tudo vibra de vitalidade na contagem regressiva da nossa
existência. Perplexidade? Nada, o infinito só é vasto por ser infinito. E nós, na
nossa finitude, julgamos que sabemos ou que podemos algo mais. E podemos, sim,
não como pensamos ou queremos, nada é como pensamos ou queremos, nada é
previsível e que, de fato, somos bem maior do que imaginamos e nem nos damos
conta disso de tão mergulhados que estamos no nosso egoísmo e mesquinharia.
Podíamos até fazer que não sabemos de nada, que não queremos sequer pensar
nisso ou que algo nos assalte a calma e o conforto, e nos mostre que um algo
mais misterioso pode nos dar a percepção de algo, na verdade, tão natural: nós
mesmos. Que temor do desconhecido, se é do ignoto que surgimos. Que nada mais
saber-me cônscio do que possa ocorrer pelo que já passou. O fato é que o futuro
bate à porta. Abrirás? Senão a caverna não deixará de existir em nós ou nós
jamais sairemos de nossas tenebrosas cavernas irreconhecíveis. Eu vou, vamos?
Pra onde, não sei. Para quê saber. Sei que vou como quem não sabe o caminho. E
não sei mesmo, muito menos onde vai dar por chegada. Que da vida eu recolha as
lições que me façam melhor que sou, maior que meu tamanho e com o infinito
incomensurável todo buliçoso dentro da minha finitude. Quem dera nada fosse
previsível, ser por ser e só. Viver por viver, nada mais. Viver como as
plantas, as árvores, o vento, o Sol, o ar, a Terra, o fogo e tudo. E me
sentisse uno, eu e tudo, naturalmente. Quem dera fosse água sempre na corrente
indo para o mar e o mar pra onde? Afinal, quando é sábado a gente dá-se ao luxo
das asas à imaginação. Eu quero aurora dos meus olhos viver a eclosão do dia...
um novo dia! E vamos aprumar a conversa aqui.
Imagem: The model (1922), do pintor do Surrealismo belga René Magritte (1898-1967). Veja mais
aqui.
Curtindo o álbum Works for Harmonium – vol. 3 (1998), do compositor alemão Sigfrid Karg Elert
(1877-1933), com Johannes Mathias Michel.
SOU
LIVRE?
– No livro O filósofo ignorante (Martins
Fontes, 2001), do escritor, dramaturgo e filósofo iluminista francês Voltaire (François Marie Arouet/1694-1778), o
autor faz uma síntese dos principais pontos de sua filosofia, apresentando-os
em forma de perguntas ou “ignorâncias”. Ao discutir tópicos como o sentido da
vida, a liberdade, a moral, a natureza e a justiça, Voltaire procura manter uma
postura humilde, sem perder de vista as limitações do conhecimento humano, mas
sempre com o espírito crítico e mordaz que contribuíram para que se tornasse um
dos pensadores mais populares da modernidade. Da obra destaco o trecho Sou
livre?: Não saiamos ainda do círculo de
nossa existência; continuemos a examinar-nos tanto quanto pudermos. Lembro-me
que um dia, antes estivesse colocado todas as questões precedentes, um
raciocinador quis fazer-me raciocinar. Perguntou-me
se eu era livre; respondi-lhe que não estava na prisão, que tinha a chave de
meu quarto, que era perfeitamente livre. Não é isto que vos pergunto,
respondeu-me. Acreditais que vossa vontade tem a liberdade de querer ou de não
querer jogar-vos pela janela? Pensais, com o anjo da Escola, que o livre
arbítrio seja uma potência apetitiva e que se perca pelo pecado? Olhei o meu
homem fixamente para tentar ler em seus olhos se não tinha perdido o espírito e
respondi-lhe que nada entendia de seu galimatias. Contudo, essa questão sobre a
liberdade do homem interessou-me vivamente. Li os escolásticos e, como eles,
permaneci nas trevas. Li Locke e vislumbrei raios de luz. Li o Tratado de
Collins, que me pareceu Locke aperfeiçoado, e depois disso nada mais li que me
desse um novo grau de conhecimento. Eis o que minha fraca razão concebeu,
auxiliada por esses dois grandes homens, os únicos, em minha opinião, que se
compreenderam a si mesmos escrevendo sobre essa matéria, e os únicos que se
fizeram compreender pelos outros. Nada é sem causa. Um efeito sem causa é
apenas uma palavra absurda. Todas as vezes que quero, isto só pode ocorrer em
virtude de meu juízo bom ou mau; esse juízo é necessário, portanto minha
vontade também o é. Com efeito, seria muito singular que toda a Natureza, todos
os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um animalzinho de cinco
pés de altura que, menosprezando tais leis, pudesse agir sempre como lhe
agradasse, ao sabor de seu capricho. Agiria ao acaso e sabe-se que o acaso nada
é. Inventamos essa palavra para exprimir o efeito conhecido de toda causa
desconhecida. Minhas ideias entram necessariamente em meu cérebro; como minha
vontade, que delas depende, seria, ao mesmo tempo, necessitada e absolutamente
livre? Em mil ocasiões sinto que essa vontade nada pode: quando a doença me
abate, quando a paixão me transporta, quando meu juízo não pode alcançar os
objetos que me são apresentados, etc. Devo, pois, admitir que, sendo as leis da
Natureza sempre as mesmas, minha vontade não é mais livre nas coisas que me
parecem indiferentes, do que naquelas em que me sinto submetido a uma força
invencível. Ser verdadeiramente livre é poder. Quando posso fazer o que quero,
eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero, pois de outro
modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade
consiste em andar quando quero andar, desde que não sofra de gota. Minha
liberdade consiste em não fazer uma ação má quando é representada por meu
espírito como necessariamente má; em subjugar uma paixão quando meu espírito faz-me
senti-la como perigosa, e quando o horror dessa ação combate poderosamente meu
desejo. Podemos reprimir nossas paixões, como já anunciei no capítulo XI, mas
nesse caso não somos livres nem ao reprimir nossos desejos nem ao nos deixarmos
arrastar por nossas inclinações, visto que em ambos os casos seguimos
irresistivelmente nossa última ideia, e esta é necessária; portanto, faço
necessariamente o que ela me dita. É estranho que os homens não estejam
contentes com essa porção de liberdade, isto é, com o poder que receberam da
Natureza para fazer o que quiserem em muitos casos. Os astros não a têm; nós a
possuímos e nosso orgulho leva-nos a crer que às vezes possuímos ainda mais.
Imaginamos que temos o dom incompreensível e absurdo de querer, sem outra razão,
sem outro motivo senão o de querer. Vide o capítulo XXIX. Não, não posso
perdoar o Dr. Clarke por ter combatido com má fé essas verdades, cuja força
percebia e que pareciam acomodar-se muito mal em seu sistema. Não, não é
permitido a um filósofo como ele atacar Collins como sofista e desviar o centro
da questão, reprovando Collins por ter chamado o homem de "agente
necessário". Agente ou paciente, que importa? Agente, quando se move
voluntariamente; paciente, quando recebe as ideias. O que o nome faz com a
coisa? O homem é um ser dependente em tudo, e não pode ser excetuado entre os
outros seres. O pregador que existia em Samuel Clarke abafou o filósofo.
Distingue a necessidade física e a necessidade moral. Que é uma necessidade
moral? Há de parecer-vos verossímil que uma rainha da Inglaterra, coroada e
sagrada numa igreja, não venha despojar-se de seus trajes reais para
estender-se sobre o altar, completamente nua, embora se conte uma aventura
semelhante a respeito de uma rainha do Congo. Chamareis a isto de
"necessidade moral" numa rainha de nossos climas, mas, no fundo, é
uma necessidade física, eterna, vinculada à constituição das coisas. É tão
certo que essa rainha não fará tal loucura, quanto é certo que morrerá um dia.
A necessidade moral é apenas uma palavra, tudo o que se faz é absolutamente
necessário. Não há intermediário entre a necessidade e o acaso, e sabeis que
não há acaso; portanto, tudo o que ocorre é necessário. Para complicar mais a
coisa, imaginou-se, ainda, distinguir necessidade e constrangimento, mas, no
fundo, que é o constrangimento senão uma necessidade de que nos apercebemos? E
a necessidade não é um constrangimento de que não nos apercebemos? Há uma
necessidade igual quando Arquimedes é obrigado a permanecer em seu quarto porque
o trancaram aí, como quando está tão ocupado com um problema que não recebe a
ideia de sair. Ducunt volentem fata, nolentem trahunt. (Sên., Ep. CVIl.) O
ignorante que hoje pensa assim não pensou sempre dessa maneira, mas, enfim, foi
constrangido a submeter-se. Veja mais aqui e aqui.
O
TESOURO – O romance O tesouro
(1904 – Cavalo de Ferro, 2010), da escritora sueca Prêmio Nobel de 1909, Selma Lagerlöf (1858-1940), é
uma espécie de fábula com central no bem e no mal e as dúvidas que permeiam as
ideias dos personagens no conflito por optar diante das encruzilhadas da vida.
Da obra destaco o trecho: [...]
Bastante depois da meia-noite saíram uns
quantos homens da casa da herdade, em Branehög, para selarem os cavalos e
dirigirem-se a suas casas. Quando saíram para o pátio viram uma fogueira
crepitando no ar, do lado norte. Então, voltaram a correr para dentro de casa,
exclamando: — Levantai-vos! Levantai-vos! O presbitério de Solberga está a
arder! Entre os comensais havia muita gente, e os que tinham cavalos saltaram-lhes
para a garupa e puseram-se logo a caminho do presbitério. Os que tiveram de ir
a pé correram até lá, chegando quase ao mesmo tempo. Quando as gentes chegaram
ao presbitério não se via ninguém a pé ou em movimento; pelo contrário, todos
pareciam estar a dormir, apesar de a fogueira crepitar bem alta. Porém, nenhuma
das casas ardia, apenas um grande monte de vime, palha e lenha, que tinha sido
despejado junto à parede da velha casa do padre. Não tinha ardido durante muito
tempo. As chamas ainda não tinham feito mais do que enegrecer a boa madeira da
parede e derreter a neve acumulada sobre o telhado. Começavam agora a chegar ao
colmo do telhado. Todos perceberam imediatamente que se tratava de incêndio
criminoso, e começaram a perguntar-se se o senhor Arne e a sua criadagem
realmente dormiriam, ou se lhes teria acontecido alguma desgraça. Antes de os
salvadores entrarem na casa empurraram com longas varas a fogueira ardente para
longe da parede e, trepando até ao telhado, arrancaram a palha que fumegava,
antes que esta pegasse fogo. Depois, com o intuito de entrarem e acordarem o
senhor Arne, alguns homens dirigiram-se à porta da casa, mas quando o que ia à
frente chegou ao limiar, desviou-se para o lado e deu lugar ao que ia a seguir.
Este deu um passo em frente, mas quando ia a estender a mão para agarrar o
puxador da porta, mudou de ideias e deu lugar aos que seguiam atrás. Tinham
medo de abrir aquela porta, pois por debaixo da charneira corria uma larga
torrente vermelha e o puxador estava sujo de sangue. Foi nesse instante que a
porta se abriu diante deles, e o padre, ajudante do senhor Arne, saiu. Foi
cambaleando até junto dos homens; tinha uma ferida profunda na cabeça e estava
encharcado em sangue. Ficou um pouco em pé e estendeu a mão, como para pedir
silêncio. Em seguida disse, com um estertor na voz: — O senhor Arne e os seus
serviçais foram assassinados esta noite por três homens, vestidos com peles
esfarrapadas, que desceram do telhado entrando pelo buraco da chaminé.
Lançaram-se sobre nós como animais ferozes e mataram-nos. Mais não conseguiu
dizer, caindo morto aos pés dos homens. Depois, as gentes entraram na casa e
encontraram tudo tal como o padre ajudante havia descrito. A grande arca de
carvalho, onde o senhor Arne guardava o seu dinheiro, tinha desaparecido, o
cavalo do senhor Arne tinha sido levado do estábulo, e o trenó desaparecera da
cabana. Havia trilhos de trenó que desciam do pátio, através dos prados em
redor do presbitério, até ao mar, e uma vintena de homens pôs-se rapidamente a
caminho, no encalço dos assassinos. Entretanto, as mulheres ficaram a ocupar-se
dos mortos, levando-os da casa ensanguentada para a neve imaculada. Não
encontraram lá toda a gente do senhor Arne, faltava alguém. Era a donzela
pobre, que o senhor Arne tinha acolhido em sua casa. Todos se perguntavam, com
grande espanto, se ela teria conseguido escapar ou se os malfeitores a teriam
levado consigo. Foi quando inspecionaram a casa com mais cuidado que a
encontraram no sítio onde ela se havia escondido, entre o enorme fogão de sala
e a parede. Tinha-se mantido ali refugiada durante a contenda, e encontrava-se
completamente sã e salva, mas estava tão totalmente fora de si, devido ao
susto, que não conseguia articular palavra nem responder às perguntas que lhe
faziam. Veja mais aqui.
HISTÓRIA DE AMOR – No livro Poesia completa – Tomo II – Poemas longos (Academia Catarinense de
Letras, 2001) do poeta catarinense Luiz
Delfino (1834-1910), organizado por Lauro Junkes, destaco o poema História
de amor: Nesta página molhada / com uma
lágrima de dor, / pra sempre deixo lembrada / a história de nosso amor. / Que
queres tu que te eu faça? / Achei-o em meu coração: / podes chama-lo desgraça:
/ não erras, não mentes, não! / Este amor, que foi gerado / de um raio dos olhos
teus, pelo destino embalado, / talvez maldito de Deus, / eu não queria. Não pude / nunca a ideia
conceber / de te manchar a virtude, / auréola do teu viver. / Mas disse: -
pode-se amá-la, / sem ela mesmo o saber: / vê-la em sonhos e beijá-la, / cair
aos seus pés prostrado, / febril, louco, delirante; / pois este amor ignorado,
/ que a mim me fora bastante, / que mal lhe pode fazer? / Cri eu, ser o mesmo,
amá-la, / bem como se ama a pintura / de um quadro, que por ventura / caiu sob
o nosso olhar. / Tão baixo estava a mirá-la / no céu tão alto em que a vida. /
Que eu a mim próprio dizia: / - Não há perigo em amar. / Há tanta cousa que
amamos / sobre este pobre planeta, / há tanta cousa que olhamos / sem que um
crime se cometa, / que a olhar mais docemente, / mesmo com certa paixão, / ser
mesmo um pouco imprudente / num terno aperto de mão, / quando tinha em minha
frente / essa sublime visão, / esse raio de alegria / que dava em meu coração,
/ que dentro da alma vibrava, / e de um mistério a inquietava, / de emoção a
embevecia, / que ante essa mulher sublime, / ai! Tudo ser bem podia, / mas não
podia ser crime / o que fosse admiração. / E pus-me a amá-la, - Gostava / de
olhá-la profundamente: / nessa fronte inteligente, que como o céu se encurvava,
/ eu lhe procurava a história / do que dentro se passava: / minha fronte
merencória, / como vergasta pendida, / bebia o calor da vida / na vasta chama,
em que toda / parecia ela envolvida. / Era um perfume de roda / na nuvens dos
seus vestidos! / Dos seus cabelos compridos, / negros, finos, luzidios, / saíam
como que rios / de luz cambiante e cheirosa, / e sobre a fronte orgulhosa /
enrolados lhe pousavam / como coroa cintilante; / os seus pés escorregavam /
sobre o tapete da sala, / como os silfos, que passavam / sobre os seus lábios
sem fala, / mas onde se adivinhava / na ligeira convulsão / o acumular-se da
lava / na cratera de um vulcão. / Essa boca não falava! / Mas ai dela o que eu
ouvia! / Era uma eterna harmonia / que minha alma inebriava. / Já não tinha liberdade
/ de fugir ao encanto dela... / era queimar-me à vontade / as asas em luz tão
bela... / envenenara-me a essência / que seu corpo trescalava/ louco já, sem
consciência, / preso ao meu cego desejo, / pela morte procurava / no fundo
abismo de um beijo. / Ai eu já me deleitava / não sei com que pensamento / e
depois? Que me importava / esse importuno depois, / que fora talvez mortalha /
que um mau destino só talha / para pôr sobre nós dois. / Sobre nós dois? –
Porém ela / tão pura e casta e tão bela, / não! Amar-me não devia. / Nem mesmo
amar-me queria... / custava-lhe muito... tanto, / que a revoltava... – No
entanto, / quando eu aos seus pés chegava, / o seu olhar de rainha / tão doce
se aveludava, / tão doce chama continha, / que o rosto lhe iluminava; / que não
era ilusão minha, / também ela se alegrava / de ver-me, como eu a via: / ai!
Assim de dia em dia / surdo incêndio se ateava. / Lavrou o fogo... a virtude /
quase estalava por fim: / e nesta batalha rude / não sei dela, nem de mim... /
eu sou o mar que soluça / na praia, em que se debruça, / como esplêndida
voragem / espelhando a sua imagem; / ela é a planta isolada / que sobre a praia
deixada / do vento ao rijo fragor, / sobre um árido rochedo / nasce, vinga, e
cresce a medo, / dando solitária flor. / Se a tempestade passar / na asa de um
vento mais forte, / pode ela encontrar a morte / rojada ao fundo do mar. /
Nesta página molhada / com uma lágrima de dor, / pra sempre aí fica lembrada /
a história do nosso amor. Veja mais aqui.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO – No Dicionário
filosófico (1764 - Martin Claret, 2002), do escritor,
dramaturgo e filósofo iluminista francês Voltaire (François Marie Arouet/1694-1778), destaco o trecho
dedicado à liberdade de expressão: [...] LIBERDADE
(DA) A Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos
ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir? B É claro que não posso evitar ouvi-la. A Desejaríeis que esse canhão decepasse
vossa cabeça e as de vossa mulher e vossa filha que estivessem convosco? B Que espécie de proposição me fazeis? Eu
jamais poderia, em meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso me é
impossível. A Muito
bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente, não quereis
morrer, vós e vossa família, de um tiro de canhão; não tendes nem o poder de
não ouvi-lo nem o poder de querer permanecer aqui. B Isso é evidente. A Em consequência, destes uma trintena de
passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhão: tivestes o poder de
caminhar comigo estes poucos passos? B
Nada
mais verdadeiro. A E
se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar ficar exposto a essa bateria;
não teríeis o poder de estar onde agora estais: teríeis então necessariamente
ouvido e recebido um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto? B Nada mais claro. A Em que consiste, pois, vossa liberdade,
senão está no poder exercido pelo vosso indivíduo de fazer o que a vossa
vontade exigia com absoluta necessidade? B
Embaraçais-me;
então a liberdade é apenas o poder de fazer o que bem entendo? A Refleti um pouco. Vede se a liberdade
pode ser outra coisa. B Neste
caso o meu cão de caça é tão livre como eu; ele tem necessariamente a vontade
de correr quando vê uma lebre e o poder de correr se não estiver doente das
pernas. Eu nada tenho, pois, mais do que meu cão: reduzis-me ao estado das
bestas. A Eis
uma série de pobres sofismas dos pobres sofistas que vos instruíram. Eis que
estais despeitado por não serdes livre como vosso cão. Ora, não vos pareceis
com ele em mil coisas? A fome, a sede, o velar, o dormir, os cinco sentidos,
não são em vós como nele? Pretenderíeis cheirar com outro qualquer órgão além
do nariz? Por que quereis uma liberdade diferente da que ele tem? B Porém eu tenho uma alma que raciocina
muito bem, e o meu cão não pensa coisa alguma. Ele apenas tem ideias simples,
enquanto eu tenho mil ideias metafísicas. A
Pois
muito bem! Sois mil vezes mais livre do que ele, isto é, tendes mil vezes mais
poder de pensar do que ele; porém vossa liberdade é perfeitamente igual à dele.
B Como? Eu não tenho a liberdade de querer
o que desejo? A Que
entendeis com isso? B O
que toda gente entende. Não se diz diariamente: "As vontades são
livres"? A Um
provérbio não é uma razão; explicai-vos melhor. B
Penso
que sou livre de querer como melhor me agradar. A
Com
vossa licença, isso não tem o mínimo sentido; não percebeis que é ridículo
dizer: "Eu quero querer"? Necessariamente, vós desejais em consequência
das ideias que se vos apresentam. Quereis casar, sim ou não? B Mas e se eu vos disser que não quero nem
uma nem outra coisa? A Responderíeis
como aquele que disse: "Uns pensam que o cardeal Mazarino está morto;
outros, que está vivo; eu não creio nem numa coisa nem noutra". B Pois bem, quero casar-me. A Isto é responder! Por que quereis casar? B Porque estou apaixonado por uma bela
rapariga, bem educada, muito rica, que canta muito bem, filha de pais honestos
e que me ama, assim como sua família. A
Eis
uma razão. Vedes, pois, que não podeis querer sem razão. Declaro-vos que tendes
a liberdade de vos casar: isto é, que tendes o poder de assinar o contrato. B Como! Eu não posso querer sem motivo? Que
sucede então a este outro provérbio: Sit pro ratione voluntas: minha vontade é
minha razão, eu quero porque quero? A
Isso
é absurdo, meu caro amigo, pois haveria em vós um efeito sem causa. B Que? Quando jogo par ou ímpar tenho então
um motivo para escolher par em vez de ímpar? A
Sim,
sem nenhuma dúvida. B E
qual é essa razão, por obséquio? A É
que a ideia de par se apresentou ao vosso espírito mais do que a ideia oposta.
Seria muito cômico que nalguns casos desejásseis por existir uma razão para o
vosso desejo e que noutros desejásseis sem motivo. Quando vos quereis casar,
sentis a razão dominante, evidentemente; não a sentis quando jogais par ou
ímpar, e contudo é mister que exista uma B
Mas,
uma vez ainda: sou ou não sou livre? A
Vossa
vontade não é livre mas vossas ações o são. Tendes a liberdade de fazer quando
tendes o poder de fazer. B Mas,
todos os livros que li sobre a liberdade de indiferença... A São tolices: não existe liberdade de
indiferença; é um termo destituído de senso, inventado por pessoas que o não
possuem. LIBERDADE DE PENSAMENTO Pelo ano de 1707, época em que os ingleses
ganharam a batalha de Saragoça, protegeram Portugal e deram durante algum tempo
um rei à Espanha, minha Boldmind, oficial general, quer fora ferido, estava
perto das águas de Berèges. Encontrou aí o conde Medroso, que caíra do cavalo,
atrás das bagagens, a légua e meia do campo de batalha, e viera também fazer
uma cura de águas. O conde Medroso era familiar da Inquisição; milorde Boldmind
era familiar apenas na conversação. Um dia, depois de beber, teve com Medroso a
seguinte conversa: BOLDMIND Sois, portanto, sargento dos dominicanos? Exerceis
um bem vil oficio. MEDROSO É verdade; mas gostei mais de ser criado deles do
que ser vitima e preferi a desgraça de queimar o meu próximo à de ser eu
próprio cozido. BOLDMIND Que horrível alternativa! Éreis cem vezes mais felizes
sob o jugo dos mouros que vos deixavam estagnar livremente no meio das vossas
superstições e que, embora vencedores, não se arrogavam o direito inaudito de
pôr as almas a ferros. MEDROSO Que quereis? Não nos é permitido escrever, nem
falar, nem mesmo pensar. Se faamos, torna-se fácil interpretar as nossas
palavras e mais ainda os nossos escritos. Enfim, como não podem condenar-nos
queimados por ordem do próprio Deus se não pensarmos como os dominicanos.
Persuadiram o governo que se possuíssemos o senso comum todo o Estado ficaria
em combustão e a nação tornar-se-ia a mais desgraçada da Terra. BOLDMIND Achais
que somos desgraçados, nós, ingleses, que cobrimos os mares com os nossos
barcos e viemos ganhar para vós batalhas nos confins da Europa? Vede os
holandeses que vos desapossaram de quase todas as vossas descobertas na Índia e
hoje se enfileiram entre os vossos protetores: pensais que sejam malditos de
Deus por haverem concedido inteira liberdade de imprensa e por fazerem o
comercio dos pensamentos humanos? Foi menos poderoso o império romano por
Cicero haver escrito com liberdade? MEDROSO Quem é Cícero? Nunca ouvi falar
desse homem: não se trata aqui de Cicero, trata-se de nosso santo pai, o papa,
e de Santo Antonio de Padua, e sempre ouvi dizer que a religião romana está
perdida se os homens começam a pensar. BOLDMIND Não cabe a vós acredita-lo,
pois estás seguro que a vossa religião é divina e que as portas do inferno não
podem prevalecer contra ela. Se assim é, nada poderá destruí-la. MEDROSO Não,
mas pode ser reduzida a pouca coisa. E foi por terem pensado que a Suécia, a
Dinamarca, toda a vossa ilha e metade da Alemanha gemem na pavorosa desgraça de
não mais serem súditos do papa. Diz-se mesmo que os homens continuam a guiar-se
pelas suas falsas luzes acabarão em breve por se ater à simples adoração de
Deus e à virtude. Se alguma vez as portas do inferno prevalecerem até esse
ponto, em que se tornará o Santo Ofício? BOLDMIND Se os primeiros cristão não
tivessem a liberdade de pensar, não é verdade que não existiria cristianismo?
MEDROSO Que quereis dizer? Não vos entendo. BOLDMIND Acredito. Quero dizer que
se Tibério e os primeiros imperadores dispusessem de dominicanos que houvessem
impedido os primeiros cristão de usar penas e tinta; se durante tanto tempo não
tivesse sido permitido pensar livremente no império romano, tornar-se-ia
impossível aos cristãos estabelecer os seus dogmas. Portanto, se o cristianismo
só se formou pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que
injustiça desejaria aniquilar hoje essa liberdade sobre a qual está fundado?
Quando vos propõem algum negocio interessante, não o examinais demoradamente,
antes de o concluirdes? Haverá no mundo maior interesse que o da nossa
felicidade ou eterna desgraça? Existem sobre a Terra cem religiões e todas vos
condenam à danação por acreditardes nos vossos dogmas, que essas religiões
consideram absurdos e ímpios; examinai, portanto, esses dogmas. MEDROSO como
posso examiná-los? Não sou dominicano. BOLDMIND Sois homens e isso basta.
MEDROSO Ai de mim! Sois bem mais homem do que eu. BOLDMIND A vós apenas cabe
aprender a pensar; haveis nascido com espirito; sois uma ave na gaiola da
Inquisição; o Santo Oficio aparou-vos as asas mas elas podem voltar a crescer.
Quem não sabe geometria, pode aprendê-la; qualquer homem pode instruir-se; é
vergonhoso que se deposite a alma nas mãos daqueles aos quais não se confiaria
o dinheiro. Ousai pensar por vós mesmo. MEDROSO Há quem diga que, se toda a
gente pensasse por aí, a confusão seria prodigiosa. BOLDMIND Pelo contrário.
Quando assistimos a um espetáculo, cada qual dá livremente a sua opinião e a
paz não é perturbada; se, porém, algum insolente, protetor de algum mau poeta,
quiser forçar todas as pessoas de gosto a considerarem bom o que lhe parece
mau, os dois partidos podem acabar alvejando-se com maçãs, como já aconteceu
uma vez em Londres. São estes tiranos dos espíritos que causaram parte das
desgraças do mundo. Na Inglaterra, só somos felizes desde que cada qual goze
livremente do direito de exprimir a sua opinião. MEDROSO também nós estamos
sossegados em Lisboa, onde ninguém pode exprimir a sua. BOLDMIND Estais
sossegados mas não sois felizes; tal é o sossego dos forçados das galés que
remam em cadencia e em silencio. MEDROSO Julgais, portanto, que a minha alma
está nas galés? BOLDMIND Sim. E gostaria de libertá-la. MEDROSO Mas se
acontecer que eu me sinta bem nas galés? BOLDMIND Nesse caso, é porque mereceis
as galés. Veja mais
aqui.
BEST FRIENDS – A comédia romântica Best friends (Amigos muito íntimos,
1982), dirigido por Norman Jewison e música de Michel Legrand, é vagamente baseado na história real da relação entre seus
escritores, Barry Levinson e Valerie Curtin, contando a história de um par de
roteiristas de Hollywood que viveram e trabalharam em conjunto um pro outro por
vários de anos. Ele gostaria de se casar, mas ela
não sentia a menor necessidade. Tendo acabado de escrever um roteiro de filme, o
casal decide se casar sem deixar que ninguém saiba. Eles se casam e saem
para uma noite de núpcias quando ela alega que terão de dormir em camas separadas.
A partir de então vão viver desencontros e a infelicidade leva a relação pessoal e profissional pro fundo do poço. O destaque
do filme vai para a premiada atriz estadunidense Goldie Hawn. Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte do fotógrafo Boris Karastov.
DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada como uma
homenagem & gesto de gratidão eterna à mulher maravilhosa, poeta e
superparceira radialista do meu coração, Meimei Corrêa & Baú de Ilusões. Veja mais aqui, aqui e aqui.