domingo, novembro 22, 2015

DOMINGO, GIDE, ATWOOD, COVARRUBIAS, GAROTA DE IPANEMA, SOCIOLOGIA & TATARITARITATÁ!

VAMOS APRUMAR A CONVERSA? E O POEMA SE FEZ DOMINGO – O domingo é tão valioso quanto a segunda de branco e de ressaca, ou a terça, ou que dia for, não tenho data para louvar, nem o que comemorar. Para mim, todo dia é dia de tudo sem faltar nada; dia do que for pra tudo, nada em especial. Tudo de ontem, até agora! Ora, ora. Indagora mesmo me perguntaram: - O que você faz pra viver? Respondi: - Nada, apenas vivo. Entendeu? Hehehehehehehehe. Pois é, em pleno domingo dou-me por condenado, responsável por tudo! Assumo todos os pecados, sei das minhas mazelas. Todavia, a vida não seria nada se a gente não sucumbisse vez em quando aos infortúnios, manjar da inhaca dos esgotos. Aprendo com as minhas quedas, se bem que nunca fui privado doutra coisa que não seja da vertigem abissal da vida. Estou sempre aos baques, aperfeiçoando o discernimento. Quando tenho o que sou, sei que não sou nada. Contudo, posso construir um canto, uma esperança, e por que não uma vida? Da gente, só o que fizermos ficará. Seja de bom ou ruim, é melhor que não fazer nada. Melhor errar que se omitir nem se acovardar. Não tenho índole pra fugir da raia, nem cagar fora do penico – Deus proteja os que fraquejam, os que abrem mão ou os que acham que passam impunes, incólumes; eu erro e erro pra burro, hem? Se meus desastres fossem dinheiro, estaria hoje multimilionário. Mas pouco importa, prefiro as aprendizagens, errando, refazendo, recomeçando de novo e tudo de novo e sempre no sisifismo, sem abrir mão. Pudera fosse assim mesmo, que outro jeito? Não sou dado ao fácil, muito menos infalível. Sou como qualquer um, só que errando mais por ter-me o coração nas mãos ou saindo pela goela boca afora. E fui, e vou, irei, seja lá o que Deus quiser. Não deu, vou de novo, persevero, persisto, insisto até não mais. Aí, pulo pra outra, ora. Sou bem água mole em pedra dura, uma dia fura e avacalha. E que o valha! Tomara. Pior que perder a viagem é nem ter ido. Errou, se arrependeu; não foi, ora, perdeu a oportunidade, pelo menos, de conferir, experienciar. Prefiro correr o risco do arrependimento, ao invés de me lamentar pelo que não fiz. E é por isso mesmo que o domingo se me revela em poesia, em ser-me a poesia como o beijo ardente da mulher amada em que se sente a vitalidade voluptuosa do seu corpo nu e latente de prazer dentro do vestido solto, a roçar-lhe os seios e os contornos corporais, e sentir na minha mão o seu o ventre eruptivo e cobiçado no entre coxas para conhecer-lhe a prodigalidade de todo prazer de zis sensações por todo universo a curvar e usufruir do seu corpo pra ser a viola que empunho para todo meu canto e ela Santa Cecília e despudorada quase desnuda princesa que já me tinha e qual rainha soberana e possessiva que se torna cônscia serviçal, submissa, escrava e eu a cometer-lhe os Cantos de Pound na sua carne suculenta, a lapidar o meu lance de dados de Mallarmé no seu enleio de musa viva e pronta pra ser seviciada até que tudo dure e eu me perca no abandono de todas as horas. Pra quem nunca disse adeus – só uma vez! Aliás, só uma única vez eu disse adeus, porque já não havia mais jeito de se ajeitar e a teimosia e a incompreensão imperava porque não viu senão como queria a si própria e sem ver-me a alma entregue e pronta pra varar o mundo além de todos os limites -, porque pra mim há sempre uma porta aberta para a possibilidade da compreensão e do perdão. Quando não há perdão, não há saída. E plenamente condenado, nunca transferi para ninguém meus erros e pecados. São todos meus e eu. Infelizmente, às vezes a gente faz coisas das quais nem se dá conta. Mas paga por isso. E por isso mesmo, pago com minhas dores não ter o poder de restituir o dano – mas quando posso e ao meu alcance ou ao tomar ciência, providencio logo todo e qualquer ressarcimento. Se esqueci dalgum ou de alguém, estou disposto a qualquer sanção! Pago no devido, que venha! Braços abertos para qualquer circunstância e a qualquer momento pra entoar meu canto com a alma pela boca do amor. E vamos aprumar a conversa aqui.

 Imagem: Nus, do pintor alemão Christian Rohlfs (1849-1938).


Curtindo o álbum Complete Piano Works (Sony, 2002), do compositor e maestro espanhol Joaquín Rodrigo (1901-1999), com a pianista Sara Marianovich.

ENRAIZAMENTO CULTURAL – O livro Introdução à Sociologia: complexidade, interdisciplinaridade e desigualdade social (Atlas, 2013), do sociólogo Pedro Demo, trata sobre o olhar metodológico, a sociologia desafiada, trajetória humana, debate do igualitarismo, formas e dinâmicas da sociedade, debate sociológico, pesquisa social e sociologia pequena. Da obra destaco o trecho Mudança de paradigma sociológico da parte atinente à sociologia desafiada: [...] surge o enraizamento cultural, próprio da grande decolagem humana, por meio do processo imemorial de hominização. Por volta de seis ou sete milhões de anos, um ramos dos primatas separou-se, tomando caminho evolutivo próprio e se acelerando por volta de duzentos mil anos. Surge a humanidade. O bipedismo e o uso de utensílios foram resposta aos desafios ecológicos, na savana e na floresta. Com o tempo, preferiu-se o solo às copas das árvores, desenvolvendo-se habilidade de locomoção ereta e tipo de corpo bem adaptado. Conhecemos ainda muito pouco tais origens. Mas, como a ausência de prova não é necessariamente prova da ausência, parece cada vez mais claro que somos, de uma parte, apenas ramos mais evoluído na aventura cósmica, biológica e cultural, e, de outra, que temos nossas originalidades relativas, em particular a habilidade da inteligência reconstrutiva política. A ciência, que não dispõe a aceitar a hipótese do criacionismo, segundo a qual o ser humano teria sido criado por Deus ou por algum ser superior, prefere compreender o ser humano no processo evolucionário, agora também visto como histórico desde sempre. Embora o ser humano seja típico processo de emergência evolutiva, não é entidade especial no sentido de que é superior; assim, o fato de nosso cérebro produzir pensamento complexo não significa que seja superior, mas apenas mais evoluído. Para o processo evolucionário, ao final, tudo é apenas questão de tempo e circunstância: se começasse de novo, não poderia ser o mesmo, pois é irreversível como toda formação histórica; poderiam surgir outros seres mais ou menos inteligentes que nós, ou que já tivessem sido exterminados prematuramente, ou que fossem mais felizes que nós. [...] Ao lado da sexualidade, o ser humano desenvolve o erotismo, tipo de relação que polariza as pessoas, primeiro entre os sexos diferentes, mas igualmente entre todas as pessoas, porque parte integrante de qualquer relação social. O eros é filho do espirito e do sexo, provocando o auto-embriagamento de ambos. Desborda as partes genitais e está sempre próximo do imundo. Não conhece regras. Penetra até mesmo a religião, sobretudo em suas manifestações místicas. Alimenta-se de profundezas subterrâneas que jamais dominamos a contento. Eleva-nos e perturba-nos, enobrece-nos e arrasta-nos, desafia-nos e faz-nos sofrer. Geralmente, porém ressaltam-se no ser humano a racionalidade (do homo sapiens) e a técnica (do homo faber). Sabemos já que tais caracteres também são encontrados nos animais, por exemplo, nos comportamentos expressos para fugir do perigo, buscar alimento, reproduzir-se. Mais original dos humanos parecer ser a prática do mito e magia, ainda que as ciências os denunciem como irracionais. Parece claro que são parte, tanto dos humanos, quanto de sua racionalidade. Momentoso é certamente o fato de que a racionalidade iria conhecer desenvolvimento extraordinário, até tornar-se nas visões modernistas de cariz europeu algo excessivo e unilateral. Há que manter a conexão com o homo faber e sapiens, acrescendo-se o homo demens, ludens e mythologicus. [...] Toda sociedade humana engendra sua noosfera, o mundo das coisas do espirito, saberes, crenças, mitos, lendas, ideias. Aí nascem entidades, gênios e deuses, ideias-força que podem tomar vida própria com base na crença e na fé. [...] Pode-se aludir ainda à unidade humana diante da morte, além da unidade cultural e sociológica, expressa, por exemplo, em certo modelo universal de sociedade, marcado por parentesco, regulação da sexualidade, exogamia, etc. Cultura humana são propriamente culturas, assim como linguagem são línguas. [...] Como, porém, é complexa essa identidade, é também ambivalente, paradoxal. O que nos une também nos separa, a começar pela linguagem e pela cultura – o patrimônio no fundo comum não impede a incompreensão, a ponto de vermos apenas a diferença. Existe unidade e diversidade humana, pela biológica e cultural. [...]. Veja mais aqui.

SINFONIA PASTORAL – No romance Sinfonia Pastoral (Livros do Brasil, s/d), do escritor francês Prêmio Nobel de Literatura de 1947, André Gide (1869-1951), destaco o trecho: [...] A mulher ajoelhada levantou-se. Não era uma parente, como a princípio supus, mas simplesmente uma vizinha, uma amiga, que a criada fora procurar ao ver sua patroa enfraquecer, e que se oferecera para velar o corpo... A velha, disse-me ela, se extinguira sem sofrimento. Pusemo-nos de acordo sobre as providências a tomar para o enterro e a cerimônia fúnebre. Como tantas vezes antes, nesta região perdida, cabia a mim decidir tudo. Não me agradava a ideia, confesso, de deixar aquela casa, por mais pobre que fosse a sua aparência, aos cuidados apenas daquela vizinha e daquela criada criança. Não me parecia absolutamente provável, no entanto, que houvesse em algum recanto daquela miserável habitação algum tesouro escondido... E o que poderia eu fazer? Perguntei, entretanto, se a velha não deixava nenhum herdeiro. A vizinha apanhou então a vela, que dirigiu para uma pequena lareira, e pude distinguir, acocorado sobre a laje, um ser indefinido, que parecia adormecido. A espessa massa de seus cabelos cobria-lhe quase que inteiramente o rosto. ― Esta menina cega. Uma sobrinha, pelo que diz a criada. É a que se reduz a família, parece. Será preciso colocá-la no asilo, senão não sei o que poderá lhe acontecer. Eu me chocava por ouvir decidir assim a sua sorte diante dela, preocupado com o sofrimento que aquelas palavras brutais lhe poderiam causar. ― Não a acorde ― disse mansamente, para convidar a vizinha, pelo menos, a baixar a voz. ― Oh! Não creio que durma, mas é uma idiota, não fala e não compreende nada do que se diz. Estou neste quarto desde a manhã e ela praticamente não se moveu. A princípio achei que fosse surda, a criada diz que não, mas simplesmente que a velha, ela própria surda, nunca lhe dirigia a palavra, nem a ninguém mais, não abrindo a boca havia muito tempo a não ser para que o senhor... ― Que idade tem ela? ― Uns quinze anos, suponho. Mas não sei mais do que o senhor... Não me veio imediatamente a ideia de tomar eu mesmo conta daquela pobre abandonada, mas depois de ter rezado ― ou mais exatamente durante a prece que fiz, entre a vizinha e a pequena criada, ambas ajoelhadas à cabeceira da cama, eu também ajoelhado ― pareceu-me subitamente que Deus colocava em meu caminho uma espécie de obrigação, e que eu não poderia me furtar a ela sem certa covardia. Quando me levantei, estava tomada minha decisão de levar a criança naquela mesma noite, ainda que não me houvesse claramente perguntado o que faria dela a seguir, nem a quem a confiaria. Permaneci ainda alguns instantes a contemplar o rosto adormecido da velha, cuja boca enrugada e funda parecia repuxada como os cordões de uma sacola de avarento, instruída para nada deixar escapar. Depois, voltando-me na direção da cega, comuniquei à vizinha minha intenção. ― Será melhor que ela não esteja mesmo aqui amanhã, quando vierem buscar o corpo ― disse ela. E foi tudo. Muitas coisas se fariam facilmente, sem as quiméricas objeções que os homens se comprazem às vezes em inventar. Desde a infância, quantas vezes somos impedidos de fazer isto ou aquilo que desejaríamos, simplesmente porque escutamos repetir à nossa volta: ele não poderá fazê-lo... A cega deixou-se levar como uma massa involuntária. Os traços de seu rosto eram regulares, bastante bonitos, mas absolutamente inexpressivos. Eu apanhara um cobertor no enxergão onde ela habitualmente devia repousar, num canto do quarto, sob uma escada interna que levava ao celeiro. A vizinha mostrara-se prestativa e me ajudara a embrulhá-la cuidadosamente, pois a noite, muito clara, estava fresca, e, depois de acender a lanterna do cabriolé, parti levando encolhido contra mim aquele embrulho de carne sem alma e do qual eu só percebia a vida pela comunicação de um calor tenebroso. Durante todo o caminho, eu pensava: ela dorme? E em que negro sono... E em que a vigília difere aqui do sono? Hóspede deste corpo opaco, uma alma sem dúvida aguarda, emparedada, que venha enfim, tocá-la algum raio de vossa graça, Senhor! Permitireis que meu amor, talvez, afaste dela as terríveis trevas?... Preocupo-me demais com a verdade para calar sobre a dolorosa acolhida que tive de suportar em minha volta ao lar. Minha mulher é um jardim de virtudes e, mesmo nos momentos difíceis que nos aconteceu por vezes atravessar, não pude duvidar nem por um instante da qualidade de seu coração, mas sua caridade natural não gosta de ser surpreendida. É uma pessoa disciplinada, que cuida de não ir além, não mais do que de não ficar aquém do dever. Sua própria caridade é medida, como se o amor fosse um tesouro esgotável. Este é o nosso único ponto de divergência... Seu primeiro pensamento, ao me ver voltar naquela noite com a menina, escapou-lhe nesse grito: ― Do que mais ainda você foi se ocupar? Como todas as vezes em que deve haver uma explicação entre nós, comecei por fazer saírem as crianças que ali estavam, boquiabertas, cheias de interrogação e surpresa. Ah! Quão longe estava aquela acolhida da que eu poderia ter desejado. Apenas a minha pequena Charlotte começou a dançar e a bater palmas quando compreendeu que algo novo, algo vivo, iria sair do cabriolé. Mas os outros, já adestrados pela mãe, trataram rapidamente de esfriá-la e de fazê-la voltar à seriedade. Houve um momento de grande confusão. E como nem minha mulher nem as crianças sabiam ainda que estavam diante de uma cega, não compreendiam o extremo cuidado que eu tomava para guiar seus passos. Eu mesmo fiquei muito embaraçado com os estranhos gemidos que começou a lançar a pobre enferma tão logo minha mão abandonou a sua, que eu segurara por todo o trajeto. Seus gritos nada tinham de humano, dir-se-iam os ganidos queixosos de um cãozinho. Arrancada pela primeira vez do estreito círculo de sensações costumeiras que constituíam todo o seu universo, seus joelhos se dobravam sob ela, mas, quando empurrei uma cadeira em sua direção, deixou-se cair por terra, como alguém que não soubesse sentar-se; levei-a então ao pé da lareira, e ela recuperou um pouco de calma ao poder se acocorar, na posição em que eu primeiro a vira ao pé da lareira da velha, apoiada na guarda da laje. Já no cabriolé ela se deixara deslizar para baixo do assento e fizera toda a viagem encolhida a meus pés. Minha mulher, apesar de tudo, me ajudava, ela em quem o movimento natural é sempre o melhor. Mas sua razão ininterruptamente luta e com frequência a conduz contra seu coração. ― O que você pretende fazer disto? ― recomeçou ela depois que a menina estava instalada. Minha alma estremeceu ao ouvir o emprego daquele neutro, e me foi difícil dominar um movimento de indignação. Entretanto, ainda imbuído de minha longa e tranquila meditação, me contive e, voltado para todos eles que novamente nos rodeavam, uma das mãos pousada sobre a fronte da cega: ― Trago a ovelha desgarrada ― disse, com o máximo de solenidade que pude. Mas Amélie não admite que possa haver nada de insensato ou de exagerado no ensinamento do Evangelho. Vi que ela ia protestar e foi então que fiz um sinal a Jacques e Sarah que, acostumados às nossas pequenas desavenças conjugais, e ademais pouco curiosos por natureza (com frequência até mesmo insuficientemente, na minha opinião), saíram com os dois menores. Depois, como minha mulher permanecia ainda confusa e um pouco exasperada, parecia-me, com a presença da intrusa: ― Pode falar diante dela ― acrescentei ― a pobre criança não compreende nada. Amélie começou então a afirmar que não tinha nada a me dizer ― o que é o prelúdio habitual das explicações mais longas -, e que só tinha que se submeter como sempre ao que eu pudesse inventar de menos prático e de mais contrário aos costumes e ao bom senso. Já escrevi que não me havia absolutamente definido quanto ao que pretendia fazer com aquela criança. Eu ainda não entrevira, senão muito vagamente, a possibilidade de instalá-la em nosso lar e posso quase dizer que foi Amélie quem primeiro me sugeriu essa ideia quando me perguntou se eu achava que "não éramos já bastantes na casa". Depois ela declarou que eu sempre ia em frente sem nunca me preocupar com a resistência dos que me seguiam, que quanto a ela já lhe parecia que cinco filhos eram suficientes, que desde o nascimento de Claude (que exatamente naquele momento, como que ouvindo seu nome, pôs-se a berrar em seu berço) ela tinha "a sua quota" e que se sentia exausta. Às primeiras frases de seu ataque, algumas palavras de Cristo me subiram do coração aos lábios, que no entanto contive, pois me pareceu sempre impróprio abrigar minha conduta atrás da autoridade do livro santo. Mas desde que argumentou com seu cansaço fiquei embaraçado, pois reconheço que me aconteceu mais de uma vez deixar pesar sobre minha mulher as consequências dos impulsos irrefletidos de minha devoção. Contudo, aquelas recriminações me esclareceram quanto ao meu dever; supliquei então muito suavemente a Amélie que examinasse se em meu lugar ela não teria agido da mesma forma e se lhe teria sido possível deixar ao abandono um ser que evidentemente não tinha mais em quem se apoiar; acrescentei que não me iludia quanto à carga de novos trabalhos que o cuidado com aquela hóspede enferma acrescentaria às preocupações domésticas, e que meu pesar era de não poder secundá-la com mais frequência. Enfim, acalmei-a o melhor que pude, suplicando-lhe também de não deixar recair sobre a inocente um ressentimento que esta nada fizera por merecer. Depois, fiz-lhe notar que, de ora em diante, Sarah estaria em idade de ajudá-la mais, Jacques de não precisar de seus cuidados. Em suma, Deus colocou em minha boca as palavras necessárias para ajudá-la a aceitar o que estou certo teria assumido de boa vontade, se o acontecimento lhe tivesse dado tempo de refletir e se eu não houvesse daquela forma disposto de sua vontade pela surpresa. Eu julgava a partida praticamente ganha, e já minha cara Amélie se aproximava afavelmente de Gertrude. Mas subitamente sua irritação explodiu com mais violência quando, tendo apanhado a lanterna para examinar um pouco a criança, ela se apercebeu de seu estado de sujeira indescritível. ― Mas é uma imundície ― exclamou. ― Escove-se, escove-se rápido. Não, aqui não. Vá se sacudir lá fora. Ai, meu Deus As crianças vão ficar cobertas disto. Não há nada no mundo de que eu tenha mais medo do que de piolhos e vermes. Inegavelmente, a pobrezinha estava cheia deles: e eu não pude me defender de um movimento de repugnância ao me lembrar que a havia tão longamente apertado contra mim no cabriolé. Ao voltar dois minutos mais tarde, depois de me ter limpo o melhor que pude, encontrei minha mulher desabada sobre uma poltrona, a cabeça entre as mãos, presa de uma crise de soluços. ― Não pensava submeter sua paciência a uma prova com esta ― disse-lhe ternamente. ― Seja como for, é tarde, e não se pode ver suficientemente. Ficarei de vigília para cuidar do fogo junto ao qual dormirá a menina. Amanhã nós lhe cortaremos os cabelos e a lavaremos devidamente. Você só começará a se ocupar dela quando puder olhá-la sem horror. ― E implorei-lhe que nada dissesse sobre aquilo às crianças. Era hora de cear. Minha protegida, em cuja direção nossa velha Rosalie, sempre nos servindo, lançava inúmeros olhares hostis, devorou avidamente o prato de sopa que lhe estendi. A refeição foi silenciosa. Eu teria apreciado contar minha aventura, falar às crianças, emocioná-las fazendo-as compreender e sentir a estranheza de uma miséria tão absoluta, excitar sua piedade, sua simpatia para com aquela que Deus nos convidava a recolher; mas receei reavivar a irritação de Amélie. Parecia que havia sido dada a ordem para ignorar e esquecer o acontecido, ainda que certamente nenhum de nós pudesse pensar em outra coisa. Fiquei extremamente emocionado quando, mais de uma hora depois que todos se deitaram e que Amélie me deixara só na sala, vi minha pequena Charlotte entreabrir a porta, avançar mansamente, de camisola e descalça, e se atirar então a meu pescoço, e me abraçar com selvageria, murmurando: ― Eu não dei boa-noite direito. Depois, baixinho, mostrando com a ponta de seu dedinho a cega que descansava inocentemente e que ela sentira curiosidade de rever antes de se entregar ao sono: ― Por que é que eu não a beijei? ― Você a beijará amanhã. Por enquanto, vamos deixá-la. Ela está dormindo ― disse-lhe, acompanhando-a até a porta. Voltei então a me sentar e trabalhei até a manhã, lendo e preparando meu próximo sermão. Sem dúvida, eu pensava (lembro-me), Charlotte se mostra hoje muito mais afetuosa do que seus irmãos mais velhos, mas cada um deles, naquela idade, não me enganou a princípio? Meu grande Jacques, mesmo, hoje tão distante, tão reservado... Acreditamos que são ternos, eles são bajuladores e indolentes. [...] Veja mais aqui.

O MOMENTO, O CORAÇÃO & A SOMBRA – O livro A porta (The door – Rocco, 2013), da premiadíssima escritora e crítica literária canadense Margaret Atwood, reúne poemas da autora, entre os quais destaco O momento: O momento quando, após muitos anos / de trabalho duro e uma longa travessia / te encontras no centro do teu quarto, / casa, meio acre, milha quadrada, ilha, país / sabendo por fim como lá chegaste, / e dizes, eu possuo isto, / é o mesmo momento em que as árvores desatam / os seus macios braços em teu redor, / as aves retiram a sua língua, / as falésias fissuram e colapsam, / o ar vem devolvido de ti como uma onda / e tu não consegues respirar. / Não, murmuram eles. Tu não possuis nada. / Tu foste um visitante, uma e outra vez / subindo a colina, cravando a bandeira, proclamando. / Nós nunca te pertencemos. / Tu nunca nos encontraste. / Foi sempre o contrário. Também o poema Coração coração: Algumas pessoas vendem o sangue. Você vende o coração. / Era isso ou a alma. / O difícil é tirar a porcaria lá de dentro. / Uma espécie de torção, como tirar da concha uma ostra, / sua coluna um punho, / e então, upa! ei-lo em sua boca. / Você se vira parcialmente do avesso / como uma anêmona do mar tossindo uma pedra. / Há um chape curto, o ruído alto / de entranhas de peixe caindo num balde, / e lá está ele, um imenso coágulo brilhante vermelho-escuro / do passado ainda vivo, inteiro no prato. / Passam-no ao redor. É escorregadio. Derrubam-no, / mas também o experimentam. Áspero demais, um diz. Salgado demais. / Azedo demais, diz outro, fazendo careta. / Cada um é um gourmet momentâneo, / e você fica ali ouvindo tudo isso / no canto, como um garçom recém-contratado, / a mão reservada e competente na ferida escondida / no fundo da camisa e do peito, / timidamente, sem coração. Por fim, o seu belíssimo poema A voz da sombra: Minha sombra me perguntou: / O que se passa? / A lua não é quente / O suficiente para ti? / por que necessitas / do cobertor de outro corpo / cujo beijo é mofo? / Em redor das mesas de piquinique / as mãos rosadas sustêm sanduiches / desintegrados pela distância. As moscas / voam sobre a doçura do instante / Tu sabes o que há nessas mantas / As àrvores se dobram sob o peso / dos meninos que disparam suas armas. / Deixá-oos em paz. Que joguem / Os seus próprios jogos. / Te dou água, te dou certezas limpas / Não há suficientes palavras / flutuando em tuas veias / tanto para manter como para seguir? Veja mais aqui.

MULHERES NUAS – A peça teatral Mulheres nuas (1990), de Márlio Silveira Silva, encenada pelo catarinense Grupo Círculo - Aline Maya, Graziela Meyer e a cantora Emília Carmona -, que reúne artistas diferentes em seus projetos, reúne uma proposta de surrealismo, humor negro, poesia, filosofia, transgressões sexuais, a mulher e a questão de gênero, o casamento e a sociedade, tudo com movimento, objeto, som, mediocridade, frustrações, confusões, palavrões, dores e prazeres, gozos e repressão, loucura e tensão, nojo e tesão, avançando para romper com todos os limites físicos, morais e sociais, com desnudamento poético, físico e psicológico das mulheres em cena. Veja mais aqui.


GAROTA DE IPANEMA – Quem não foi embalado nos anos 1960/70 pelo samba bossa nova Garota de Ipanema, da dupla ilustre Tom Jobim & Vinicius de Morais: Olha que coisa mais linda / Mais cheia de graça / É ela menina / Que vem e que passa / Num doce balanço / A caminho do mar / Moça do corpo dourado / Do sol de Ipanema / O seu balançado é mais que um poema / É a coisa mais linda que eu já vi passar / Ah, por que estou tão sozinho? / Ah, por que tudo é tão triste? / Ah, a beleza que existe / A beleza que não é só minha / Que também passa sozinha / Ah, se ela soubesse / Que quando ela passa / O mundo inteirinho se enche de graça / E fica mais lindo / Por causa do amor. Essa canção inspirada na empresária e apresentadora Helô Pinheiro, virou trilha sonora nacional, que rompeu as barreiras territoriais de alcançar o planeta. A obra virou filme em 1967, pelas mãos do cineasta, documentarista e escritor Leon Hirszman (1937-1987). Veja mais aqui.

IMAGEM DO DIA
A arte do pintor, ilustrador, etnólogo, historiador e caricaturista mexicano Miguel Covarrubias (1904-1957).

DEDICATÓRIA
 A edição de hoje é dedicada ao poetamigo Natanael Lima & Domingo com Poesia. Veja mais a respeito aqui, aqui e aqui.