VAMOS APRUMAR A CONVERSA? SÓ
PORQUE HOJE É SÁBADO - Só
porque hoje é sábado é um dia de comemoração. U-hu! É o dia que Vinícius fez o Dia da Criação só pra gente saber que
ontem foi sexta de uma semana corrida e desalmada, e que amanhã é domingo, o
dia em que o descanso nem sempre ou quase sempre nunca é de verdade. Mas só
porque hoje é sábado, há de haver motivo suficiente para a felicidade, é ou não
é? Eu mesmo não sei bem quê comemorar, mas se assim o é, podia ser, digamos, o
dia em que uma dona de casa abriu os olhos pro seu cotidiano, como sempre bem
cedinho quando a madrugada se vai despedindo pro reino do Sol, e foi invadida
por umas ideias que lhe pareciam toscas e nada valiosas para si, no seu modesto
modo de ver. Ela sentiu no corpo o peso da idade e da labuta, e ao se levantar ajeitando
as vestes mal dormidas, nem imaginou que podia ser um sábado diferente enquanto
atravessava o corredor e um monte de coisas lhe agitava o quengo sem que
pudesse concatenar nada entre um bocejo e outro com os desafios da rotina no
meio. De repente, viu-se encorajada a dizer asneiras: - Basta! Vida de pinica
já era. E valeu-se, como sempre, da força da sua munheca para sobreviver! – Por
que não tenho uma vida como a da novela da TV com final feliz e tudo o mais? -,
indagou-se, sentindo-se estranha lá meio grogue, revestida de um poder nunca
antes sentido. Aí disse não ao fogão, depôs o avental, deu baixa na cozinha, até
sair aturdida no centro da sala e diante da televisão: - Lá vem você com esse
papo só pra botar merda na minha cabeça! Meio zonza com tudo aquilo e sem saber
o que fazer, olhou pros lados e ainda viu tudo limpinho e fruto do seu trabalho
árduo de três cargas horárias, noitedia e de domingo a domingo, de dar-lhe um
paroxismo a ponto da revolta incendiar tudo e ela não ver-se mais que um sapato
velho jogado na lama. Ah, hoje é sábado, ora! E por isso ela podia pensar se
apenas um dia e uma lei bastavam. E sentia na pele o que os maleducados cospem
no cúmulo do desrespeito! Quanta gente maleducada! Gente escolada, granfina,
metida a besta, parece mais que a escola fabrica débeis que pisam e chutam quem
não é da turma pra ser jogado pra escanteio e a universidade diploma todo dia
histéricos felizes, psicóticos simpáticos, perversos sorridentes,
esquizofrênicos paranoides. Ué e eu? Onde ela nisso tudo? Só porque é sábado
ela se deu ao luxo de mudar de vida e se recordar do dia em que nasceu Deus
sabe onde, por certo num bolsão de carência e da lei do morro que ela nem se
lembra mais, com todas as incertezas e interrogações que mais privam da razão do
que mostram qualquer sinal de que algum dia tudo pode dar certo. E viu-se na
quimera dos seus sonhos de uma infância feliz e repleta de sacis que cultuavam
a Cumadre Fulôsinha porque só ela podia enfrentar o Boitatá – o bicho-papão –
que tomavam meninas malcriadas pra comer-lhe o fígado em noite sinistra. Ela
que nunca viu Papai Noel, não sabia se era melhor ser uma menina bonita e
obediente do tipo anjinha do céu no reino da deusa Felicitas, ou se arretando de
vez de corpalma numa deusa Morrígan, cultuando o mais patético fervor da
crueldade da pobreza, das competições raivosas e das deteriorações ambientais,
a catar de cada sujeito o que é de mais desumano e insignificante pro seu orgulho
e autossatisfação. Feliz, até sorriu com tudo isso vingando no peito. Afinal,
hoje é sábado! E ela podia até pensar no trocado que sobrou da passagem do
ônibus virando uma bolada da loteria para abrir uma caderneta de poupança e
acumular até o dia em pudesse ficar rica comprando uma casa própia na beira-mar,
com um carro novinho em folha na garagem e a peidar contra o vento porque agora
não fazia a menor diferença pensar no que sofreu na vida, nem o que apanhou de
tudo quanto fosse adversidade, mangando daqueles que não conseguiram vencer na
vida como derrotados migrantes da desgraça. Agora ela estava do outro lado e
por isso podia mangar à bessa! Podia até estudar pra fazer um concurso pruma
repartição pública e viver no bem-bom, salário certo no fim do mês, roupa da
moda, festinhas nos finais de semana, conversa mole e não ter que fazer mais
nada que manter o emprego e fazer a sua parte que era a de ser feliz e o resto
que se dane! Tudo isso lhe passou à cabeça só porque hoje é sábado, o dia e a
lei sumiram – bastaram? E ela teve de esfregar os olhos e ver qual sonho ou
pesadela lhe atormentara àquela hora da manhã, vez que era mais um dia de
branco como outro qualquer e ela foi tomar pé nos afazeres senão podia acabar
embaixo da ponte sem ter com quem conversar nem o que fazer. E vamos aprumar a
conversa aqui.
Imagem: Baigneuse, da pintora francesa Marguerite
Arosa (1854-1903).
Curtindo o álbum póstumo Cry, my guitar (GSP, 1994-2005), do
violonista brasileiro Raphael Rabello
(1962-1995).
PENSANDO A ATENÇÃO À SAÚDE
SISTEMICAMENTE – No
livro Psicologia na comunidade: uma
proposta de intervenção (Casa do Psicólogo, 2006), organizado por Carmen
Leontina Ojeda Ocampo Moré e Rosa Maria Stefanini Macedo, encontro a introdução
intitulada Pensando a atenção à saúde sistemicamente, assinada por Rosa Maria Stefanini Macedo, da qual
destaco os trechos a seguir: Aos ricos,
suavemente chamados descompensados, estressados, ou surtados, as clínicas
psiquiátricas e psicológicas de primeira linha e tratamentos com as mais
moderns técnicas psicoterápics e medicamentosas; aos pobres, loucos, doido
varridos, os hospícios ou as enfermarias de saúde mental nos hospitais públicos
e tratamentos com os remédios tradicionais (“mansa-leão”) ou participação em
grupos de pesquisa com novas drogas: essa é a situação mais comum na política
de saúde mental entre nós. [...] Para
lidar com tal situação é necessário que o profissional tenha uma visão global
das relações pessoas-contexto, seja psicólogo, psiquiatra, enfermeiro ou
assistente social, para poder contribuir efetivamente para a mudança da
sensação de desamparo, ajudando a fortalecer a autoestima e a crença em si
mesmo dos consultantes. A pessoa do profissional é peça chave dessa relação
“empoderadora” e, para isso, ele deve ser introduzido, antes de qualquer coisa,
aos demais funcionários do serviço, seja hospital, posto de saúde, repartição
pública onde vai atender, para que aí deIxem de predominar preconceitos comuns
em relação a ele, sobretudo se for psicólogo, ao qual em geral, são
encaminhados todos aqueles que chegam aflitos, descontrolados, nervosos, sem
uma queixa clara e/ou orgânica. [...] Os
cursos de formação também precisam alargar sua visão, procurando modificar o
currículo mais baseado em testes psicológicos e técnicas psicoterapêuticas voltadas para os aspectos intrapsíquicos do individuo. As mudanças políticas,
sociais e econômicas urgem por atualização nas teorias e práticas que valorizem
cada vez mais a pessoa como cidadão participante na construção da sociedade, na
qual não pode ser ignorado, sob pena de causar grandes prejuízos aos cofres
públicos. Saúde e educação são primordiais além de moradia e saneamento básico
e a falta de investimento nesses setores volta como gastos para o governo em
proporção geométrica, como tem sido fartamente demonstrado pelos estudos
econômicos do desenvolvimento. Para as dores da alma não há elixir que cure,
mas apoio que consola e modos de ver o mundo que constRoem esperança. [...] Termino essa introdução com as palavras de
Paulo Freire, o melhor companheiro para esta útil e maravilhosa empreitada: “O
utópico não é o irrealizável. A utopia não é o idealismo, é a dialetização dos
atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e a
de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia também im
compromisso histórico”. Veja mais aqui, aqui e aqui.
A DOIDA – No livro Contos de aprendiz (José Olympio, 1973), do poeta, contista e
cronista Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), destaco o conto A doida: A
doida habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os
meninos costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre o
barranco e um chão abandonado; à direita, o muro de um grande quintal. E na
rua, tornada maior pelo silêncio, o burro pastava. Rua cheia de capim, pedras
soltas, num declive áspero. Onde estava o fiscal, que não mandava capiná-la? Os
três garotos desceram manhã cedo, para o banho e a pega de passarinho. Só com
essa intenção. Mas era bom passar pela casa da doida e provocá-la. As mães
diziam o contrário: que era horroroso, poucos pecados seriam maiores. Dos
doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam dos benefícios com que nós,
os sãos, fomos aquinhoados. Não explicavam bem quais fossem esses benefícios,
ou explicavam demais, e restava a impressão de que eram todos privilégios de
gente adulta, como fazer visitas, receber cartas, entrar para irmandade. E isso
não comovia ninguém. A loucura parecia antes erro do que miséria. E os três
sentiam-se inclinados a lapidar a doida, isolada e agreste no seu jardim. Como
era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo. Não aparecia de frente e de
corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando na calma. Só o busto,
recortado, numa das janelas da frente, as mãos magras, ameaçando. Os cabelos,
brancos e desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa
voz rouca. Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais
alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera. Sabia-se confusamente
que a doida tinha sido moça igual às outras no seu tempo remoto (contava mais
de 60 anos, e loucura e idade, juntas, lhe lavravam o corpo). Corria, com
variantes, a história de que fora noiva de um fazendeiro, e o casamento, uma
festa estrondosa; mas na própria noite de núpcias o homem a repudiara, Deus
sabe por que razão. O marido ergueu-se terrível e empurrou-a, no calor do
bate-boca; ela rolou escada abaixo, foi quebrando ossos, arrebentando-se. Os
dois nunca mais se viram. Já outros contavam que o pai, não o marido, a
expulsara, e esclareciam que certa manhã o velho sentira um amargo diferente no
café, ele que tinha dinheiro grosso e estava custando a morrer – mas nos
racontos antigos abusava-se de veneno. De qualquer modo, as pessoas grandes não
contavam a história direito, e os meninos deformavam o conto. Repudiada por
todos, ela se fechou naquele chalé do caminho do córrego, e acabou perdendo o
juízo. Perdera antes todas as relações. Ninguém tinha ânimo de visitá-la. O
padeiro mal jogava o pão na caixa de madeira, à entrada, e eclipsava-se. Diziam
que nessa caixa uns primos generosos mandavam pôr, à noite, provisões e roupas,
embora oficialmente a ruptura com a família se mantivesse inalterável. Às vezes
uma preta velha arriscava-se a entrar, com seu cachimbo e sua paciência educada
no cativeiro, e lá ficava dois ou três meses, cozinhando. Por fim a doida
enxotava-a. E, afinal, empregada nenhuma queria servi-la. Ir viver com a doida,
pedir a bênção à doida, jantar em casa da doida, passou a ser, na cidade,
expressões de castigo e símbolos de irrisão. Vinte anos de tal existência, e a
legenda está feita. Quarenta, e não há mudá-la. O sentimento de que a doida
carregava uma culpa, que sua própria doidice era uma falta grave, uma coisa
aberrante, instalou-se no espírito das crianças. E assim, gerações sucessivas
de moleques passavam pela porta, fixavam cuidadosamente a vidraça e lascavam
uma pedra. A princípio, como justa penalidade. Depois, por prazer. Finalmente,
e já havia muito tempo, por hábito. Como a doida respondesse sempre furiosa,
criara-se na mente infantil a idéia de um equilíbrio por compensação, que
afogava o remorso. Em vão os pais censuravam tal procedimento. Quando meninos,
os pais daqueles três tinham feito o mesmo, com relação à mesma doida, ou a
outras. Pessoas sensíveis lamentavam o fato, sugeriam que se desse um jeito
para internar a doida. Mas como? O hospício era longe, os parentes não se
interessavam. E daí – explicava-se ao forasteiro que porventura estranhasse a
situação – toda cidade tem seus doidos; quase que toda família os tem. Quando
se tornam ferozes, são trancados no sótão; fora disto, circulam pacificamente
pelas ruas, se querem fazê-lo, ou não, se preferem ficar em casa. E doido é quem Deus
quis que ficasse doido... Respeitemos sua vontade. Não há remédio para loucura;
nunca nenhum doido se curou, que a cidade soubesse; e a cidade sabe bastante,
ao passo que livros mentem. Os três verificaram que quase não dava mais gosto
apedrejar a casa. As vidraças partidas não se recompunham mais. A pedra batia
no caixilho ou ia aninhar-se lá dentro, para voltar com palavras iradas. Ainda
haveria louça por destruir, espelho, vaso intato? Em todo caso, o mais velho
comandou, e os outros obedeceram na forma do sagrado costume. Pegaram calhaus
lisos, de ferro, tomaram posição. Cada um jogaria por sua vez, com intervalos
para observar o resultado. O chefe reservou-se um objetivo ambicioso: a
chaminé. O projétil bateu no canudo de folha-de-flandres enegrecido – blem – e
veio espatifar uma telha, com estrondo. Um bem-te-vi assustado fugiu da
mangueira próxima. A doida, porém, parecia não ter percebido a agressão, a casa
não reagia. Então o do meio vibrou um golpe na primeira janela. Bam! Tinha
atingido uma lata, e a onda de som propagou-se lá dentro; o menino sentiu-se
recompensado. Esperaram um pouco, para ouvir os gritos. As paredes descascadas,
sob as trepadeiras e a hera da grade, as janelas abertas e vazias, o jardim de
cravo e mato, era tudo a mesma paz. Aí o terceiro do grupo, em seus 11 anos,
sentiu-se cheio de coragem e resolveu invadir o jardim. Não só podia atirar
mais de perto na outra janela, como até, praticar outras e maiores façanhas. Os
companheiros, desapontados com a falta do espetáculo cotidiano, não, queriam
segui-lo. E o chefe, fazendo valer sua autoridade, tinha pressa em chegar ao
campo. O garoto empurrou o portão: abriu-se. Então, não vivia trancado? ...E
ninguém ainda fizera a experiência. Era o primeiro a penetrar no jardim, e
pisava firme, posto que cauteloso. Os amigos chamavam-no, impacientes. Mas
entrar em terreno proibido é tão excitante que o apelo perdia toda a
significação. Pisar um chão pela primeira vez; e chão inimigo. Curioso como o
jardim se parecia com qualquer um; apenas era mais selvagem, e o melão-de-são-caetano
se enredava entre as violetas, as roseiras pediam poda, o canteiro de cravinas
afogava-se em erva. Lá
estava, quentando sol, a mesma lagartixa de todos os jardins, cabecinha móbil e
suspicaz. O menino pensou primeiro em matar a lagartixa e depois em atacar a
janela. Chegou perto do animal, que correu. Na perseguição, foi parar rente do
chalé, junto à cancelinha azul (tinha sido azul) que fechava a varanda da
frente. Era um ponto que não se via da rua, coberto como estava pela massa de
folha gemo A cancela apodrecera, o soalho da varanda tinha buracos, a parede,
outrora pintada de rosa e azul, abria-se em reboco, e no chão uma farinha de
caliça denunciava o estrago das pedras, que a louca desistira de reparar. A
lagartixa salvara-se, metida em recantos só dela sabidos, e o garoto galgou os
dois degraus, empurrou cancela, entrou. Tinha a pedra na mão, mas já não era
necessária; jogou-a fora. Tudo tão fácil, que até ia perdendo o senso da
precaução. Recuou um pouco e olhou para a rua: os companheiros tinham sumido.
Ou estavam mesmo com muita pressa, ou queriam ver até aonde iria a coragem
dele, sozinho em casa da doida. Tomar café com a doida. Jantar em casa da
doida. Mas estaria a doida? A princípio não distinguiu bem, debruçado à janela,
a matéria confusa do interior. Os olhos estavam cheios de claridade, mas afinal
se acomodaram, e viu a sala, completamente vazia e esburacada, com um
corredorzinho no fundo, e no fundo do corredorzinho uma caçarola no chão, e a
pedra que o companheiro jogará. Passou a outra janela e viu o mesmo abandono, a
mesma nudez. Mas aquele quarto dava para outro cômodo, com a porta cerrada.
Atrás da porta devia estar a doida, que inexplicavelmente não se mexia, para
enfrentar o inimigo. E o menino saltou o peitoril, pisou indagador no soalho
gretado, que cedia. A porta dos fundos cedeu igualmente à pressão leve,
entreabrindo-se numa faixa estreita que mal dava passagem a um corpo magro. No
outro cômodo a penumbra era mais espessa parecia muito povoada. Difícil
identificar imediatamente as formas que ali se acumulavam. O tato descobriu uma
coisa redonda e lisa, a curva de uma cantoneira. O fio de luz coado do jardim
acusou a presença de vidros e espelhos. Seguramente cadeiras. Sobre uma mesa
grande pairavam um amplo guarda-comida, uma mesinha de toalete mais algumas
cadeiras empilhadas, um abajur de renda e várias caixas de papelão. Encostado à
mesa, um piano também soterrado sob a pilha de embrulhos e caixas. Seguia-se um
guarda-roupa de proporções majestosas, tendo ao alto dois quadros virados para
a parede, um baú e mais pacotes. Junto à única janela, olhando para o morro, e
tapando pela metade a cortina que a obscurecia, outro armário. Os móveis
enganchavam-se uns nos outros, subiam ao teto. A casa tinha se espremido ali,
fugindo à perseguição de 40 anos. O menino foi abrindo caminho entre pernas e
braços de móveis, contorna aqui, esbarra mais adiante. O quarto era pequeno e
cabia tanta coisa. Atrás da massa do piano, encurralada a um canto, estava a
cama. E nela, busto soerguido, a doida esticava o rosto para a frente, na
investigação do rumor insólito. Não adiantava ao menino querer fugir ou
esconder-se. E ele estava determinado a conhecer tudo daquela casa. De resto, a
doida não deu nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mãos à altura dos
olhos, como para protegê-los de uma pedrada. Ele encarava-a, com interesse. Era
simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro, atrás de uma
barricada de móveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma
elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita na pele,
manchando-a. E parecia ter medo. Mas os dedos desceram um pouco, e os pequenos
olhos amarelados encararam por sua vez o intruso com atenção voraz, desceram às
suas mãos vazias, tornaram a subir ao rosto infantil. A criança sorriu, de
desaponto, sem saber o que fizesse. Então a doida ergueu-se um pouco mais,
firmando-se nos cotovelos. A boca remexeu, deixou passar um som vago e tímido. Como
a criança não se movesse, o som indistinto se esboçou outra vez. Ele teve a
impressão de que não era xingamento, parecia antes um chamado. Sentiu-se
atraído para a doida, e todo desejo de maltratá-la se dissipou. Era um apelo,
sim, e os dedos, movendo-se canhestramente, o confirmavam. O menino
aproximou-se, e o mesmo jeito da boca insistia em soltar a mesma palavra curta,
que entretanto não tomava forma. Ou seria um bater automático de queixo,
produzindo um som sem qualquer significação? Talvez pedisse água. A moringa
estava no criado - mudo, entre vidros e papéis. Ele encheu o copo pela metade,
estendeu-o. A doida parecia aprovar com a cabeça, e suas mãos queriam segurar
sozinhas, mas foi preciso que o menino a ajudasse a beber. Fazia tudo
naturalmente, e nem se lembrava mais por que entrara ali, nem conservava qualquer
espécie de aversão pela doida. A própria idéia de doida desaparecera. Havia no
quarto uma velha com sede, e que talvez estivesse morrendo. Nunca vira ninguém
morrer, os pais o afastavam se havia em casa um agonizante. Mas deve ser assim
que as pessoas morrem. Um sentimento de responsabilidade apoderou-se dele.
Desajeitadamente, procurou fazer com que a cabeça repousasse sobre o
travesseiro. Os músculos rígidos da mulher não o ajudavam. Teve que abraçar-lhe
os ombros – com repugnância – e conseguiu, afinal, deitá-la em posição suave. Mas
a boca deixava passar ainda o mesmo ruído obscuro, que fazia crescer as veias
do pescoço, inutilmente. Água não podia ser, talvez remédio... Passou-lhe um a
um, diante dos olhos, os frasquinhos do criado-mudo. Sem receber qualquer sinal
de aquiescência. Ficou perplexo, irresoluto. Seria caso talvez de chamar
alguém, avisar o farmacêutico mais próximo, ou ir à procura do médico, que
morava longe. Mas hesitava em deixar a mulher sozinha na casa aberta e exposta
a pedradas. E tinha medo de que ela morresse em completo abandono, como ninguém
no mundo deve morrer, e isso ele sabia que não apenas porque sua mãe o
repetisse sempre, senão também porque muitas vezes, acordando no escuro, ficara
gelado por não sentir o calor do corpo do irmão e seu bafo protetor. Foi
tropeçando nos móveis, arrastou com esforço o pesado armário da janela,
desembaraçou a cortina, e a luz invadiu o depósito onde a mulher morria. Com o
ar fino veio uma decisão. Não deixaria a mulher para chamar ninguém. Sabia que
não poderia fazer nada para ajudá-la, a não ser sentar-se à beira da cama,
pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia acontecer. Veja mais aqui, aqui e
aqui.
LA BELLE DAME SANS MERCI
& OUTROS POEMAS - Na
obra poeta do Romantismo inglês John Keats (1795-1821), começo por destacar a tradução
do poema La belle dame sans merci (1819), do estudo O feminino erótico
encontrado na obra do poeta romântico John Keats, de Antonio Fernandes Lima
Sobrinho, Diane Savier de Sousa e Fernanda Cardoso Nunes, do qual destaco os
trechos: IV
- Uma dama nos prados encontrei, / Todo-formosa, filha de uma fada: / A
cabeleira longa, os pés ligeiros, / A vista descuidada. V - Tomei-a em meu
corcel de passo lento, / E o dia inteiro nada mais vi, não; / Pois pendida de
lado ela cantava / De fada uma canção. VI - Eu fiz-lhe uma grinalda para a
fronte, / E pulseiras e um cinto redolente; / Ela me olhou com ar de quem
amasse, / Gemendo suavemente. VII - Procurou para mim raízes doces, / Orvalho
de maná e mel do mato; / E numa língua estranha murmurou: "Eu amo-te de
fato" X - Guerreiros, e reis pálidos, e príncipes, / Todos, de morte
pálidos, eu vi, / E me diziam: - "Pôs-te em cativeiro La belle Dame sans
merci". XI - Com o negro aviso, seus famintos lábios / Vi escancarar-se à
sombra vespertina; / E despertando me encontrei aqui, / No frio da colina. XII -
E este é o motivo pelo qual eu me acho / Aqui, vagando pálido e sozinho, / Malgrado,
seco o junco à beira-lago, / Não cante um passarinho. Também o poema Esta mão viva: Esta
mão viva, agora quente e pronta / Para um sincero aperto, se estivesse fria / E
no silêncio gélido da tumba, / Viria de tal forma te obsedar os dias / E
esfriar-te as noites sonhadoras / Que quererias esgotar o sangue de teu coração
/ Para que em minhas veias - / Pudesse inda uma vez correr a vida rubra / E
tranquila tivesses a consciência: / - Vê-a, aqui está, estendendo-a para ti. Mais o poema Mulheres, vinho e rapé: Dê-me mulheres, vinho e rapé / Até que grite
“Chega!” / Pode fazê-lo sem objeção / Até o dia da ressureição; / Abençoe minha
barba pois esta é / Minha adorada Trindade. Por fim um dos seus poemas Sem
título: Repousando sobre os belos seios
do meu amor / Sentir para sempre seu suave enrijecer / E abrandar para sempre
acordado em um doce despertar / Imóvel, imóvel para ouvir o seu delicado
respirar / Brilho da minha paixão, / Fosse eu imóvel como tu, astro fulgente / Não
suspenso da noite com uma luz deserta. Veja mais aqui e aqui.
DE O DEFUNTO AO QUINTA DAS
JANELAS – A trajetória
da jovem e bela atriz Larissa Maciel
começou quando ela tinha apenas nove anos de idade, atuando nas mini-peçs de
teatro do seu colégio, fato que a levou a se apresentar no espetáculo Um conto
de inverno (1996). Neste mesmo ano ela atua na peça O defunto. No ano seguinte
foi estudar Artes Cênicas na UFRGS, o que a levou a atuar em diversos curtas e
séries para a televisão gaúcha. Seguiram-se então a sua participação nas peças
Barão das árvores (1998), Um gosto de mel (1999), Zona contaminada (1999), O
menino maluquinho (1999), Não culpem ninguém (2000), Todos que caem (2004), Os
sobreviventes (2005), Hotel Rosa Flor (2006), Aquelas mulheres (2010), A Eva
futura (2011) e a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém (2012). Em 2006 ela
estreia no cinema no filme A festa de Margarete, seguindo-se Vazio Coração
(2012) e Quinta das Janelas (2012). Ao mesmo tempo ela atuou em comerciais,
minisséries e em novelas na televisão. Esse um nome promissor da arte cênica
brasileira. Veja mais aqui.
UM HOMME ET UNE FEMME – O filme Un homme et une femme (Um Homem, uma Mulher, 1966), dirigiro pelo cineasta,
argumentista, produtor e realizador francês Claude Lelouch, conta a história de um piloto de corridas que está
viúvo e encontra-se por acaso com uma bela mulher também viúva, ao visitarem
seus filhos num colégio interno e isso se repete todos os finais de semana. Eis
que num desses inesperados encontros no colégio de seus filhos, ela perde o
trem e ele oferece uma carona de volta a Paris. Por causa disso, tornam-se
amigos muitos chegados e, nesse vai e vem, finalmente se apaixonam um pelo
outro, mas percebem que as lembranças dos seus cônjuges falecidos são ainda
muito fortes entre eles. O destaque do filme vai para a sempre bela e
premiadíssima atriz francesa Anouk Aimée. Veja mais
aqui e aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte do fotógrafo alemão Helmut Newton (1920-2004).
Veja mais no MCLAM: Hoje é dia do
programa Noite Romântica, a partir
das 21hs (horário de verão), com a apresentação sempre especial e apaixonante
de Meimei Corrêa. Em seguida, o programa Mix MCLAM, com Verney Filho e na
madrugada Hot Night, uma programação
toda especial para os ouvintes amantes. Para conferir online acesse aqui .