TRÍPTICO DQC: POEMANDANTE,
PALAÁVORAS - (Aos acordes da canção Pronta pra cantar, de Caetano Veloso, nas vozes de Nina Simone
& Maria Bethânia) – A minha vida
à janela, pés no chão ao rés da vida - as nuvens namoram os morros limítrofes e
os cobrem com as suas saias brancas por dias sem fim, enquanto o Sol cochila
manso com a algazarra dos pássaros que mudam de cor a cada gorjeado, cruzando
uns aos outros, num colorido de vida. Sou levado, velovoz minha primaveraneio,
chuvoutonal, sai do rio pelo canavial, atravessa a província morracima,
quedabaixo, estradependali acolalhures - e a cidade ora é um pastoril com
margens opostas aos desaforos e injurias mútuas, quem do cordão encarnado que
venha, quem do cordão azul que se vá; ora é a farra pelos quatro cantos de
velas, fé e perdição. Ah, essa manada catatônica para lá e para cá noites e
dias de finados, feiras e bissextos, provam apenas que o mundo é uma bola e as
anedotas e desgraças pairam no ar e aquecem a vida e os sonhos dos munícipes,
sempre grados e furiosos, ora com o calor escaldante, ora com o frio das névoas
dos terrores. As mulheres, ah, as mulheres, todas sempre radiantes e fogosas no
meu coração com sua carne incendiária, elas nem sabem que vão e carregam os
olhares de cobiça no desfile delas, impunes e sedentas, como são aprazíveis e
talvez a melhor entre as melhores coisas daqui. E os homens, cabeças de
fósforos, vivem de alisar o polegar ao anular, coçando os escrotos e pensando que
tudo é possível como nos sonhos e pesadelos: vivem de atrapalhar a si e a vida
dos outros, quando não mudam de ideia e querem que o curso dos rios siga aos
caprichos de forte sobre mais fracos e submissos. Entre os endinheirados devotam
comícios de aplausos – meia dúzia de alma penada que amealhou, sabe-se lá como,
muque, punho e munheca, e alternam poderes nas quatro festas do ano, feriados e
celebrações umbigocentristas. Outros, entre os menos abastados, fazem e
desfazem conforme o apadrinhamento e interesse. Entediante, senão desapontador
tudo isso. Levanto a vista e o cenário superior é melhor e logo me aparece Torquato Neto da Paupéria: Uma palavra é mais
que uma palavra, além de uma cilada. E riu e muito. No meio da sua gaitada
frouxa emergiu o poeta e filósofo paquistanês Muhammad Iqbal (1877-1938): A
vida é um movimento de assimilação progredindo sem cessar. No seu caminho
suprime todos os obstáculos, assimilando-os. A sua essência é a criação
contínua de desejos e de ideais. O Eu procura libertar-se eliminando todos os
obstáculos à sua passagem. Em parte é livre, em parte é determinado. Numa
palavra a vida é um esforço no sentido da liberdade. E rimos muito e muito.
Foram embora e me deixaram sozinho apreciando a panorâmica da janela. É hora de
ir e lá vou eu Quixote & Bispo do Rosário, almanhã, noitadeus, velavoz
galapada & peitaberto: do meu pro seu txai
coração.
ESSA TAL MERITOCRACIA, QUAL É, HEM? –
Curtindo Symphonie op.21
(1928), do compositor austríaco Anton Webern (1883-1945),
com a Berliner
Philharmoniker, Pierre Boulez conducts
(Deutsche Grammophon, 1996) - Sim, sim. No Brasil a educação é uma fôrma! Sim, isso
mesmo, todos moldados no que é cristão, militarista, servil e, com aquela sabe
como é - de fazer o certo, muito embora aqui o certo seja bastante escuso! Estou
com Mark Twain do primeiro ao
quinto, dezena, centena e milhar! Principalmente depois do fanatismo do
evangélico neopentecostal! E por falar nisso, o que é da meritocracia, hem? Ah, nada melhor que ao livro A tirania do mérito: o que aconteceu com
o bem comum? (José Olympio, 2020),
do filósofo e escritor estadunidense, Michael J. Sandel: Quem faz sucesso tende a achar que é graças
a si mesmo. Destaca ele com todas as letras que A ênfase constante na ascensão individual através da educação superior
tinha um insulto implícito: se você não tiver obtido um diploma universitário e
se não tiver prosperado na nova economia, seu fracasso é culpa sua. Não há
ninguém a quem culpar exceto a você mesmo. Parte do problema é que as elites
meritocráticas de hoje em dia sofrem uma falta de humildade. É o que chamo de
arrogância meritocrática, e desafiá-la é um primeiro passo importante. E
sobre a pandemia? Ele solta na lata: Uma
pandemia salienta nossa dependência mútua e exige um alto nível de
solidariedade social. À medida que o vírus avançava, ia ficando cada vez mais
claro que aqueles que suportavam as cargas mais pesadas e realizavam os maiores
sacrifícios, e que sofriam mais perdas de vidas, eram aqueles que tinham sido
deixados para trás na prosperidade das últimas quatro décadas. Nem pude
digerir direito, chegou logo o Ivan Turguêniev em cima da bucha: As
pessoas fracas nunca põem fim a nada – ficam à espera do fim. Se esperarmos o
momento em que tudo, absolutamente tudo, esteja pronto, nunca começaremos nada.
Sim? Nem tomei fôlego direito e era o Imre Kertész: Não se pode viver a
liberdade no mesmo lugar onde se viveu a servidão. Claro, viver é outra forma
de nos matarmos a nós próprios: a desvantagem é que é um processo horrivelmente
longo. Bombardeio deste, quem sai com o juízo aprumado no meio dos
algoritmos & noticiários com suas ideologias de mercado e consumo
mundializado, hem? Minha orelha espreita um ninho de pulgas desconfiadas, viu?
DO AMOR NOS TEMPOS DE TORTURA & REPRESSÃO – Imagem:
arte do artista visual estadunidense John
Currin. Curtindo Unbegrenzt (Blank Forms, 2020), da artista sonora,
escritora, compositora, filósofa e matemática sueca Catherine Christer Hennix, associada
à música drone e filiada ao AI Lab do MIT no final dos anos 70 e mais tarde foi
empregada como professora de pesquisa em matemática na SUNY New Paltz - Era ela,
como sempre, inusitada no palco do meu coração: Sou Diva, Maria Diva de Faria: Teve uma
tortura que aconteceu na véspera do Sete de Setembro. Sei que foi esse dia
porque a gente escutava o ensaio das bandas. Me levaram para uma sala com
acústica de madeira. Tocava uma música de enlouquecer. Era um som como se
estivessem arranhando a parede. A música foi aumentando cada vez mais. Quando
eu saí de lá, minha cabeça estava latejando. Por pouco eu não enlouqueci. Lá no
DOI-Codi, todo dia eu ia para o interrogatório, e as torturas eram de todas as
formas, como na cadeira do dragão, e sempre nua. E eles ameaçavam as pessoas
que a gente conhecia. Um dia me chamaram e eu vi o Paulo Stuart Wright
encapuzado. Reconheci-o pelo terno que ele estava usando, que fui eu quem tinha
dado para ele, e também pela voz. Os torturadores falavam muito das presas,
ridicularizavam, gritando para você ouvir. Eram coisas libidinosas, como do
tamanho da vagina de uma pessoa que eu conhecia. Uma vez, eles me chamaram para
um interrogatório com um homem negro que diziam ser um psicólogo. Isso foi
muito tocante para mim, porque é claro que chamaram um homem negro para eu me
sentir identificada. Um dia, eles me chamaram no pátio e lá estava o satanás
encarnado, o capitão Ubirajara (codinome do delegado de polícia Laerte
Aparecido Calandra), apoiado num carro, e um outro ao lado dele em pé, e um
bando de homens do outro lado. Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá
e para cá, para lá e para cá, durante um bom tempo. E os homens falando: “Ô
negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão.
Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa
banhona, negra horrorosa”. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser
humano a esse ponto… Sim, sou Diva, enfermeira presa e que até hoje não
esqueço essas tiranias. Sou também, como ela, Gastone Lúcia, sou Nilda,
Izabel, Iara, Rose, Heleny, Marilena, Helena, Labibe e Alceri &
todas as Filhas da Dor & dói demais ser viva e mulher! Fui para perto dela,
beijei suas pálpebras ensopadas de lágrimas e meu abraço guardou o seu soluço
por longo tempo. Depois ela levantou-se e caminhou no meu quarto, tudo cantava
ao seu redor, invicta beleza e giravalada certeira que me amparava pelos cantos
entre agrados e favores, a sua fome fêmea e a festa do corpo. Depois de zanzar
para lá e para cá, acercou-se de mim e recitou a escritora estadunidense Anne Sexton (1928-1974): Viva ou morra, mas não envenene tudo. Eu
estou sozinha aqui em minha mente. Não há mapa e não há estrada. Sim, mapas
não temos, estradas quaisquer. Para mim, abraçá-la era o mesmo que a sorte de
estar vivo diante da deusamante, deusalada, o privilégio de habitá-la e o beijo
de sua boca vinho algum revida. Até mais ver.
A MÚSICA DE PAULO DINIZ
Meu nome é marca ferrada / Ferrada com sangue e suor / Que o fogo da vida castiga / Castiga sem pena e sem dó / Nos longos caminhos da lida / Mistura de água e pó / Meu nome é marca ferrada / Porteira fechada de quem anda só / Eu chego lá, eu chego lá / Eu chego em cima / No alto da colina / Ninguém vai me derrubar.
É Marca ferrada (1978), música do cantor, locutor, ator e
compositor Paulo Diniz, que teve entre seus parceiros Odibar e Juhareiz
Correya, e musicou poemas de Drummond, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos,
Jorge de Lima e Manuel Bandeira. Entre seus álbuns musicais figuram Brasil,
brasa, braseiro (1967), Quero voltar pra Bahia (1970), Paulo Diniz (1971), E
agora, José? (1972), Lugar Comum (1973), Paulo Diniz (1974), Estradas (1978), É
marca ferrada (1978), Canção do exílio (1984), Pegou de jeito (1985) e reviravolta
(2004), entre outros. Veja mais aqui, aqui e aqui.