TRÍPTICO DQC: JANELA
DO MEU QUARTO – Curtindo a Symphony nº 1 - Three Movements
for Orchestra -, da compositora estadunidense Ellen Taaffe Zwilich -
Na verdade não há janelas no meu quarto, tudo muito irrespirável. Inchei de
vazio e meus outros eus para sobrevivência abriram buracos na minha cabeça e
corpo, tomaram vulto e me esfacelaram. Era a salvação deles eu estraçalhado,
nada mais restava de mim. Povoaram o ambiente exíguo e tomaram de mim o
oxigênio escasso. Logo se dispuseram a invenção de uma janela e me convidaram
para ver o mundo. Para quem só tinha os rebocos da parede a Lua é sempre
minguante apesar de cheia e a chuva para beber e matar minha sede recortando
palavras de jornais, revistas e livros. Do umbigo saiu-me outra cria e a pele
sangrava, embora não saiba o que era antes do antes de antes, as palavras não
me faltaram enquanto atribulado não escapava dos insetos a me devorar na festa
de muitos e eu sozinho. Quem dança voa e eu não sei dançar nem nadar: as águas
me chamavam noitedia e o mundo era só um tabuleiro de jogos, um aquário em
guerra pela sobrevivência. Em cima não sei o se expande e em baixo outras se
diluem. Tal como Odysséas Elýtis: Escrevo para que a morte não tenha a última palavra. Só uma coisa eu sei: vivo apesar
de tudo!
BURACO SONOLENTO – A arte do artista congolês Aicha
Muteba – Lá ia Doro para
cima e para baixo, mexendo no aparelho telefônico móvel sem se dar conta de
nada ao seu redor. Dava trabalho aprender a como manipular aquela jeringonça em
miniatura. Queimava os neurônios de quase perder a paciência com tantas
operações. Não sei quantas vezes deu cabeçada em postes, tropeçou no meio fio,
escorregou nos alagados e quase morreu outras tantas surpreendido com a
frenagem ao atravessar desavisado pelas ruas e avenidas. Não deu outra, de
tanto passar vexame entretido com aquele troço que findou caindo num buraco. Na
queda fechou os olhos e deixou-se levar pelo fundo sem fundo. Com a vertigem desmaiou
e ao despertar era noite num povoado desconhecido jamais visto, tentado por
espíritos zombeteiros que reinavam num silêncio ensurdecedor e envolvido por
acontecimentos sucessivos aos quais escapava e logo capturado por outra
situação vexatória, incapaz de se livrar de tudo aquilo, vez que era perseguido
por um cavaleiro sem cabeça que o fez correr a noite toda até se exaurir e cair
desacordado. Descobriu-se morto num sonho em que outros sonhavam com ele numa
sucessão de ocorrências intermináveis de se achar enlouquecido para sempre. Não
sabe como foi parar ali e depois de tanto pelejar, de uma hora para outra
estava são e salvo. Eita! Essa pinoia não tem explicação, mas diga lá uma
coisa: onde que droga que era, hem? E eu sei! Pelo que narrou, só o doutor Zé Gulu identificou como sendo o mesmo local identificado do conto The legend of Sleepy Hollow, extraído da
obra The Sketch Book of Geoffrey Crayon (NY,
1820), de Washington Irving: Povoado acerca de dois quilômetros da
pequena cidade de Greenshugh, às margens do rio Hudson. É um dos lugares mais
tranquilos da Terra, apesar dos numerosos espíritos que assombram. Os únicos
sons que se ouvem são o murmúrio das águas de um riacho, o assobio ocasional de
uma codorna ou as batidas de um pica-pau. Os habitantes descendem diretamente
dos colonos holandeses originais. O nome do povoado vem de sua atmosfera
sonolenta. Alguns dizem que foi enfeitiçada por um médico alemão nos primeiros
dias de sua fundação. Outros sustentam que era o local de reunião de
feiticeiros indígenas muito antes da chegada dos europeus. Qualquer que seja o
motivo, o fato é que seus moradores parecem estar sob o encantamento do lugar e
viver num mundo de sonho. São extremamente supersticiosos, sujeitos a transes e
visões. O principal espírito que assombra o lugar é o fantasma de um cavaleiro
sem cabeça, um mercenário essênio cuja cabeça foi arrancada por uma bala de
canhão numa batalha esquecida da guerra de independência. Os historiadores
afirmam que seu corpo jaz no cemitério da igreja e que ele cavalga à noite em
busca de sua cabeça perdida, retornando ao seu túmulo antes do amanhecer. Danou-se!
Olhares de soslaio e o culto filósofo ousou com uma frase do escritor e
psicólogo Ph.D. estadunidense, Timothy
Leary (1920-1996): O meu conselho para as pessoas atualmente é o seguinte: se você leva o
jogo da vida a sério, se você leva o seu sistema nervoso a sério, se você leva
os seus órgãos de sentido a sério, se você leva o processo da energia a sério,
você tem que se ligar, sintonizar e cair fora. Todos riram e levaram na conta da pilhéria: Ô doutor, o senhor não
acha que a gente está endoidecendo assim e essa cabra cheio de artes, hem? Ele ficou
sério, empurrou com o indicador o óculos ajustado às vistas e sacou para todos
os presentes Doris Lessing: A arte é o espelho dos nossos ideais traídos. Qualquer ser humano, em
qualquer parte do mundo, irá florescer em cem talentos e capacidades
inesperadas, simplesmente por lhe ser dada a oportunidade de o fazer. Aprendizado
é isso: de repente, você compreende alguma coisa que sempre entendeu, mas de
uma nova maneira. Soltou essa e deixou-os intrigados: O que é que ele
queria mesmo dizer, hem? Sei lá!
A CENA & A DOR SOLIDÁRIA DELA – Imagem: ate da pintora,
escultora e gravurista francesa Louise
Abbéma (1853-1927) – De súbito ela entrou em cena: era a professora Izabel Fávero depondo: Eram mais ou menos 2 horas da manhã quando
chegaram à fazenda dos meus sogros em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi
tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca de 700 homens para a operação. Eu, meu
companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do
outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o
que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval.
No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu,
onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e
pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau de arara, choques elétricos,
jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Dias depois, chegaram dois
caras do DOPS do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrão da Morte na roupa,
para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu ficava horas numa sala, entre perguntas e
tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam
sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro
e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei
incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada
por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me
torturar. Nesse período todo, eu fui insultadíssima, a agressão moral era
permanente. Durante a noite, era um pânico quando eles vinham anunciar que era
hora da tortura. Quando você começava a se recompor, eles iniciavam a tortura
de novo, principalmente depois que chegaram os caras do DOPS. Durante anos, eu
tive insônia, acordava durante a noite transpirando. De Foz, fomos levados para
o DOPS de Porto Alegre, onde houve outras sessões de tortura, um na frente do
outro. Depois, fomos levados de volta para Curitiba, onde fiquei na
penitenciária de Piraquara. Quando finalmente fui para a prisão domiciliar, que
durou quatro meses, eu sofri muito, fui muito perseguida e ameaçada. Recebia
telefonemas anônimos, passava noites sem dormir. Era ela e Iara, Rose, Heleny, Marilena, Helena, Labibe e Alceri, todas filhas das dores e abraçada em
mim para que eu lhe dissesse apenas um verso de Jorge de Sena: Deitado à tua beira, sei que se rasga,
eterno, o véu da Graça. Sou-lhe inteiro e todo seu. Até mais ver.
A MÚSICA DOS IRMÃOS VALENÇA
O teu cabelo não nega mulata / Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega mulata / Mulata eu quero o teu amor / Tens um sabor bem do Brasil / Tens a alma cor de anil / Mulata mulatinha meu amor / Fui nomeado teu tenente interventor / Quem te inventou meu pancadão / Teve uma consagração / A lua te invejando faz careta / Porque mulata tu não és deste planeta / Quando meu bem vieste à terra / Portugal declarou guerra / A concorrência então foi colossal / Vasco da gama contra o batalhão naval.
O teu
cabelo não nega, parceria de Lamartine Babo com os compositores Irmãos
Valença – Raul Valença
(1894-1977) e João Valença
(1890-1983), que compuseram inúmeras músicas e integraram o grupo teatral
Grêmio Familiar Madalenense. Veja mais aqui & aqui.