TRÍPTICO DQC: NOITAMANHECERES
- Curtindo For Organ and Brass (2017), da compositora de vanguard sueca Ellen Arkbro - À janela, paisagens disformes e ignotas.
Entre sombras, a noite é íntima da solidão. Sinto no ar a aproximação de
alguém. Detecto e nada mais, nada menos que o ator, roteirista, produtor e
comediante britânico Sacha Baron Cohen,
aquele mesmo do pseudocumentário de humor Borat
- O segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América
(2007), que conta a história de um famoso repórter daquele país da Ásia Central
que, em viagem aos Estados Unidos, registra os hábitos dos cidadãos estadunidenses,
provocando situações absurdas por onde passa. Sim, ele mesmo, em pessoa ou
miragem, sei lá mais da minha loucura solitária. Mandou ver num recado: Um esgoto de teorias fanáticas e de
conspiração ameaça a democracia e o nosso planeta. Todo este ódio e violência são facilitados por um punhado de empresas de
internet que representam a maior máquina de propaganda da história. Na
internet, tudo pode parecer igualmente legítimo. Os algoritmos
em que essas plataformas dependem amplificam deliberadamente o tipo
de conteúdo que mantém os utilizadores envolvidos - histórias que apelam aos
nossos instintos mais básicos e que provocam indignação e medo, superam
as notícias reais, porque estudos mostram que as mentiras espalham-se mais
rápido do que a verdade. Mas uma coisa está bem clara para mim: chegam a
bilhões de pessoas. Pense nisto, talvez possamos parar a maior máquina de
propaganda da história e salvar a democracia. Sério, era ele mesmo, não o
personagem. Fez um aceno e desapareceu na escuridão. Fiquei cá comigo,
ruminando nestes tempos de vazio, solidão, sindemia, neuroses, fobias, insônia
e insânias, liquidez de relações, lawfare,
malware,
teorias da conspiração, respostas Glomares, mentiras
microdirecionadas e liberdade de alcance. Tempo meio doido este, do jogo dos
contrários disseminando o caos e a confusão reinante às maiores
contemporizações, cada qual seu arrazoado. Eu, hem!?! Mergulhado nos meus
pensamentos, ansiava pelo raiar do dia, quando ouvi Dostoiévski: É surpreendente
o que um raio de sol pode fazer com a alma humana! Meu amigo, lembre-se: ficar em silêncio é bom, seguro e bonito. Quero
poder falar de tudo com pelo menos uma pessoa, até comigo mesmo. Não
encha a sua memória com rancores para que não falte espaço para os momentos
bonitos. Não havia ninguém, era minha memória falando alto. Haja pulga ao
redor das orelhas.
DE GYNAECOPOLIS, APHRODISIA & EROTIO – Curtindo
Transfigured Night for String Sextet, Op. 4, de Arnold Schoenberg, NEC Contemporary
Ensemble Concert directed by John Heiss Jordan Hall in Boston (2013) – Despertei
durante a madrugada e estou lavado de suor. Na verdade, despertei de um sonho ou
pesadelo, não sei, em que me encontrava numa cidade chamada Gynaecopolis, local onde reinavam as
mulheres. Lá entre elas, tive o privilégio dos maiores e melhores prazeres, mas
desconfiava qual seria meu destino e isso incomodava a ponto de acarretar temores.
Esfreguei os olhos e, ao tentar interpretar o sonho, me deparei com um alfarrábio
sobre a mesinha da cabeceira e era a publicação Mundus
alter et idem sive terra Australis antehac semper incognita longis itineribus
peregrini Academici nuperrime lustrata (Londres,
1605), do satirista e moralista inglês Joseph
Hall (1574-1656). Intrigado com o volume, não me lembrava de tê-lo lido ou
comprado. Ao folheá-lo percebi logo que era um romance distópico que contava de
uma viagem do navio Fantasia aos
mares do sul, visitando terras povoadas por glutões, chatos, idiotas e ladrões.
Coincidentemente esse era o meu sonho. Dediquei atenção à leitura e constatei
ser uma sátira menipéia que continha uma descrição sarcástica de Londres e
críticas à igreja católica romana. Sim, sim. Foi durante a leitura que
identifiquei o local onde fui parar no sonho, encontrando a respeito a seguinte
descrição: Lá o parlamento funciona sem
interrupção, uma vez que não há discriminação no exercício do poder. Todas as
mulheres têm o direito à palavra e voto. Os debates são infindáveis e as
participantes falam todas ao mesmo tempo. Para garantir um certo grau de
estabilidade, as decisões tomadas não apodem ser revogadas até o dia seguinte.
As autoridades são eleitas conforme critérios de beleza e eloquência por um
júri de matronas selecionadas especialmente para essa importante tarefa. Nossa,
talqualmente! Sim, mais coincidências: na minha viagem onírica, fui levado por
uma delas para Aphrodisia e Erotio, também registrada na citada obra:
São as províncias mais notáveis do país,
onde as mulheres usam quantidades imensas de maquiagem, se vestem com tecidos
muitos finos e transparentes e andam com os seios nus. Moram em casas de vidro
e devotam o dia inteiro às compras para se assegurar de que são vistas. Tal
como aranhas, elas observam os homens de Locania e Geilland, com quem estão
constantemente em guerra. Quando seus gestos provocativos conseguem subjugar um
desses homens, forçam-no a satisfazer seus desejos, mantendo-os em estábulos,
onde são engordados com poderosos filtros do amor. De fato, fui trancafiado
e muito bem tratado por elas, mas nenhum dos que ali passaram ou estiveram, ninguém
sabia qual o destino que elas lhe reservavam. Não havia nenhuma informação por
onde passei ou indicação no próprio livro, sobre o que se sucedia aos que
fossem capturados naquelas localidades. Sei que aprisionado, de repente me deu
um mal-estar de que algo nada agradável me ocorreria. Na minha solidão ouvi Carlos Fuentes: O passado está escrito na memória e o futuro está presente no desejo.
Toda descoberta é um desejo, e todo desejo, uma necessidade. Nós inventamos o
que descobrimos; descobrimos o que imaginamos. Nossa recompensa é o
encantamento. Não tomar decisões é pior do que cometer erros. Todas as coisas
são naturalmente feitas para mudar, alterar, morrer, a fim de permitir que
outras sucedam. Procurei ao redor, não havia ninguém, meus pensamentos
pregavam outra peça em mim. Ouvi ruído nas fechaduras, vozes femininas e um mal
presságio se apoderou completamente de mim.
DAS INESQUECÍVEIS DORES - Imagem:
a arte da bailarina britânica Francesca Hayward. - Nem havia me
recuperado do sonho ou pesadelo, quando ela entrou subitamente toda bailarina e
parou no ar como se uma atriz pronta para passar seu texto: Sou Dulce, Dulce Chaves Pandolfi, fui presa no dia
14 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro: Toda
vez que o guarda abria a cela e vinha com aquele capuz, a gente já sabia que ia
apanhar. Numa dessas vezes que foram me buscar, quando chego na sala de
tortura, ao tirarem meu capuz percebo que era uma aula. Havia um professor e
vários torturadores. Pelo sotaque, percebi que alguns não eram brasileiros, mas
provavelmente uruguaios, argentinos. Então me disseram que eu era uma cobaia.
Eles começaram a explicar como dar choque no pau de arara. Eu passei muito mal,
comecei a vomitar, gritar. Aí me levaram para a cela e, dali a pouco, entrou um
médico com outros torturadores. Ele me examinou, tomou minha pressão e o
torturador perguntou: ‘Como ela está?’ E
o médico respondeu: ‘Tá mais ou menos, mas ela aguenta’. E aí eles desceram
comigo, sob gritos e protestos das companheiras de cela. A aula continuou e
acabou comigo amarrada num poste no pátio com os olhos vendados, e os caras
fazendo roleta russa comigo, no maior prazer. Essa brincadeirinha levou muito
tempo, até que no sexto tiro a bala não veio. Na minha época, eu fui a única a
servir de cobaia, acho que eles tinham uma ‘predileção’ especial por mim. No
DOI-Codi, a barra foi pesadíssima. Teve pau de arara com choque elétrico no
corpo nu: nos seios, na vagina, no ânus. Lá tinha um filhote de jacaré de
estimação dos torturadores que eles colocavam para andar em cima do nosso
corpo, amarrado numa cordinha. Fiquei três meses no DOI-Codi, depois fui para o
Dops e, depois de um tempo, para o presídio de Bangu. Então, fui transferida
para o presídio de Bom Pastor, em Pernambuco. Sim, sou ela e sou mais
outras e tantas, como Diva e todas
as Filhas da Dor. Ao encerrar sua
encenação, ela enxugou as lágrimas, me encarou e era a poeta estadunidense Ana Katharine Green (1846 – 1935): Por
mais eloquente que seja a morte, mesmo nos rostos daqueles desconhecidos e não
amados por nós, as causas e consequências desta eram importantes demais para
permitir que a mente se detivesse na tristeza da cena em si. Um raio de Sol
invadiu o ambiente e ela mais linda que nunca ali para bailar no meu coração
solitário. Logo percebeu minha carência e veio a mim sedutoramente recitando um
poema do poeta e dramaturgo congolês Kama
Sywor Kamanda: O semeador de tempestade legou-me a
chuva, as tempestades e o céu / Quem morre em dúvida. Já não corre nas minhas
veias / Apenas areia branca. As sombras inspiram pavor em meu coração / No
horizonte onde meus critérios sopram, é um sol desesperado / Quem me estende a
mão, me oferece à luz do dia como um amanhecer perdido / No mundo absurdo o
homem é o vento que afasta as nuvens / E o poeta lançará para as crianças
pobres que nascem, / As canções de nossos corações desprezados, mas
esperançosos. Um beijo se fez dia para que eu fosse dela e ela minha
na entrega do amor. Até mais ver.
ZÉ-DO-FOGUETE, DE HILTON SETTE
[…] Não restou beco, rua ou bairro por mais humilde que não o percorresse com a preocupação de ressuscitar impressões, aspectos, hábitos e odores de um passado distante. [...].
Trecho
extraído do romance Zé-do-foguete (PR/SEC/FCCR, 1984), do geógrafo, professor e
escritor Hilton Sette (1911-1997). Veja mais aqui & aqui.