TRÍPTICO DQC: QUANDONDE, AGORA!... - É noite
e ouço movimento de passadas. Aguço a audição: são pisadas firmes.
Inacreditável, mas sinto o inevitável: as pessoas estão se transformando em
algo descomunal. Um vulto se aproxima e o reconheço com a proximidade. É Bukovski: Cheguei numa fase da minha vida que vejo que a única coisa que fiz até
agora foi fugir, fugir de mim mesmo, do meu nada, e agora não tenho mais para
onde ir, nem sei o que vou fazer, fui péssimo em tudo. Sim, eu compreendo.
Para mim também está muito difícil. Todos, os descontentes agora conservadores,
os hipócritas com a verdadeira face, a geração rivotril levada pelo vazio, enfim, o apogeu daqueles que tornaram a
estupidez numa moda! Uma verdadeira manada de Fabos & Cafos: conformismo,
submissão, fanatismo, alienação! Um Fecamepa!
Todos com sua coleção de comprimidos, drágeas e cápsulas das mais diversas
tarjas, mascarando enfermidades no conluio industrial de médicos e laboratório
farmacêuticos, afinal têm remédio para tudo e uma infinidade de drogarias em
cada rua -, e eu incomodado comigo, inconformado com tudo. Procurei por ele e
não mais ali, era Niels Bohr: Ainda bem que chegamos a um paradoxo. Agora,
há esperança de conseguirmos algum progresso. Esperança? Jogou-me na cara
um provérbio chinês: Não importa quantos
passos você deu para trás, o importante é quantos passos agora você vai dar pra
frente. É verdade, só não sei se o que vai, realmente, segue mesmo adiante
ou retroage, se evolui ou regressa, ou se qualquer movimentação para tanto, chega
a algum lugar além da imobilidade, afora o certo e o errado. Ouço o Buda: Só há um tempo em que é fundamental despertar. Esse tempo é agora.
Não sei mais o que passou, não importa; nem o que virá, nem quandonde, só sei o
que é o agora e nada mais.
DA MONSTRUOSIDADE QUASE FERA - Lá
fora o barulho aumentava, como se um monstro provocasse o alarido. Não era: as
pessoas se tornaram quase feras e digladiavam delimitando seus territórios. Ou
quase isso do período eleitoral. Há quem diga ser esse enfrentamento, aquele
referido pelo Martin Esslin: o sentido do sem
sentido da condição humana. O implacável horror, o absurdo. E duas pessoas
invadiram o meu espaço. Não os identifiquei logo, mas ouvi uma parte diálogo: Psicose coletiva, senhor Dudard, psicose coletiva é
o que isso é! É como a religião que é o ópio dos povos! Pelo
que ouvi, reproduziam o que foi levado para cena nos palcos até hoje, desde
1959. Não restava dúvidas tratar-se de Botard e Dudard, a certidão me veio
quando um deles disse mais adiante: Peço,
desculpas, chefe, mas o senhor não pode negar que o racismo é um dos grandes
erros deste século. Sim, sem dúvidas. Saíram e logo me apareceu mais
alguém: Quem? Nunca vi mais gordo! Logo me disse: Devia ter seguido
todos eles, enquanto era tempo. Agora é tarde demais! Infelizmente, eu sou um
monstro, sou um monstro. Infelizmente, nunca serei rinoceronte, nunca, nunca!
Nunca mais poderei mudar. Gostaria muito, gostaria tanto, mas já não posso. Não
quero nem olhar para a minha cara. Tenho vergonha! (Vira as costas ao
espelho) Como eu sou feio!
Infeliz daquele que quer conservar a sua originalidade! (Tem um
sobressalto brusco) Muito bem! Tanto
pior! Eu me defenderei contra todo o mundo! Minha carabina, minha carabina! (Volta-se de
frente para a parede do fundo onde estão as cabeças dos rinocerontes, sempre
gritando) Contra todo o
mundo, eu me defenderei! Eu me defenderei contra todo o mundo! Sou o último
homem, hei de sê-lo até ao fim! Não me rendo! Ah, era
o monólogo final de Bérenger para uma Daisy oculta. Presenciei tudo até cair o
pano da noite na sátira mordaz de Ionesco.
A solidão e a monstruosidade humana.
A PELE DA MAÇÃ – Imagem: arte do fotógrafo e cineasta
japonês Eikoh Hosoe. – Tarde da
noite e o escarcéu iluminava a cidade. Nem havia percebido que ela chegara nua
para encenar Chame-me a bruxa, ou
Ligue-me Witch, da atriz, escritora, dramaturga e ativista política
italiana, Franca Rame (1929-2013): Não importa o que somos. Não importa o que
você é ou quem você é. Você pode me chamar de bruxa. Por qualquer maneira minha
natureza é essa. Desde sempre, desde o primeiro preguiçoso, ou a primeira vida,
ou o primeiro tiro do mundo. Eu sou uma daquelas mulheres que têm alma, eu sou
uma daquelas mulheres que têm visão e audição de um gato, eu sou uma daquelas
mulheres que falam com árvores e formas, eu sou uma daquelas mulheres que têm o
cérebro de Hipácia, Artemísia, Madame Curie. E eu sou linda. Tenho a beleza da
luz, tenho a beleza da harmonia, tenho a beleza do mar tempestuoso, tenho a
beleza de um tigre, tenho a beleza de dois girassóis, tenho lavanda e também
tenho grama. É por isso que sou Bruxa. Sou Bruxa porque sou diferente, sou
única, sou outra, sou igual, é pelas fileiras, é por dois esquemas, sou
normal... sou! Eu sou uma Bruxa porque tenho orgulho de ser uma
mulher-animal-cigana-artista e... engenheira maluca da minha vida. Sou Bruxa
porque uso na cabeça, porque sempre digo ou penso, porque não tenho uma palavra
maldosa e pruriginosa, dá uma palavra poderosa e poderosa. Sou Bruxa porque
muitas vezes você odeia as Santas Inquisições deste milênio estranho, como
Idade Media de tribunos da mídia apáticos. Eu sou uma Bruxa porque como ainda
existem fogueiras e eu - mais cedo ou mais tarde - posso terminar dentro. E
se fechou em copas. E não disse mais nada, cabeça baixa, braços espremendo os
seios, mãos trêmulas cruzadas sobre o sexo túmido. Fui até ela com abraço
solidário. Deitou a cabeça sobre meu ombro esquerdo e disse estudar noites a
fio o texto A maçã de Eva, parceria
da dramaturga com o marido, Dario Fo,
e o filho, Jacopo. Alisei seus cabelos quando mencionou Elizabeth Cady Stanton: No
momento em que começamos a temer as opiniões dos outros e hesitamos em dizer a
verdade que está em nós, e por motivos de política ficamos em silêncio quando
deveríamos falar, as inundações divinas de luz e vida já não fluem em nossas
almas. E, um tanto hesitante, citou a escritora britânica Elizabeth Gaskell (1865-1810): Como é fácil julgar corretamente após vermos
o mal que vem de julgar de forma errada. Sim, a vida é trânsito, vai e
volta e torna a dar voltas sem parar. A gente não sabe o que diz, só resta
viver e agora mais do que nunca! Até mais ver.
A ARTE DE MARGARIDA CARDOSO
A arte da atriz Margarida Cardoso (1916-1989), que tornou-se conhecida pela atuação em Song of The Sea (1953), Seara Vermelha (1964), Menino de Engenho (1965) e O Salário da Morte (1971) ela foi professora do antigo Departamento de Artes e Comunicação (DAC), que transformou-se em Departamento de Comunicação (Decom), da UFPB, tendo, também atuado no teatro ao lado de grandes nomes teatrais pernambucanos. Veja mais aqui e aqui.