TRÍPTICO DQC: DEPOIMENTO
– É na janela que tudo se realiza: o meu e o de todo mundo. Tem horas que
sorrio ou me deprimo, o tédio ou a satisfação e a cada hora. É nela a depor: Quando
souber de mim será como o dia nasce e se vai entre ontens e amanhãs. Será como
o olho vidrado pela nascente do despertar à luz calmante e abrasada em cismar
surpreso com o ignoto tácito na esquina e a surpresa da jogada plural. Quando
souber de mim será como a tarde cai ou de como tudo se esvai na última gota do
canto do cisne e eu capaz do inacessível, do inalcançável que nem se concebe.
Quando souber de mim será como anoitece entre o luar e as trevas, o sorriso
abençoado e o falível engano, umbrais por se saber e cartas extraviadas e
outras jogadas dentro das garrafas de nenhum dia, o difícil sustentar o vento
na boca em qualquer estrada, ninguém nem de nada. Devia ser desse jeito e sendo
assim será feito o céu: infinito e grande. Braços abertos, dado ao lado do amor,
olhar incerto e o poema sem fim, o coração a quem possa apenas amar. E o poema
se vai enquanto ela se passava por Sophia de Mello Breyner e o pegou pela asa para me dá um alento: A poesia é das raras atividades humanas que,
no tempo atual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma
espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva
para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade,
dignidade ou beleza. E era ela a poesia manifestada em carne viva e eu
podia apenas fruir de seu esplendor como um devotado daquela que é uma
verdadeira dádiva da vida. Dela todas as graças do universo para que não fosse
apenas uma janela sobre adeuses amontoando sonhos como quem perdeu um sábado na
ladeira e não o encontrava mesmo já sendo sexta entre portos ocultos e
naufrágios velados, enquanto lá em baixo uma procissão de consumidores idolatravam
as vitrines como um milagre redentor para a infelicidade deles. Nem sempre foi
assim, talvez muito pior, não sei, nem há como se salvar diante de tanta
ignomínia. Ela me redime na manhã e eu sou nela mais que ressurgência.
A TARDE ETERNA DE VENUSBERG - Bastou
ela reaparecer na tarde ensolarada e ao meu redor tudo foi se transformando em Venusberg
– ou será Hörselberg, sim ou não, não sei se onde a rainha das fadas foi
visitar o outro mundo para sedução do homem mortal, aquele que era o cantor de
Tannhäuser, do Codex Manesse. Senão aquela mesma das contadas no inacabado e
reiteradamente censurado Under the hill:
The Story of Venus and Tannhäuser (The Savoy/L. Smithers, 1907 - Europa-América, 2014), do
ilustrador e escritor inglês Aubrey Beardsley (1872-1898), que ganhou
uma versão que foi concluída (Olympia, 1959), pelo escritor canadense John
Glassco (1909–1981). Ou uma ou outra, se ambas não forem a mesma coisa, sei
não, só sei que trata da lenda de uma visita feita pelo poeta medieval ao
fantástico palácio dos prazeres de Vênus, ou o contrário, se me parece ao certo.
Bem, o que sei mesmo é que fui levado por ela para o boudoir que dava para alcova do seu palácio no alto da montanha,
cercado por amplos jardins, alamedas, cascatas, arcos, pavilhões e grutas, um
lugar mágico repleto de estátuas fálicas, esculturas eróticas e flores e
plantas que mudam constantemente de forma. Ali me mostrou toda a dimensão de
seu poderio, inclusive o seu bicho de estimação, Adolphe, um unicórnio de pelos
brancos que descansava espragatado sobre as patas numa torre rente a uma
caudalosa cachoeira. Mostrou-me a biblioteca que me encheu os olhos com tantos
livros e me trouxe uma coleção de gravuras eróticas apreciáveis, não antes me
premiar com outras tantas coleções repletas de histórias de todos os mundos e
seres. Ao perceber o meu enlevo, pronunciou Robert Musil: O ser humano não consegue viver sem paixão.
E a paixão é o estado no qual todos os seus sentimentos e ideias se encontram
no mesmo espírito. E me acariciou as faces e me abraçou com ternura e me
fechou os talhos da alma a me segredar o escritor estadunidense, Michael Cunningham: Você não pode encontrar a paz evitando a
vida. O segredo do voo é isto – você tem que fazê-lo imediatamente, antes que
seu corpo perceba que está desafiando as leis. Existe tanta beleza no mundo,
embora ele seja mais difícil do que nós esperamos que seja. Nós nos tornamos
nas histórias que contamos a nós mesmos. E me envolveu por inteiro entre
seus braços, a noite se fechou, a quinta se esvaiu e ela totalmente em mim.
A NOITE DE SARA ALAMOA – Era noite densa e ela se achegou
murmurando: É sexta-feira e a pedra do Pico se fende para a luz da chamada na
porta! Pude vê-la pela claridade lunar e era Alamoa, a Dama Branca dos feitiços memoráveis. Levantou-se e pude
acompanhar sua ígnea expressão no olhar misterioso de quem procura algo e não
sabe onde. Acompanhei a sua movimentação, os seus lábios carnudos entrecerrados,
a sua graça fenomenal no longo vestido de seda branca transparente, pernas ligeiramente
abertas, mãos à cintura e finalmente seus olhos nos meus. E veio como quem
encontra a providência exata do que fazer, sentir sua respiração quente na
minha pele, seu hálito de flores invadindo meus sentidos, seu magnetismo
tomando conta de todo meu ser arrepiado. Um beijo atrevido e ela inflada entre
meus braços como se elevada por todos os sonhos, fantasmas e mamíferos da
Terra. Num estalo, ela assustou-se, lembrou-se de algo, me largou e peraí,
voltava já. Sumiu abruptamente e não respondia meus chamamentos, muito menos as
perguntas, não dizia nada, sabia ali sua presença. Depois de muito procurá-la
sussurrou invisível na minha nuca Ivan Bunin: As palavras são uma coisa, as
ações são outra bem diferente. Precisei dar a volta para vê-la nua Sara, Sara Magdalene Pezzini ao vivo e em
cores, linda de morrer. E puxou pro pé da cama e me contou das investigações de
homicídio, da Batalha dos Independentes, do caso complicado no Rialto Theatre em
que foi mortalmente ferida; das lutas com o demônio gigante, com Wolverine,
Alien e Predador, da manipulação de Curator, das investidas contra Kenneth
Irons; e da posse dos poderes sobrenaturais da Witchblade – a Lâmina Mística disfarçada de pulseira e da precisão
dela para se curar e se recriar todo santo dia na armadura sobre sua pele, de
voar e disparar rajadas de energia e estender gavinhas afiadas. Contou-me mais que
foi roubada de sua mãe biológica ainda bebê e que só muito mais tarde descobriu
sua irmã Karen Brontë, porque
ela também descende de sua mãe, Elizabeth, que também era possuidora
da Lâmina Mística. E encenou suas batalhas e gesticulou suas investidas e voou
perseguida por um bando de pássaros até desembarcar de volta ao meu lado, depôs
todas as posses e serviu-se escrava para me chamar Conchobar! E não se deteve
envolta em vapores de ouro para me beijar as faces e me fitar firmemente e me
beijar novamente e era a atriz Yancy
Butler nuínha com um convite ao passeio do prazer e eu mais apto e
voluntário no vaivém da sua entrega no meio das ventanias, trovões e
relâmpagos, e as fagulhas de sua carne na minha abriam caminhos no mar, rotas
universais pelos abismos dos céus e galopes para longe de todas as fugas
inescapáveis e a suar em bicas com mil risos do que havia sido impossível ao
sequestrar todo meu ser para tornar-me refém de sua façanha. Sou nela e ela em
mim. Até mais ver.
A ARTE DE PAULO BRUSCKY
A arte do artista multimídia Paulo Bruscky, que estudou música no conservatório, cursou Jornalismo e atuou grafitando muros contra o regime militar. Foi um dos pioneiros do Movimento Internacional de Arte Postal no Brasil e é considerado um dos expoentes mais expressivos da arte conceitual no Brasil e um dos principais precursores de diversas manifestações que envolvem arte, tecnologia e comunicação, com base na ideia de arte como informação e marcada pelo experimentalismo. Autor de obras plural que vão desde poesias visuais, livros de artista, performances, intervenções urbanas, filmes em Super-8 e obras em multiplicidades de mídias, marcadas pela contestação social e política, resultado da postura crítica e militante do artista. Ele participou de exposições no Brasil e no exterior. Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.