UIVOS DAS HORAS MINGUANTES
- Imagem:
Man morning Mexico, art by Thomas W. Schaller. - Da
janela o mundo todo dentro do quarto, o quinhão: insetos, móveis empoeirados,
utensílios e apetrechos, brebotes, tudo desarrumado e a vida qualquer. Da grade
de segurança a selva da vizinhança como um coro de barítonos, o barulho e a
aragem do dia nublado lá fora, contrastando com o abafado irrespirável de
dentro: herança de descontentamentos, espólios fantasmas. A conduta ascética
invalida a sanidade das regras sociais, a permissividade e o pernicioso imperam
na vez do imoderado. A solidão é maior que a noite, a manhã pra se socorrer do
desespero. Pra ganhar a vida por seus próprios esforços, muito pra fazer e
dizer, nada pra falar às paredes com seus interlocutores invisíveis, a clausura
da cidade. Na verdade, a gente não sabe o que diz; soubesse, primava pelo
silêncio, além de crescer em si, evitaria muito aborrecimento. De boa vontade
as promessas esborram como se entornassem esperanças, tudo às favas, bravura
pra extirpar decepções e derrocadas. O que a gente fala ou escreve, maior
desvalia, só pro outro solícito; cada qual entende ao seu modo, afeto ou
grosseria, gentileza ou covardia. Muita ameaça no ar, umbigos na feira das
vitrines, estalidos no zoadeiro das ruas. Se der o troco, repulsas e ofensas de
nada, represálias e revides. Há de se preparar pra não passar por besta, pra
ter serventia no curral da grana pra não ser lixo pra vermes. Para viver bastam
sentir e agir; pra morrer, basta estar vivo, ambas se completam. As horas
passam e corroem tudo ao redor. Muito chão pela frente, sobram escombros no
âmago. Não há para onde ir, mesmo o panorama escancarado é um porvir
inacessível: pra ir, não foi; se vai, não chega. Para alguém, senão todos que
conheço ou convivi, não passo de passado, nada mais; para mim, todos são
presentes, todo dia. O que fiz ou deixei de fazer noves fora nada, só o agora no
vazio das mãos, vontade no peito e vielas por encruzilhadas. Tudo é pra quê e
pra quem; e se assim não for, tão inútil será como. Os mistérios da esquina não
resistem à chegada: era só o desconhecido, malícia sedutora do ignoto. E se vai
pra esquerda ou vem da direita, acima do que vê, cai rente e passa por baixo. O
afoito é não ter precisão. Objetivos de hoje podem virar descaminhos amanhã nas
tardes como águas pro mar. Pra quem vai à deriva, seja como for. Só uma coisa:
escrever é a minha maneira de existir. Como dizia Gullar: viver não basta. Amém
e amem. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
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