DITOS & DESDITOS - Todas as regras
formuladas para o estudo, eu sintetizaria em uma: aprender apenas a criar.
Somente através desse poder divino de produzir, o homem é completo; sem ele, o
homem nada mais é do que uma máquina razoavelmente bem organizada. Ousar,
apenas, dominar agora; ousa o primeiro passo de criança em direção à virtude: o
segundo já se tornará mais fácil. É exigência da razão não precisar mais de
nenhuma felicidade como recompensa. A filosofia exige não apenas uma cultura amadurecida, mas também uma
experiência espiritual desenvolvida até sua maturidade. A arte deve começar na
consciência a terminar na inconsciência. Somos conscientes da produção, mas
inconscientes do produto. Conhecer é aprender para criar. As ideias são ações
com significado ético. Pensamento do filósofo do Idealismo alemão Friedrich Wilhelm Joseph Schelling
(1775-1854). Veja mais aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: É bom
ter um objetivo para a jornada á frente, mas, no fim, o que importa é a
jornada. Depois de ver o padrão maior, você não pode voltar a ver a parte como
um todo. Pensamento da escritora estadunidense Ursula Kroeber
Le Guin (1929-2018). Veja mais aqui e aqui.
OUTROS DITOS - Quando
estiver se sentindo mal, observe os gatos. Eles farão você se sentir melhor.
Eles sabem tudo sobre a vida, tal como ela é. Eles apenas sabem, são
salvadores. Quanto mais gatos você tem, mais você vive. Se você tiver uma
centena de gatos, acredite, você vai viver dez vezes mais do que se tivesse
dez. Algum dia as pessoas vão descobrir isso e teremos um mundo com pessoas
criando milhares de gatos. Elas viverão para sempre e isso será ridículo... Pensamento
do escritor estadunidense nascido na Alemanha, Henry Charles Bukowski Jr
(1920-1994). Veja mais aqui e aqui.
LEVEZA
- [...] Cada vez que o reino do
humano me parece condenado ao peso, digo pra mim mesmo que à maneira de Perseu
eu deveria voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o
sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação,
que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios
de conhecimento e controle [...]. Trecho extraído da obra Seis
propostas para o próximo milênio (Cia das Letras, 1993), do escritor italiano
Ítalo Calvino (1923-1985). Veja mais aqui e aqui.
DIVAGAÇÕES
- [...] Seja que reconhecesse este
canto, que hoje influencia todo trabalho, mesmo pintado, do impressionismo ao
afresco, e a sublevação de vida no grão de mármore. Mesmo o sussurro ouvido da
razão ou um discurso no Parlamento, nada vale senão como ária sustentada longo
tempo e segundo o tom que agrada. O poeta, verbal, desconfia, persiste, numa
prevenção mais humilde, consequentemente, a fala: ouro/ora, a qualquer altura
que exultem cordas e cobres, um verso, pelo fato da aproximação imediata da
alma, aí chega. Fui, com muitos e, intruso familiar, subitamente, me sinto tomado
de uma dúvida, uma única, a dizer a verdade, extraordinária [...]. Trecho
extraído da obra Divagações (EdEFSC, 2010), do poeta e
crítico literário francês Stéphane Mallarmé (1842-1898). Veja mais aqui
e aqui.
AMAR & SER AMADO – [...] Acredita-se,
cada vez mais, que todo ser humano e todo grupo de pessoas tem em si mesmo os
recursos para se desenvolver, progredir e encontrar os seus próprios caminhos. [...].
Trecho da obra Amar e ser amado: a
comunicação do amor (Vozes, 2001), do educador e psicólogo francês Pierre Weil (1924-2008). Veja mais
aqui.
A LOBA
– Era alta, magra; mas tinha um seio firme e vigoroso, de morena - embora
já não fosse criança - pálida como se tivesse sempre a malária, e
naquela palidez, uns olhos grandes e uns lábios frescos e rubros que
fascinavam. No povoado chamavam-lhe "A Loba" porque nunca se
saciava. As mulheres persignavam-se ao vê-la passar sozinha como uma
cadela, com aquele andar errante e desconfiado de loba faminta; roubava
filhos e maridos num abrir e fechar de olhos, com os seus lábios rosados, e
levava-os colados aos seus vestidos, com aquele olhar de Satanás, ainda
que estivessem ante o altar de Santa Agripina. Por sorte, a Loba não ia
nunca à igreja, nem pela Páscoa nem pelo Natal, nem para ouvir missa,
nem para se confessar. O padre Ângelo de Santa Maria de Jesus, um verdadeiro
servo de Deus, tinha perdido a alma por ela. A pobre Marica,
menina boa e desembaraçada, chorava às escondidas, porque, filha da Loba,
ninguém a queria por mulher, apesar de ter seu enxoval na cómoda e seu pedaço
de chão, como qualquer outra moça do povoado. Um belo dia, a Loba
enamorou-se de um belo rapaz que tinha voltado do serviço militar e que ceifava
feno com ela nos campos do notário; mais do que se diz enamorar-se, sentia que
lhe ardiam as carnes sob o fustão do corpete, ao fitá-lo nos olhos a
sede das cálidas tardes de Junho, em meio da planície. Porém ele
continuava ceifar tranquilamente, atento aos feixes, e dizia-lhe: - O que há,
dona Pina? Nos campos imensos, onde só se ouvia o estridular do voo dos
grilos, quando caía o sol a prumo, a Loba ceifava gavela após gavela e
feixe atrás de feixe, sem se cansar jamais, sem erguer nem um momento o
corpo, sem aproximar os lábios do garrafão, com o intuito de estar sempre nos
calcanhares de Nanni, que ceifava e ceifava, e lhe perguntava de quando em
quando: - O que quer, dona Pina? Uma noite disse-lhe, enquanto os
homens dormitavam na eira, cansados, e vagavam os cães pelo campo vasto
e negro: - Quero você, que é bonito como um sol e doce como o mel! Quero a ti!
- E eu quero a tua filha, que é mocinha - respondeu Nanni rindo. A Loba
levou as mãos à cabeça, coçou as fontes sem dizer palavra, e se foi, sem voltar
mais na eira. Mas em Outubro tornou a ver Nanni, quando se extraía
azeite, pois trabalhava perto de sua casa e o ranger da prensa não a
deixava dormir a noite inteira. - Apanha o saco das azeitonas - disse à
filha - e vem comigo. Nanni empurrava com a vara as azeitonas para
debaixo da mó, e gritava "upa!" à mula para que não parasse.
- Gosta de minha filha Marica? - perguntou-lhe dona Pina. - O que a
senhora dá para a sua filha Marica? - perguntou Nanni. - Tem tudo o que
era do pai, e, além disso, dou-lhe a minha casa; a mim me basta que me dê um
canto na cozinha onde possa estender um colchão. - Se é assim, falaremos
para o Natal - disse Nanni. Nanni estava todo besuntado e sujo do azeite
e das azeitonas postas a fermentar, e Marica não gostava dele de jeito
algum; porém a sua mãe agarrou-a pelos cabelos, diante da casa, e disse-lhe,
apertando os dentes: - Se não o pegas, mato-te! A Loba parecia
doente, e o povo dizia que o diabo quando fica velho se faz ermitão. Já não
vivia de lá para cá; já não se punha à soleira com aqueles olhos de
endemoninhada. O genro, quando ela lhe olhava com aqueles olhos,
desandava a rir, e tirava o escapulário da Virgem para se benzer. Marica
ficava em casa amamentando os seus filhos, e sua mãe andava pelos campos
trabalhando com os homens, como um homem também, lavrando, capinando,
conduzindo o gado, podando as videiras, quer soprasse o gregal, o
levante de Janeiro ou o siroco de Agosto, quando mulas abaixavam a cabeça
e os homens dormiam de bruços ao abrigo do muro, do norte. "Nessa hora,
entre véspera e nona, em que não passeia mulher direita", dona Pina era o
único ser vivente a quem se via errar pela campina, sobre os seixos abrasados
dos caminhos, entre os secos restolhos dos imensos campos, que se perdiam no
cálido ambiente, longe, muito longe, para o Etna nevoento, onde o céu pendia, pesado,
sobre o horizonte. - Acorda - disse a Loba a Nanni, que dormia no valado junto
da cerca poeirenta, com a cabeça entre os braços. - Acorda, eu te trouxe vinho
para refrescar a garganta. Nanni abriu os olhos atordoados, entre adormecido e
desperto, e viu-a erecta, pálida, prepotente, olhos negros como o carvão, e
tocou-lhe as mãos. - Não! mulher direita não passeia entre véspera e nona! -
disse Nanni, escondendo o rosto entre as ervas secas da valada. - Vai, vai! não
volte mais a eira! E a Loba foi-se, de facto, reatando as formosas tranças, de
olhar fixo ante seus passos nos cálidos restolhos, com os negros como carvão. Voltou,
porém, muitas vezes à eira, e Nanni não lhe disse nada. E até quando tardava a
chegar, na hora, entre vésper e nona, ia esperá-la no alto da senda branca e
deserta, com o suor na fronte, e depois levava as mãos à cabeça repetindo-lhe
sempre: - Vai, vai, e não volte mais à eira! Marica chorava dia e noite, e
plantava-se ante sua mãe, os olhos ardentes de ciúmes e lágrimas, como uma
lobinha, ela também, sempre que a via voltar do campo, pálida e muda. -
Desalmada! - lhe dizia. - Mãe desalmada! - Cala-te! - Ladra, ladra! - Cala-te! -
Vou contar ao brigadeiro! - Vai! E foi mesmo, com seus filhos nos braços, sem
medo, sem verter uma lágrima, como uma louca, porque agora também ela queria
aquele marido que lhe tinham dado à força, besuntado e sujo das azeitonas
postas a fermentar. O brigadeiro mandou chamar Nanni; ameaçou-o até com a
prisão e a forca. Nanni desatou a chorar e a puxar os cabelos. Nada negou! Não
tentou desculpar-se! - É a tentação - dizia - é a tentação do inferno! - E
jogou-se aos pés do brigadeiro, suplicando-lhe que o metesse na cadeia: - Por
caridade, senhor brigadeiro, tire-me deste inferno! Que me matem! Que me
encarcerem; contanto que não a veja mais, nunca mais! - Não! - argumentou a
Loba ao brigadeiro. - Eu reservei para mim um canto da cozinha para dormir, quando
lhes dei minha casa como dote. A casa é minha; não quero sair! Pouco depois,
Nanni levou um coice de mula, e estava para morrer; mas o pároco recusou-se a levar-lhe
o Senhor se a Loba não saísse da casa. A Loba saiu, e seu genro pôde então
preparar-se para morrer como bom cristão, e confessou-se e comungou com tais
mostras de arrependimento e de contrição, que todos os vizinhos e curiosos
choravam junto ao leito do moribundo. Melhor teria sido morrer naquele dia,
antes que o diabo voltasse a tentá-lo e a meter-se-lhe na alma e no corpo se restabeleceu.
- Deixa-me! - dizia à Loba. - Por caridade, deixa-me em paz! Vi a morte com
estes dois olhos! A pobre Marica está desesperada. Todo o povoado já sabe!
Quando não te vejo é melhor para ti e para mim... Teria desejado arrancar os
olhos para não ver os da Loba, que quando se cravavam nos seus lhe faziam
perder a alma e o corpo. Não sabia o que fazer para livrar-se do feitiço. Pagou
missas às almas do Purgatório; pediu ajuda ao pároco e ao brigadeiro. Pela Páscoa
confessou-se e arrastou-se em público, lambendo, em penitência, seis palmos de
ladrilhos do adro da igreja. Mas depois, como Loba voltasse a tentá-lo: -
Escuta! - disse-lhe - não voltes mais à eira, porque se voltares para me
tentar, mato-te; tão certo como há Deus. - Mata-me, - respondeu a Loba, eu não
me importo; mas não vou ficar sem ti. Quando a viu ao longe, em meio das verdes
sementeiras, deixou de cavar as vinhas e foi arrancar o machado do olmo.
A Loba viu-o aproximar-se, pálido, com olhos arregalados, de machado brilhando
ao sol, e não recuou um só passo; não baixou os olhos, continuou andando ao seu
encontro, com as mãos cheias de papoulas vermelhas, devorando-o com seus olhos
negros. - Ah, maldita seja tua alma! - balbuciou Nanni.
Extraído da obra La Lupa (Milano: Mondadori, 1986), do escritor italiano Giovanni Verga
(1840-1922).
É
ASSIM QUE DEVE SER FEITO (fragmento): pouca gente é capaz de fazer tudo isso que fizemos / nos
encontrar e ficarmos juntos / nesta hora mais inexplicável / clarões de
incêndios distantes / refletindo-se em nossas peles / nossos gritos de prazer
chicoteando as esferas da noite / nossos gritos de prazer explodindo pela
madrugada afora / nossos uivos de prazer ecoando pelas ruas / desta cidade
agora adormecida / e esta confusão de pedaços de corpos / todos gritando o
mesmo nome selvagem espalhados sobre a colcha / nossos corpos druídicos formando
círculos mágicos sinalizando o reinício dos tempos / nossos corpos que se
precipitam como os regatos que escorrem pela encosta da montanha buscando seu
rápido destino final / nossos corpos de vísceras entrelaçadas redescobrindo a
pulsação das galáxias / nossos corpos no turbilhão do galope de potros bravos à
beira-mar / nossos corpos com seus relâmpagos rompendo o calor denso da noite
na selva tropical / nossos corpos de muitas vozes, muitas vozes que se
confundem / nossos corpos sobre os quais viajamos como navegantes em busca da
Terra Prometida / nossos corpos recobertos de inscrições que passamos dias e
noites tentando decifrar / nossos corpos entregues a um êxtase canibal / nossos
corpos percorrendo os labirintos do prazer e suas alamedas ladeadas por tufos
de azaléia elétrica / nossos corpos de bruma, mapa de penugens, texto sânscrito
/ nossos corpos pisoteando o braseiro da memória dançando animados por um
batuque que sai do centro da terra / nossos corpos mergulhando na água
transparente de um lago gelado no desvão de uma gruta calcária / nossos corpos
embarcando em uma nave especial feita de palha trançada / nossos corpos
investidos de seus plenos poderes, salvo-condutos para qualquer viagem, licença
para voar, passaporte para o delírio / nossos corpos suando gotas de fogo que
escorrem por nossas costas / nossos corpos sombrios e úmidos nesta hora de
fetos arborescentes e samambaias, agora liquefeitos contra os filtros do
crepúsculo, transparentes como uma profecia / nossos corpos amarelos, azuis,
laranja, cor de camaleão enlouquecido estampado contra as paredes do tempo /
nossos corpos impressos em milhares de figurinhas coloridas que são
distribuídas entre adolescentes dos subúrbios.../ nossos corpos
pronunciando as palavras sagradas, o agora, mais, põe, vem, mais, com a certeza
messiânica de um orador agitando as massas / nossos corpos preparando um
gigantesco patuá de uma magia negra das mais pesadas para desviar o rumo da
história e acabar de vez com a barbárie capitalista / nossos corpos anarquistas
defendendo a formação de sociedades igualitárias regidas unicamente pelo
princípio do prazer / nossos corpos com suas sacolas de escorpiões famintos,
luas trêmulas, ventos que ressecam a pele em paisagens de dunas movediças /
nossos corpos cheios de reentrâncias, escadarias de pedra recobertas de musgo,
esquinas tão cheias de mistério quanto uma cidade-fantasma invadida por um
bando de bêbados altas horas da noite / nossos corpos recostando-se mansamente
na beira de um lago, sentindo a água na temperatura da pele, deitando-se e
sendo recobertos aos poucos pelas folhas que vão caindo das árvores ao redor /
nossos corpos elípticos, cordas tensas prontas para disparar as flechas
incendiárias do prazer / nossos corpos rolando abraçados sobre este chão de
cílios vibratórios que recobrem a terra, esse balão luminoso que pisca na
neblina... / armários em chamas rolam pelas escadarias / um arco-íris
tenta executar os passos finais de um balé / ele tropeça e cai / desabando
sobre as encostas da Serra da Mantiqueira / explodindo em um caleidoscópio de
cores / as montanhas racham-se / fontes de água quente jorram contra as nuvens
/ sobre um palco de cartolina azul sapateiam três dançarinas nuas / com suas
botas vermelhas / uma vitrola distante toca In a Silent Way de Miles Davis / um
montão de papel picado é jogado para o alto / multidões rezam orações sem
sentido / um avião se transforma em gota d’água e fica suspenso no céu / os
navios da noite chegam mais perto / eles já dobram a barra do porto / suas
luzes piscam / já se ouve a música das festas nos conveses / duas mil
lavadeiras / batem peças de roupa em suas tábuas / em uma praia na margem
direita do rio Araguaia / no fundo do quarto há uma porta / ela se abre para
uma escada de ferro em caracol / pela qual descemos / para penetrar no bojo
deste cometa alucinado dos nossos corpos... Poema do poeta, tradutor e
ensaísta Claudio Willer. Veja
mais aqui.
APOCALIPSOM A (O
COMEÇO NO PALCO DO FIM)– Personae iures alieni / Diabo e Deus numa
sala / Firmou-se acordo solene / De unir em casamento / A fé e o conhecimento /
Casou-se com muita gala / O saber de Aristóteles / Com a cultura do mouro / Pra
ter num só filhote / O duplicado tesouro / E toda casta divina / Estava lá
reunida / Apolo e Macunaíma / Diana, Vênus, Urânia / Chiquinha Gonzaga Bethânia
/ O diabo ali presente / de todo banco gerente / (Conforme o cabra da peste / chamado
Bertold Brecht) / Tinha comida e regalo / tinha ladrão de cavalo / pai de santo
e afetado / Padre, puta e delegado / E as menina meu rapaz / Cresceu depressa
demais / anda presa na soltura / circula na quadratura / e o sossego ela não
deixa em paz / Cada dia mais esperta / a moleca desconcerta / conserta e ja
desconcerta / No senso que ela retalha / Não há quem bote cangalha / se você
faz represália / ela não passa a mão na genitália / esfrega na sua cara / Mas...
/ Onde a cultura vige / e o conhecimento exige / recita noblesse oblige / com
veludo na laringe / castiça cantarolando / Quod erat demonstrandum / e recebida
na sala / Se trata por tropicália. Extraída do álbum Tropicália lixo lógico (Independente,
2012), do compositor Tom Zé. Veja mais aqui e aqui.