O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA – Imagem: The
destruction of the Great Library of Alexandria - A Biblioteca Pública de Alagoinhanduba atendia o público
no expediente normal e, ao cerrar suas portas de noite, servia de
entretenimento para seus fantasmas. Isso era o que todos diziam entre cochichos
e ouvidos. Diariamente, ao abrir o atendimento de manhã, estudantes acorriam
para realizar seus trabalhos, ou visitas de classes escolares ao acervo, afora
a costumeira presença de maníacos que se passavam por bibliófilos, ou de personagens
que fugiam das suas histórias para nunca mais dar sinal de vida, ou mitômanos
que renovavam seus repertórios em longas consultas, ou obcecados que mais
endoidavam com as leituras, ou mortos que não foram avisados e ainda insistiam
em achar que estavam vivos, ou malucos que se envultavam entre as páginas para
retornarem assumindo a identidade de seus heróis. Assim era todos os dias até o
início da noite. Quando davam as vinte e uma horas, era uma correria: não ficava
ali ninguém, todos saiam às pressas para não toparem com os famigerados
fantasmas que ouviam dizer ali existirem. É que ao longo dos anos a população
denunciava que a biblioteca era malassombrada. E diziam que durante toda noite
ouvia-se o som do maior festejo. Ninguém tinha coragem de conferir, quem era
doido? Tanto é que depois das enchentes que devastaram a cidade, todos iam logo
conferir se haviam destruído aquele recinto. Nada, enxurrada que fosse, a
cidade quase desaparecia, mas ela ficava, intacta, só com o acervo destruído. O
prédio, na verdade, aguentou tsunamis de todo jeito. O acervo, realmente,
aniquilado: móveis suntuosos e antigos doados pelo Império e pela elite
açucarocrata, registros históricos, descobertas arqueológicas, objetos
desconhecidos, discos, gravuras, utensílios folclóricos, livros antigos e
luxuosos, fitas de filmes antigos, jornais de antanho, obras e documentos
raros, fotos antiquíssimas, quadros, esculturas, artesanato, enfim, tudo aquilo
que a população inteira chamava de velharia havia sido sucateado ou surrupiado
por sabidos da Administração Pública. Tinha até o disse-me-disse de gente da
cidade e de Ribigudo que possuía mobiliários e bibliotecas privadas só com o
que sumira do seu acervo. Boato ou não, ninguém perdia tempo em investigar. Pois
bem, a exemplo das tantas bibliotecas públicas do Brasil, a de lá também sofria
com o descaso da administração: quadro funcional regularmente reduzido, prédio
em petição de desabamento, instalações com infiltrações e riscos de curtos nos circuitos
elétricos e etc e tal. Foi por conta dessa penúria que, uma noite lá, os
fantasmas resolveram tomar conta da situação. Fizeram um levantamento dos
problemas e resolveram inicialmente reverter a situação e ajudar os
funcionários. O primeiro a chegar ao trabalho, ao deparar com aquela
assembleia, saiu na carreira de findar internado num manicômio, repetindo a
todo instante: É verdade, tem fantasma na biblioteca! Os demais, aos poucos,
mulheres corajosas, mesmo aos sustos e redobrados receios de serem atacadas, comedidamente
mantiveram contato com os rebelados e tomaram pé da proposta deles. Como eram
duas ou três apenas, aceitaram desconfiadas a colaboração sobrenatural, vez que
ao chegarem tudo já estava limpinho e organizado para o início das atividades
diárias. Com o passar dos dias já se acostumavam com a intervenção deles no
atendimento de crianças e jovens que acorriam ali com dificuldades para
pesquisas, ou nas visitas escolares, ou mesmo desavisados que por ali passavam
equivocados com o endereço de algo que precisavam. Os assíduos apareciam com um
pé atrás, mas logo entraram na roda e se metiam com os alienígenas em contações
de históricas, encenações de obras ou mesmo saraus, recitais e serenatas que
começavam logo de manhã e duravam a semana inteira por anos. Isso até o dia em
que os boatos se avolumaram e arrepiaram fanáticos religiosos que entraram em
pé de briga com aquela insolência misteriosa do mundo dos mortos entre vivos. O
fato era que, como crianças, jovens e mulheres estreitavam relações com aquele
absurdo, logo as religiões correriam o risco de perder esses fiéis entre as
suas fileiras, o que levou a um ecumenismo geral que findou num ataque de
exorcismo, com o objetivo de expulsar aqueles intrusos. Nada adiantou. A revolta
religiosa logo passou do nível razoável para o mais aguerrido, a ponto de se
preparar a destruição total daquele despropósito. Foi, então, que contando com
o apoio da gestão pública que achava melhor acabar com aquilo do que manter um
local cheio de obsoletas tranqueiras, aliado a policiais e gente que sempre
odiou estudo, reuniram-se em frente da igreja da matriz e de lá partiram para
acabar de vez com aquela farra. Invadiram de forma violenta o recinto, findando
por provocar desabamentos ruidosos, resultando num incêndio sem precedentes de
restar nem cinzas na memória da população sobre aquela biblioteca. Era uma vez.
O fogo queimou com altas labaredas por dias e semanas, até ser tudo consumido
de restar apenas um buraco onde antes estava aquele estabelecimento. De peito
lavado, a população fez uma festa, comemorou o fim dos abusos sobrenaturais que
tanto atormentavam os munícipes mais temerosos, regado a muita roda gigante,
montanha russa, bailes e assustados, bebidas e orações. Agora não precisam mais
de ler nada, nem lembrar nada, a vida segue como sempre fora: um passeio pelos
dias de sol a sol com a noite no meio, nada mais. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá
especial com a música da
soprano finlandesa Karita Mattila: Salomé de Richard Strauss,
Myrskyluodon Maija, Erwartung op. 17 de Arnold Schönberg & Triunphant Return
NYC & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos
de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui, aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] A
fome no Brasil é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico, com os
seus grupos humanos sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros
naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa, portanto, da
agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase
sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não
significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura
mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva ou,
pelo menos, desequilibrante da saúde econômica da nação: o do pau-brasil, o da
cana-de-açúcar, o da caça ao índio, o da mineração, o da “lavoura nômade”, do café,
o da extração da borracha e, finalmente, o da industrialização artificial
baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime de inflação. É sempre
o mesmo espírito aventureiro se iniciando, impulsionando mas, logo a seguir,
corrompendo os processos de criação de riqueza no país. É o “fique rico” tão
agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a impaciência
nacional do lucro turvando a consciência dos empreendedores e levando-os a
matar sempre todas as suas “galinhas de ovos de ouro”. Todas as possibilidades
de riqueza que a terra trazia em seu bojo [...]. Trecho extraído da obra Geografia
da fome - o dilema brasileiro: pão ou aço (Antares, 1984), do médico,
professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na
ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui e aqui.
CIDADE DO SOL – [...] As artes mais fatigantes obtêm maior estima,
como a do artífice, a do pedreiro, etc. ninguém se recusa a exercitá-las,
porque a elas se aplicam pela particular tendência revelada na infância, e
também porque o trabalho é distribuído de modo que nunca possa ser nocivo à
pessoa, mas, ao contrário, deve torná-la e conservá-la melhor [...] As mulheres
exercem as artes menos pesadas. Todas devem ser hábeis na natação, e reservatórios
especiais de água foram preparados não longe da cidade [...] À Cidade do Sol costumam chegar comerciantes
das diferentes partes do mundo, que compram dos solares o supérfluo. Os
habitantes não recebem dinheiro, mas trocam com as mercadorias de que precisam,
sendo que, muitas vezes, também as compram com moedas. Mas, de todo o coração,
riem-se os meninos solares ao verem tanta abundância de coisas deixadas por tão
poucas bagatelas; não se riem, porém, os velhos. A fim de que a cidade não seja
corrompida pelos maus costumes dos servos e dos estrangeiros, fazem todo o
comércio nos portos, vendendo os prisioneiros de guerra ou mandando-os para fora
da cidade a cavar fossas e para outros trabalhos fatigantes [...] Possuem de tudo com fartura, desejando cada
qual mostrar-se o primeiro no trabalho, que não fatiga e é útil. Os seus ânimos
são dóceis e assim obedecem a quem preside aos mesteres, chamando-lhe rei. Nem
esse nome lhes desagrada, pois é criação dos habitantes solares, que não o
entendem à maneira dos ignorantes [...]. Não ofendem ninguém, mas também não toleram injúrias, brigando só
quando agredidos. Dizem que o mundo alcançará tanta sabedoria que os homens
viverão como eles. Admiram a religião cristã e esperam, neles e em nós, a
confirmação da vida dos apóstolos [...]. Trechos extraídos da obra A cidade do Sol (Guimarães, 1980), do
filósofo e poeta italiano Tommaso
Campanella (1568-1639). Veja mais aqui.
À MÃO ESQUERDA – [...] Uma
noite de inverno em que o minuano parecia querer cortar as orelhas da gente de
tanto frio, ele, que devia ter então uns sete anos, levantou os olhinhos pra
mim e perguntou, vozinha triste: “Por que é que isto está acontecendo com a
gente?” Rapaz, me deu uma agonia por dentro, como se tivesse vidro quebrado no
estômago. Me senti burro, infeliz, miserável e triste. Eu não sabia por que
aquilo estava acontecendo com a gente! […] Que Deus ruim é esse que faz uma moça bonita como a minha mãe se casar
com um homem bonito como o meu pai, ter noves filhos, para depois matá-la? Por
que faz nascer uma criança com o nome de Querido
de Deus para depois deixar ele apanhar toda noite, sem um beijo, sem um
carinho, sem uma lágrima morna de mulher para confortar a cabecinha dele? [...]
Começo falando um assunto, entra outro na
minha cabeça, desvio e, quando quero voltar, já esqueci. [...] Para se casar, um rapaz precisa ter pelo
menos 480 mil metros quadrados de terra, que recebe do pai ou que vai pagando a
ele aos poucos. As filhas, quando se casam, ganham de presente da família um
cavalo de montaria, utensílios de cozinha […]. Se o rapaz é pobre, o casal se estabelece em terras devolutas. Irmãos e
cunhados solteiros ajudam na preparação da terra e na construção da casa. Logo
após o casamento, o casal inicia a vida de colono e procura ter o maior número
de filhos. Os homens são mais bem-vindos por causa da força física […]. Em Esperança, a virgindade é fundamental e
controlada pela comunidade. [...] Depois
que se meteu nesse negócio de escrever, nunca mais teve de suar o couro para
ganhar o dinheiro dele. […] A não ser
que vocês considerem que escrever é trabalho. [...] Se algum dia alguém ler este meu diário, talvez se espante com o fato
de uma colona se expressar tão bem em português. [...] Pronto, já está sorrindo, não é mamãe? É a morfina. Está viciada, não é
mesmo? Eu sei que é bom. Já experimentei, sabia? Só que a senhora está morrendo
e eu, não. Estou morta, mas não como a senhora. Quem morreu dentro de mim foi a
moça que queria ser feliz e a senhora matou. […] Estou com cinquenta e cinco anos, mamãe, e a senhora está morrendo com
quase oitenta. Mas não podia deixá-la morrer sem saber quanto a odeio. A
senhora, provavelmente, não lembra, mas tive uma oportunidade de ser feliz
muitos anos atrás. Ele era professor e comunista.[...] Aliás, meu filho, seu neto Anibale, é um homossexual incansável,
conhecido em todas as saunas da cidade. Certamente, vai morrer de Aids, sabia?
[...] Eu, porém, nunca o amei, e uma
mulher tem direito de amar uma vez na vida, não é mesmo? Embora soubesse que
quase todas as minhas amigas tinham amantes, eu era uma mulher ingênua. Estava
à espera do meu príncipe encantado. [...] A senhora aproveitou para convidá-lo para a nossa casa de praia em
Fregene. Deu-lhe um porre, fez ele jogar pôquer com seus amigos e perder alguns
milhões de liras. Ele teve de pedir dinheiro emprestado para cobrir os cheques
que assinou. [...] Quando voltei, a
senhora ameaçou me deserdar se eu continuasse com ele. Lembra o que me disse? Se
você precisa tanto de sexo, minha filha, arranje um gigolô, mas arranje um
profissional discreto que sai muito mais barato [...] O que, mamãe? Fale mais alto, sua vaca, ou acha que eu não sei que a
senhora traía papai com titio, sua santarrona, que trepou até com o mordomo.
[...] A senhora nunca foi sodomizada,
mamãe? Nunca felaciou ninguém? Claro que sim. Eu também. Já fui para a cama com
negros, com mulheres, com prostitutos e prostitutas [...] Eu amava aquele homem, mamãe. Foi o
sentimento mais bonito que já tive por alguém e a senhora acabou com ele para
me transformar no que sou: uma puta rica. [...] Acordei mais cedo e depois de tomar banho, em vez de me vestir, descer
e dar as ordens do dia aos empregados, me surpreendi olhando meu corpo nu no
espelho. Nos meus trinta e seis anos de vida nunca vi outra mulher nua, nem a
minha mãe ou minhas irmãs mais moças, Yolanda, Amália e Ofélia. O que vi no
espelho não me desagradou. Tenho um rosto simpático, seios firmes, cabelos e
olhos negros e um sorriso que raramente aparece em meu rosto, mas que quando aparece
todos elogiam. Sou mulher honesta e virgem. Tenho um defeito grave: meço um
metro e oitenta e dois e sou mais alta que a grande maioria dos homens que
conheço [...]. Trechos extraídos da obra À mão esquerda (Leitura,
2007), do jornalista e escritor Fausto Wolff (1940-2008). Veja mais
aqui.
MUDANÇAS DE NOMES
- Aos
amantes das belas letras / anuncio o meu maior desejo: / mudarei os nomes de
algumas coisas / Minha posição é esta: / o poeta não cumpre sua palavra / se não
mudar o nome das coisas. / Com que razão o sol / há de continuar chamando sol?
/ Peço que se chame Micifuz / das botas de quarenta léguas / Meus sapatos
parecem ataúdes? / Saibam que de hoje em diante / os sapatos se chamam ataúdes,
/ comunique-se, anote-se, publique-se / que os sapatos mudaram de nome / desde
agora se chamam ataúdes. / É certo que a noite é longa / e todo poeta que se
preze / deve ter seu próprio dicionário / e antes que eu me esqueça / há de se
mudar o nome de Deus / cada qual o chame como queira / pois esse é um problema
pessoal. Poema do poeta e matemático chileno Nicanor Parra (1914-2018).
SALOMÉ
[...] Ah! Beijei a tua boca, Iokanann! Beijei a
tua boca! Os teus lábios têm um gosto amargo. Era gosto de sangue? Não! Foi talvez
o gosto do amor... dizem que o amor tem um gosto amargo... mas que importa? Que
importa? Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca!...
Trecho
da peça teatral Salomé (Itatiaia, 1989), do escritor e dramaturgo britânico Oscar Wilde (1854-1900). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
AGENDA
&
&
Os
fantasmas da biblioteca aqui.
&
A arte do artista georgiano Ilia Popkhadze.
&
Gratidão de ser em doar, Peter Sloterdijk, Josué de Castro, Lygia Fagundes
Telles, Encarnación Sobriño, Luís da Câmara Cascudo, Guillaume Cornelis van
Beverloo, Gleidistone Antunes da Silva, Nós & a Biodiversidade, Cláudio
Santoro, Marija Mihajlovic, Criolo & Eleonora Falcone aqui.