quarta-feira, setembro 05, 2018

NICANOR PARRA, JOSUÉ DE CASTRO, OSCAR WILDE, FAUSTO WOLFF, KARITA MATTILA, CAMPANELLA, ILIA POPKHADZE, SALOMÉ & O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA


O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA – Imagem: The destruction of the Great Library of Alexandria - A Biblioteca Pública de Alagoinhanduba atendia o público no expediente normal e, ao cerrar suas portas de noite, servia de entretenimento para seus fantasmas. Isso era o que todos diziam entre cochichos e ouvidos. Diariamente, ao abrir o atendimento de manhã, estudantes acorriam para realizar seus trabalhos, ou visitas de classes escolares ao acervo, afora a costumeira presença de maníacos que se passavam por bibliófilos, ou de personagens que fugiam das suas histórias para nunca mais dar sinal de vida, ou mitômanos que renovavam seus repertórios em longas consultas, ou obcecados que mais endoidavam com as leituras, ou mortos que não foram avisados e ainda insistiam em achar que estavam vivos, ou malucos que se envultavam entre as páginas para retornarem assumindo a identidade de seus heróis. Assim era todos os dias até o início da noite. Quando davam as vinte e uma horas, era uma correria: não ficava ali ninguém, todos saiam às pressas para não toparem com os famigerados fantasmas que ouviam dizer ali existirem. É que ao longo dos anos a população denunciava que a biblioteca era malassombrada. E diziam que durante toda noite ouvia-se o som do maior festejo. Ninguém tinha coragem de conferir, quem era doido? Tanto é que depois das enchentes que devastaram a cidade, todos iam logo conferir se haviam destruído aquele recinto. Nada, enxurrada que fosse, a cidade quase desaparecia, mas ela ficava, intacta, só com o acervo destruído. O prédio, na verdade, aguentou tsunamis de todo jeito. O acervo, realmente, aniquilado: móveis suntuosos e antigos doados pelo Império e pela elite açucarocrata, registros históricos, descobertas arqueológicas, objetos desconhecidos, discos, gravuras, utensílios folclóricos, livros antigos e luxuosos, fitas de filmes antigos, jornais de antanho, obras e documentos raros, fotos antiquíssimas, quadros, esculturas, artesanato, enfim, tudo aquilo que a população inteira chamava de velharia havia sido sucateado ou surrupiado por sabidos da Administração Pública. Tinha até o disse-me-disse de gente da cidade e de Ribigudo que possuía mobiliários e bibliotecas privadas só com o que sumira do seu acervo. Boato ou não, ninguém perdia tempo em investigar. Pois bem, a exemplo das tantas bibliotecas públicas do Brasil, a de lá também sofria com o descaso da administração: quadro funcional regularmente reduzido, prédio em petição de desabamento, instalações com infiltrações e riscos de curtos nos circuitos elétricos e etc e tal. Foi por conta dessa penúria que, uma noite lá, os fantasmas resolveram tomar conta da situação. Fizeram um levantamento dos problemas e resolveram inicialmente reverter a situação e ajudar os funcionários. O primeiro a chegar ao trabalho, ao deparar com aquela assembleia, saiu na carreira de findar internado num manicômio, repetindo a todo instante: É verdade, tem fantasma na biblioteca! Os demais, aos poucos, mulheres corajosas, mesmo aos sustos e redobrados receios de serem atacadas, comedidamente mantiveram contato com os rebelados e tomaram pé da proposta deles. Como eram duas ou três apenas, aceitaram desconfiadas a colaboração sobrenatural, vez que ao chegarem tudo já estava limpinho e organizado para o início das atividades diárias. Com o passar dos dias já se acostumavam com a intervenção deles no atendimento de crianças e jovens que acorriam ali com dificuldades para pesquisas, ou nas visitas escolares, ou mesmo desavisados que por ali passavam equivocados com o endereço de algo que precisavam. Os assíduos apareciam com um pé atrás, mas logo entraram na roda e se metiam com os alienígenas em contações de históricas, encenações de obras ou mesmo saraus, recitais e serenatas que começavam logo de manhã e duravam a semana inteira por anos. Isso até o dia em que os boatos se avolumaram e arrepiaram fanáticos religiosos que entraram em pé de briga com aquela insolência misteriosa do mundo dos mortos entre vivos. O fato era que, como crianças, jovens e mulheres estreitavam relações com aquele absurdo, logo as religiões correriam o risco de perder esses fiéis entre as suas fileiras, o que levou a um ecumenismo geral que findou num ataque de exorcismo, com o objetivo de expulsar aqueles intrusos. Nada adiantou. A revolta religiosa logo passou do nível razoável para o mais aguerrido, a ponto de se preparar a destruição total daquele despropósito. Foi, então, que contando com o apoio da gestão pública que achava melhor acabar com aquilo do que manter um local cheio de obsoletas tranqueiras, aliado a policiais e gente que sempre odiou estudo, reuniram-se em frente da igreja da matriz e de lá partiram para acabar de vez com aquela farra. Invadiram de forma violenta o recinto, findando por provocar desabamentos ruidosos, resultando num incêndio sem precedentes de restar nem cinzas na memória da população sobre aquela biblioteca. Era uma vez. O fogo queimou com altas labaredas por dias e semanas, até ser tudo consumido de restar apenas um buraco onde antes estava aquele estabelecimento. De peito lavado, a população fez uma festa, comemorou o fim dos abusos sobrenaturais que tanto atormentavam os munícipes mais temerosos, regado a muita roda gigante, montanha russa, bailes e assustados, bebidas e orações. Agora não precisam mais de ler nada, nem lembrar nada, a vida segue como sempre fora: um passeio pelos dias de sol a sol com a noite no meio, nada mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da soprano finlandesa Karita Mattila: Salomé de Richard Strauss, Myrskyluodon Maija, Erwartung op. 17 de Arnold Schönberg & Triunphant Return NYC & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] A fome no Brasil é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico, com os seus grupos humanos sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa, portanto, da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva ou, pelo menos, desequilibrante da saúde econômica da nação: o do pau-brasil, o da cana-de-açúcar, o da caça ao índio, o da mineração, o da “lavoura nômade”, do café, o da extração da borracha e, finalmente, o da industrialização artificial baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime de inflação. É sempre o mesmo espírito aventureiro se iniciando, impulsionando mas, logo a seguir, corrompendo os processos de criação de riqueza no país. É o “fique rico” tão agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a impaciência nacional do lucro turvando a consciência dos empreendedores e levando-os a matar sempre todas as suas “galinhas de ovos de ouro”. Todas as possibilidades de riqueza que a terra trazia em seu bojo [...]. Trecho extraído da obra Geografia da fome - o dilema brasileiro: pão ou aço (Antares, 1984), do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui e aqui.

CIDADE DO SOL – [...] As artes mais fatigantes obtêm maior estima, como a do artífice, a do pedreiro, etc. ninguém se recusa a exercitá-las, porque a elas se aplicam pela particular tendência revelada na infância, e também porque o trabalho é distribuído de modo que nunca possa ser nocivo à pessoa, mas, ao contrário, deve torná-la e conservá-la melhor [...] As mulheres exercem as artes menos pesadas. Todas devem ser hábeis na natação, e reservatórios especiais de água foram preparados não longe da cidade [...] À Cidade do Sol costumam chegar comerciantes das diferentes partes do mundo, que compram dos solares o supérfluo. Os habitantes não recebem dinheiro, mas trocam com as mercadorias de que precisam, sendo que, muitas vezes, também as compram com moedas. Mas, de todo o coração, riem-se os meninos solares ao verem tanta abundância de coisas deixadas por tão poucas bagatelas; não se riem, porém, os velhos. A fim de que a cidade não seja corrompida pelos maus costumes dos servos e dos estrangeiros, fazem todo o comércio nos portos, vendendo os prisioneiros de guerra ou mandando-os para fora da cidade a cavar fossas e para outros trabalhos fatigantes [...] Possuem de tudo com fartura, desejando cada qual mostrar-se o primeiro no trabalho, que não fatiga e é útil. Os seus ânimos são dóceis e assim obedecem a quem preside aos mesteres, chamando-lhe rei. Nem esse nome lhes desagrada, pois é criação dos habitantes solares, que não o entendem à maneira dos ignorantes [...]. Não ofendem ninguém, mas também não toleram injúrias, brigando só quando agredidos. Dizem que o mundo alcançará tanta sabedoria que os homens viverão como eles. Admiram a religião cristã e esperam, neles e em nós, a confirmação da vida dos apóstolos [...]. Trechos extraídos da obra A cidade do Sol (Guimarães, 1980), do filósofo e poeta italiano Tommaso Campanella (1568-1639). Veja mais aqui.

À MÃO ESQUERDA[...] Uma noite de inverno em que o minuano parecia querer cortar as orelhas da gente de tanto frio, ele, que devia ter então uns sete anos, levantou os olhinhos pra mim e perguntou, vozinha triste: “Por que é que isto está acontecendo com a gente?” Rapaz, me deu uma agonia por dentro, como se tivesse vidro quebrado no estômago. Me senti burro, infeliz, miserável e triste. Eu não sabia por que aquilo estava acontecendo com a gente! […] Que Deus ruim é esse que faz uma moça bonita como a minha mãe se casar com um homem bonito como o meu pai, ter noves filhos, para depois matá-la? Por que faz nascer uma criança com o nome de Querido de Deus para depois deixar ele apanhar toda noite, sem um beijo, sem um carinho, sem uma lágrima morna de mulher para confortar a cabecinha dele? [...] Começo falando um assunto, entra outro na minha cabeça, desvio e, quando quero voltar, já esqueci. [...] Para se casar, um rapaz precisa ter pelo menos 480 mil metros quadrados de terra, que recebe do pai ou que vai pagando a ele aos poucos. As filhas, quando se casam, ganham de presente da família um cavalo de montaria, utensílios de cozinha […]. Se o rapaz é pobre, o casal se estabelece em terras devolutas. Irmãos e cunhados solteiros ajudam na preparação da terra e na construção da casa. Logo após o casamento, o casal inicia a vida de colono e procura ter o maior número de filhos. Os homens são mais bem-vindos por causa da força física […]. Em Esperança, a virgindade é fundamental e controlada pela comunidade. [...] Depois que se meteu nesse negócio de escrever, nunca mais teve de suar o couro para ganhar o dinheiro dele. […] A não ser que vocês considerem que escrever é trabalho. [...] Se algum dia alguém ler este meu diário, talvez se espante com o fato de uma colona se expressar tão bem em português. [...] Pronto, já está sorrindo, não é mamãe? É a morfina. Está viciada, não é mesmo? Eu sei que é bom. Já experimentei, sabia? Só que a senhora está morrendo e eu, não. Estou morta, mas não como a senhora. Quem morreu dentro de mim foi a moça que queria ser feliz e a senhora matou. […] Estou com cinquenta e cinco anos, mamãe, e a senhora está morrendo com quase oitenta. Mas não podia deixá-la morrer sem saber quanto a odeio. A senhora, provavelmente, não lembra, mas tive uma oportunidade de ser feliz muitos anos atrás. Ele era professor e comunista.[...] Aliás, meu filho, seu neto Anibale, é um homossexual incansável, conhecido em todas as saunas da cidade. Certamente, vai morrer de Aids, sabia? [...] Eu, porém, nunca o amei, e uma mulher tem direito de amar uma vez na vida, não é mesmo? Embora soubesse que quase todas as minhas amigas tinham amantes, eu era uma mulher ingênua. Estava à espera do meu príncipe encantado. [...] A senhora aproveitou para convidá-lo para a nossa casa de praia em Fregene. Deu-lhe um porre, fez ele jogar pôquer com seus amigos e perder alguns milhões de liras. Ele teve de pedir dinheiro emprestado para cobrir os cheques que assinou. [...] Quando voltei, a senhora ameaçou me deserdar se eu continuasse com ele. Lembra o que me disse? Se você precisa tanto de sexo, minha filha, arranje um gigolô, mas arranje um profissional discreto que sai muito mais barato [...] O que, mamãe? Fale mais alto, sua vaca, ou acha que eu não sei que a senhora traía papai com titio, sua santarrona, que trepou até com o mordomo. [...] A senhora nunca foi sodomizada, mamãe? Nunca felaciou ninguém? Claro que sim. Eu também. Já fui para a cama com negros, com mulheres, com prostitutos e prostitutas [...] Eu amava aquele homem, mamãe. Foi o sentimento mais bonito que já tive por alguém e a senhora acabou com ele para me transformar no que sou: uma puta rica. [...] Acordei mais cedo e depois de tomar banho, em vez de me vestir, descer e dar as ordens do dia aos empregados, me surpreendi olhando meu corpo nu no espelho. Nos meus trinta e seis anos de vida nunca vi outra mulher nua, nem a minha mãe ou minhas irmãs mais moças, Yolanda, Amália e Ofélia. O que vi no espelho não me desagradou. Tenho um rosto simpático, seios firmes, cabelos e olhos negros e um sorriso que raramente aparece em meu rosto, mas que quando aparece todos elogiam. Sou mulher honesta e virgem. Tenho um defeito grave: meço um metro e oitenta e dois e sou mais alta que a grande maioria dos homens que conheço [...]. Trechos extraídos da obra À mão esquerda (Leitura, 2007), do jornalista e escritor Fausto Wolff (1940-2008). Veja mais aqui.

MUDANÇAS DE NOMES - Aos amantes das belas letras / anuncio o meu maior desejo: / mudarei os nomes de algumas coisas / Minha posição é esta: / o poeta não cumpre sua palavra / se não mudar o nome das coisas. / Com que razão o sol / há de continuar chamando sol? / Peço que se chame Micifuz / das botas de quarenta léguas / Meus sapatos parecem ataúdes? / Saibam que de hoje em diante / os sapatos se chamam ataúdes, / comunique-se, anote-se, publique-se / que os sapatos mudaram de nome / desde agora se chamam ataúdes. / É certo que a noite é longa / e todo poeta que se preze / deve ter seu próprio dicionário / e antes que eu me esqueça / há de se mudar o nome de Deus / cada qual o chame como queira / pois esse é um problema pessoal. Poema do poeta e matemático chileno Nicanor Parra (1914-2018).

SALOMÉ
[...] Ah! Beijei a tua boca, Iokanann! Beijei a tua boca! Os teus lábios têm um gosto amargo. Era gosto de sangue? Não! Foi talvez o gosto do amor... dizem que o amor tem um gosto amargo... mas que importa? Que importa? Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca!...
Trecho da peça teatral Salomé (Itatiaia, 1989), do escritor e dramaturgo britânico Oscar Wilde (1854-1900). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

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