PRAZERES, A AMPARO DO CÉU – Imagem: arte da pintora, desenhista, gravadora e professora
Liliane Dardot. - Prazeres do Céu
não era filha da mãe, o pai consanguíneo assim lhe fizera: apondo-lhe o nome da
consorte na maternidade em documento de registro civil. Prova viva de uma
escapadela, não sofreu muito: a mãe postiça logo bateu as botas – nem deu tempo
de brincar duns castigos e dela escapar duma sina nas mãos de uma madrastra. Afora
isso, sua vida fora excepcional: ambidestra de nascença e possuidora de bunda
pra lua, tinha o ganhador aberto: presentes e competições do que jamais se
imaginasse, era sempre prestigiada, vez que o pai a tinha por meinino e a mãe
por menina. E assim foi educada em casa: destemido de pular o que fosse de
obstáculo, faceira de encantar a parentalha: Essa é menina-macho, a Maria
Bonita da família. Exímia no tiro ao alvo de direita, de esquerda ou do jeito
que fosse, até de cabeça pra baixo era certeira; escrevia e fazia tudo com as
duas mãos; e se danava em rapel, enduros, trilhas de Jeep, bundacanasca, luta
livre, escaladas, karatê, parapente, ciclismo, surfe, paraquedismo, futebol,
capoeira, corridas e pontarias, quanto mais radical, melhor: onde botasse as
vistas ou alcançava com os pés ou na mira. E era mesmo: vivia até metida no
adestramento dos animais, domesticando bicho selvagem que fosse. Dia desse mesmo
apareceu amontada num jacaré raivoso que findou recolhido aos de sua estimação
no quarto de dormir: cobras, lacraus, onça, macacos, cágados, gansos, afora pássaros,
bodes, cachorros, sapos e abelhas, tudo ensinado – dizem que até um saci Pererê
ela capou e tinha amarrado ao pé da cama. Dizem. Quando era à tardinha, as
amigas se reuniam cada qual com seu animal de estimação. Aí ela saía com o seu
parque ecológico ambulante, tendo à frente a da sua predielação: a vaca Raínha,
toda engalanada de brincos, pulseiras, chalés, cordões, laços e fitas,
talqualmente a dona que não gostava nada de aparecer na granfinagem. Vale registrar
que enquanto ela desfilava com o seu plantel pela praça, o povo todo se
trancava de não restar um pé de gente na rua, tudo escondido. Quem era doido? O
jacaré mesmo já tinha comido uns três ou quatro que inventaram de se aproximar,
a cobra picou uns quinze de matar quase todos, a onça havia devorado uns duas ou
três dúzias de atrevidos que se saiba, os gansos e cachorros atacavam quem
tivesse pela frente e ela só dando ordem no domínio, sem poder restituir o
ataque, vez que eram letais. Ninguém se atrevia de reclamar prejuízo que
tivesse, seria a mais descabida petulância: Essa é os pés da doida, pega e
esfola, do cabra nunca mais servir pra nada. Isso sem contar com a vingança dos
bichos: arengasse com ela, era só esperar a vingança deles. Mais de uma dúzia de
vezes teve gente atacada pelos maribondos do criatório dela, avalie. Não só
tinha o melhor mel da região, como as abelhas dela só davam ferroadas no osso
do mucumbu do desafeto, resultado: lona. Quando ela deu fé não tinha mais
amigas, fã-clube, nem nada. Bateu-lhe um desespero. Pensou em mudar de vida, já
que estava uma mocinha taluda, peitinhos tomando forma embaixo do primeiro
sutiã, quadris ajeitando os guardados que se tornavam salientes, faces
enrubecidas com os lábios de cangula pintados pelo batom, cabelos formosos
caindo na testa e nos ombros, uma verdadeira perdição aos olhos dos marmanjos. Contudo,
niguem tinha topete para encarar, sabiam que iam comer arroiado na mão daquela
que chamavam às escondadas de Maria João: Essa engana qualquer um, vá lá e se
estrepe, mô fio. Tanto ela dava mole pros desavisados e logo tomarem ciência
aprumando o rumo pra casa da peste, longe dela. Chorava a coitada no colo do
pai: Tem nada não, filha, é porque o seu príncipe ainda não apareceu, chegará a
hora dele. E nada desse “princeso” dar as caras pras bandas dela. E assim ela
comeu todo ginasial e mais da metade do colegial, quando ela caiu de amores
pelo Zé Peiúdo. Isso foi quase uma fatalidade: a menina-macho virou fêmea saco
de pancadas, como se a danada virada ficasse banguela – ou jogado fora as
presas com dentadura e tudo -, mansa de ser domada e até achar bom levar umas
lamboradas boas do bicado – é que ele só tinha coragem de enfrentá-la
completamente bêbado; quando tornava a si de ressaca, tomava um susto de morrer
de medo e cair fora; ela catava ele onde estivesse, de ser puxado pra casa
pelos colhões. Que danado tinha ela, hem? Braba da peste, ficava mansa e
dominada com o safado biritado. O amor tem cada coisa, hem? Pois é, e a salvação
dela foi o Padre Bidião, foi quando ela virou Amparo do Céu. Que coisa! © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música da cantora, compositora, poeta e produtora Consuelo de Paula: Negra,
Dança das Rosas, Coletãnea, Samba, seresta & Baião & muito mais nos mais de 2
milhões & 600
mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais dela aqui, aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS – [...] No
meio do reino temível das forças e no meio do reino sagrado das leis, o
instinto de criação estética vai construindo, sem que dêem por ele, um terceiro
reino, feliz, do jogo e da aparência, no qual tira ao ser humano os grilhões de
todas as relações e o desliga de quanto seja coação tanto no físico como no
moral. [...]. do poeta, dramaturgo, filósofo e historiador alemão Friedrich Schiller (1759-1805). Veja
mais aqui.
DE ANTES & HOJE - [...] Os nossos ancestrais caçadores-coletores que, ao longo de
milhares de anos, desenvolveram as técnicas da pedra e, depois, elaboraram as
do ouro e do metal, dispuseram e usaram, nas suas estratégias de conhecimento e
de ação, um pensamento empírico/lógico/racional; produziram, acumulando e
organizando, um formidável saber botânico, zoológico, ecológico, tecnológico,
uma verdadeira ciência. Contudo, esses mesmos seres arcaicos acompanhavam todos
os atos técnicos com ritos, crenças, mitos, magias; por isso, antropólogos do
começo do século XX chegaram a crer que, fechados num pensamento mítico/mágico,
esses “primitivos” ignoravam toda racionalidade. [...] Antropólogos simplistas incapazes de
conceber que os seus “primitivos” moviam-se nos dois pensamentos, completamente
sem confundi-los! [...] Também, ainda que nossos espíritos sejam muito diferentes
daqueles dos arcaicos ou dos medievais, ainda que os dois pensamentos tenham se
tornado antagônicos, vivemos não somente nessa oposição, mas também na
cohabitação, na interação e nas trocas clandestinas e diárias entre eles. O problema
dos dois pensamentos não é, pois, um problema original e histórico
ultrapassado, mas o problema de todas as civilizações, inclusive as
contemporâneas: um problema antropossocial fundamental. [...].
Trechos extraídos da obra O método 4 – as
ideias (Sulina, 2005), do antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgar
Morin.
Veja mais aqui.
O SOM & A FÚRIA - [...] Ela
estava molhada. A gente estava brincando no riacho e Caddy se agachou e molhou
o vestido e Versh disse: “Tua mãe vai te bater por causa que você molhou o
vestido.” “Vai me bater coisa nenhuma.” disse Caddy. “Como é que você sabe.”
disse Quentin. “Sei porque sei.” disse Caddy. “Como é que você sabe.” “Porque
ela falou que vai.” disse Quentin. “Além disso eu sou mais velho que você.” “Eu
tenho sete anos.” disse Caddy. “Então eu sei.” “Eu tenho mais de sete.” disse
Quentin. “Eu já estou na escola. Não é, Versh.” “Ano que vem eu também vou pra
escola.” disse Caddy. “Quando chegar a hora. Não é, Versh.” “Você sabe que ela
te bate quando você molha o vestido.” disse Versh. “Não está molhado não.”
disse Caddy. Ficou em pé dentro d’água e olhou para o vestido. “Eu tiro.” disse
ela. “Aí ele seca.” “Duvido que você tira.” disse Quentin “Tiro sim.” disse
Caddy. “Melhor não tirar.” disse Quentin. Caddy veio para perto de mim e Versh
e virou de costas. “Desabotoa, Versh.” disse ela. “Não faz isso não, Versh.”
disse Quentin. “O vestido não é meu.” disse Versh. “Desabotoa, Versh.” disse
Caddy. “Senão eu conto pra Dilsey o que você fez ontem.” Então Versh
desabotoou. “Quero ver você tirar o vestido.” disse Quentin. Caddy tirou o
vestido e o jogou na margem. Ela estava só de corpete e calcinha, e Quentin deu um tapa nela e ela
escorregou e caiu na água. Quando se levantou ela começou a espirrar água em Quentin, e Quentin espirrou água em Caddy.
Caiu um pouco de água em mim e em Versh e Versh me pegou e me pôs na margem.
Ele disse que ia contar o que Caddy e Quentin fizeram, e então Quentin e Caddy
começaram a espirrar água em Versh. Ele ficou atrás de uma moita. “Eu vou
contar pra mamãe o que vocês estão fazendo.” disse Versh. Quentin subiu para a
margem e tentou pegar Versh, mas Versh fugiu e Quentin não conseguiu. Quando
Quentin voltou Versh parou e gritou que ia contar para a mãe. Caddy disse que
se ele não contasse eles deixavam ele voltar. Então Versh disse que não ia
contar, e eles deixaram ele voltar. “Agora você está satisfeita, não é.” disse
Quentin. “Nós dois vamos apanhar agora.” “Eu não ligo.” disse Caddy. “Eu vou
fugir.” “Vai fugir nada.” disse Quentin. “Vou fugir pra não voltar nunca mais.”
disse Caddy. Comecei a chorar. Caddy se virou e disse: “Não chora.” Então eu
parei. Então eles brincaram no rio. Jason estava brincando também. Estava
sozinho separado dos outros. [...]. Trecho extraído da obra O som e a fúria (Com panhia das Letras, 2017),
do escritor estadunidense e ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1949, William Faulkner (1897-1962). Veja mais
aqui.
O MAR PRA ONDE FOI - O
mar, pra onde foi? – me despedindo, aqui estou / O meu mar azul, pra onde foi?
/ Com todos os seus barcos, velozes, singrando / Com suas livres brisas e
bandeiras. / Saudades daquela voz de ondas, a primeira que / Da minha infância
alegria despertou; / Do toque do sino a hora certa – do trovejar súbito – / Meu
mar azul, pra onde foi? / Na serra do pastor um som de flauta ouço – / Da
árvore o murmúrio ouço; - / De minha alma, emudecidos, os ecos – / Meu mar
azul, pra onde foi? / Oh! Por mais profunda que seja a tua Murta, / Por mais
suave e suave que teus ventos sejam, / Em mim, o coração enfermo de bater
cessou – / Meu mar azul, pra onde foi? Poema da poeta britânica Felicia Hemans (1793-1835). (Tradução
de Cunha e Silva Filho).
A ARTE DE LILIANE DARDOT
A arte da pintora, desenhista, gravadora e professora Liliane
Dardot.
AGENDA
&
&
Poetastro mete as catanas sem entender do
riscado, William Faulkner, Roberto
Piva, Pierre Bourdieu, Vitor da Fonseca, Alice Viveiros de Castro,
Frank Furedi, Lia Chaia & Amanda
Duarte, Socorro Durán, Gonzaguinha, Rachel Podger,
Bia Sion & Mano Melo aqui.