POR ONDE ANDA ANCLOTINATO? – Imagem: arte da artista visual Danielle Carcav. – Daquele dia em diante nada dava certo para
Anclotinato, o que fizesse só dava errado. Como é que pode? A chaleira
esquentando no fogão, foi pegar o bule e o pipoco deixou-lo todo cheio de
queimadura: Rapaz, a coisa estava quente mesmo! Ao fechar a porta do que fosse,
esquecia o dedo machucado: careta medonha abanando a mão dolorida. Calçava o
sapato sem se lembrar do calo no calcanhar: Vôte, parece mais que o calçado
enconlheu, ora! Fechando o zíper da calça, prendia a piroca por ais e uis:
Agora, casar já era! Fazendo a barba, cortava-se todo, haja talhos e
esparadrapos na fisionomia, todo remendado: Será a múmia dum faraó fuleiro? Se
ía sair de casa em dia ensolarado, logo trovejava de cair temporal: pegava o
guarda-chuva, agasalhava-se todo, dava uns dois ou três passos, o Sol abria o
quenturão. Se estava disposto a resolver problemas pendentes, tudo se
enganchava: Foi mesmo? Findava com cara de anteontem sem entender direito o que
havia acontecido. Perseverante, inventou de arrumar uma namorada, todo embecado
de ficar nos trinques. Ao se aproximar dela: Que perfume catingoso esse seu,
hem? Caríssimo, mandei buscar nos estrangeiros. Pois pra mim, fede da pior
inhaca! Vixe! Outra reclamou do seu bafo: Mas eu escovo os dentes seis vezes ao
dia! Deve ser com bosta, só sendo. Danou-se. Uma terceira o achou muito feio,
aí não teve jeito: jurou que morreria solteiro. Para ele tudo passa e indo para
uma festa, se o traje era a rigor, chegava a passeio, ou vice-versa: Você não
leu o convite? Que convite? Ah, penetra, pra boca de ponche aqui só tem barrada
na cara, viu? Saía se rindo: Ué, vai que cola! Na fila de um banco, chegasse a
sua vez, tudo saía do ar, só no outro dia: Como é que pode, três horas na fila?
Guichê encerrado – os outros também, fazer o quê? Ao pagar em dia, o código de
barras estava errado: Como assim? Não passou na máquina, resultado: só pagava
atrasado. Eita, tiborna! Dia de pagamento, saía remuneração de todo mundo,
menos a dele: E é? É. Ao pegar condução, estava entupido de ficar esperando a
próxima: Tem nada não, ainda volto pra casa um dia. No metrô, ficava pra trás.
Cansado da embromação do transporte público, resolveu comprar um automóvel para
não perder o ponto: se não ficasse empancado num engarrafamento o dia inteiro,
restava retido numa blitz policial: só pra resolver os documentos e pagar as
multas, três dias. Emprego que era bom, não tinha mais, nem que quisesse.
Resolveu pela informalidade, profissional autônomo e trocou o carro por uma
motocicleta: se não levasse trancas de findar desmantelado num hospital, aparecia
o dono do alheio que a levava de deixá-lo a pé: Num é que levaram mesmo? Pois é.
Optou por uma bicicleta: quando não era a corrente enganchando entre a catraca
e a coroa, dele se esborrachar relando a venta no chão, era a ausência de faixa
de ciclista dele ficar feito num mata-burro. Dá não. Fazer meu próprio negócio
em casa mesmo. Anúncios e faixas, ninguém aparecia: Vai ver que estou sendo
engalobado de novo. Jogava na loteria, acertava os números do concurso anterior:
Hem, hem, devia de ter jogado na semana passada, num era? Pronto para vencer no
bingo, passava batido: Ah, foi? Se vestia uma roupa limpa e ia caminhar,
findava melado de lama – não se livrava nunca dos pneus nas poças. Na hora do
voto, errava o número do candidato escolhido: Esqueci o número do fidapeste! No
café da manhã, a comida já vinha queimada; no almoço, tudo passado; jantava
qualquer coisa para enganar o bucho: Do jeito que vai, findo morrendo de fome.
Pra visitar a família ia a pé, porque ou o ônibus ou o trem atrasavam de
deixá-lo secando os cambitos o dia todo: Será o Benedito? Taxado de pé frio,
não tinha amigos, parentes nem aderentes, todos diziam: O cara é um azarão. Vai
que a sorte dele vira pro lado da gente, maior urucubaca, meu! E ele só rindo. Sozinho
para onde fosse, resolveu não fazer nada na vida: se faço, dá tudo errado; não
vou fazer nada para ver o que acontece. E aconteceu: da primeira vez, um raio
acertou-lhe o cocoruto, quase lhe tosta a alma numa enfermaria por quase seis
meses; da segunda, não teve jeito, findou torrado de nunca mais ninguém se
lembrar dele. Coitado, ainda dizem que raio não cai duas vezes no mesmo lugar,
ora, ora. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo
e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música da diva da ópera brasileira, a soprano lírico spinto Silviane
Bellato:
Lo Schiavo de Carlos Gomes, Nel di dela vittoria – Machbeth, Pace Pace Mio Dio
– La Forza del Destino & Tosca de Puccini & muito mais nos mais de 2
milhões & 600
mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja a entrevista dela aqui & mais dela
aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS – [...] Nós somos como tartarugas, carregamos a casa.
Essa casa são as lembranças. Nós não poderíamos testemunhar o hoje se não
tivéssemos por dentro o ontem porque seríamos uns tolos a olhar as coisas como
recém-nascidos, como sacos vazios. Nós só podemos ver as coisas com clareza e
nitidez porque temos um passado. E o passado se coloca para ajudar a ver e
compreender o momento que estamos vivendo.
[...]. Extraído da obra Gaveta de
guardados (Edusp, 1998), do pintor Iberê Camargo (1914-1994).
Veja mais aqui e aqui.
PASSAGENS - [...] o
alegorista pega uma peça aqui e ali do depósito desordenado que seu saber põe à
sua disposição, coloca-a ao lado de uma e outra e tenta ver se ambas combinam:
aquele significado para essa imagem ou esta imagem para aquele significado. O
resultado nunca pode ser previsto, pois não existe uma mediação natural entre os
dois. Dá-se o mesmo com a mercadoria e o preço. [...] Nunca se poderá saber ao certo por que tal mercadoria tem tal preço,
nem no curso de sua fabricação, nem mais tarde quando ela se encontra no
mercado. Ocorre exatamente o mesmo com o objeto em sua existência alegórica.
Nenhuma fada determinou em seu nascimento qual significado que lhe atribuirá a
meditação absorta do alegorista. Porém, uma vez adquirido tal significado, este
pode ser substituído por outro a qualquer momento. [...] De fato, o significado da mercadoria é seu
preço; como mercadoria, ela não possui outro significado. Por isso o alegorista
está em seu elemento com a mercadoria [...] Tornar
cultiváveis regiões onde até agora viceja apenas a loucura. Avançar com o
machado afiado da razão, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para
não sucumbir ao horror que acena das profundezas da selva. Todo solo deve
alguma vez ter sido revolvido pela razão, carpido do desvario e do mito. É o
que deve ser realizado aqui [...] nada
a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei
de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero
inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível:
utilizando-os [...]. Trechos extraídos da obra Passagens
(UFMG/IOESP, 2009), do filósofo, ensaísta e critico
literário alemão Walter Benjamin (1892-1940). Veja mais aqui e aqui.
UMA PROMESSA QUEBRADA – [...] —
Eu não tenho medo de morrer – disse a esposa agonizante —; só há uma coisa que
me inquieta neste momento. Gostaria de poder conhecer quem tomará meu lugar
nesta casa. — Minha querida — respondeu o marido desolado —, ninguém jamais
tomará seu lugar em minha casa. Nunca mais me casarei. No instante em que disse
isso, ele falava do fundo de seu coração, pois amava a mulher que estava
prestes a perder. — Palavra de samurai? — indagou a esposa, com um débil
sorriso nos lábios. — Palavra de samurai — respondeu ele, acariciando seu rosto
pálido e magro. — Então, meu querido — disse ela —, você deixará que eu seja
enterrada no jardim, próxima daquelas ameixeiras que plantamos lá no fundo? Faz
muito tempo que eu queria pedir isso, mas achei que, caso você se casasse
novamente, não ia querer meu túmulo tão perto. Agora, você prometeu que nenhuma
outra mulher tomará meu lugar, e não preciso mais hesitar em pedi- lo… Eu quero
tanto ser enterrada no jardim! Acho que, no jardim, poderei ouvir sua voz de
vez em quando e serei capaz de ver as flores na primavera. — Sua vontade será
feita — anuiu o esposo. — Mas não fale de enterro: você não está tão doente a
ponto de termos perdido toda a esperança. — Eu perdi — retrucou ela —, vou
morrer hoje de manhã… Mas você me enterrará no jardim? — Enterrarei — disse ele
—, sob a sombra das ameixeiras que plantamos; e você terá um belo túmulo. — E
você me dará um pequeno sino? — Um sino? — Sim… Quero que ponha um sino dentro
do caixão, um daqueles pequenos sinos que os peregrinos budistas carregam.
Posso ter um igual? — Você terá seu sino e o que mais desejar.
— Não desejo mais nada — disse ela. — Meu
querido, você sempre foi muito bom para mim. Agora posso morrer feliz. Em
seguida, ela fechou os olhos e morreu serenamente como uma criança sonolenta
que adormecesse. Estava linda quando morreu; e havia um sorriso no seu rosto. Ela
foi sepultada no jardim, sob a sombra das árvores que amava; e um pequeno sino
foi enterrado com ela. Sobre o túmulo foi erguida uma linda lápide decorada com
o brasão da família, com o kaimyo:
“Grande Irmã Anciã. Sombra-Luminosa-da-Flor-da-Ameixeira, que reside na Mansão
do Grande Mar da Compaixão.” [...] Todavia,
12 meses após o falecimento de sua esposa, os parentes e os amigos do samurai
começaram a insistir que ele deveria se casar de novo. “Você ainda é jovem”,
disseram, “filho único e sem filhos. É o dever de um samurai se casar. Se você
morrer sem deixar filhos, quem estará aqui para fazer as oferendas e recordar
seus ancestrais?” Depois de tanta insistência, ele foi enfim persuadido a
casar-se novamente. A esposa tinha apenas 17 anos; e ele achou que poderia
amá-la ternamente, não obstante a muda repreensão da sepultura no jardim. [...].
Trecho da obra do escritor japonês Lafcadio
Hearn (1850-1904).
DOIS POEMAS - EM BAIA: Eu devia ter previsto / que num sonho você teria
trazido / alguma coisa adorável, perigosa, / orquídeas empilhadas num belo
estojo, / como alguém diria (num sonho), / “Eu lhe envio isto, / alguém que
deixou as veias azuis / da sua garganta imbeijada.” / Por que foi que suas mãos
/ (que nunca tomaram as minhas), / suas mãos que eu pude ver / vagar em pétalas
de orquídeas / com tanto cuidado, / suas mãos, tão frágeis, prontas para
levantar, / tão gentilmente, a essência frágil da flor / – ah, ah, como foi isso / Você nunca enviou
(num sonho) / a mesma forma, o mesmo cheiro,/ não denso, não libidinoso, / mas
perigoso — perigoso — / das orquídeas, empilhadas num belo estojo / e dobradas
sob um brilhante pergaminho, / algumas palavras: / “Flor enviada para flor; / para
alvas mãos, a menos alva, / menos adorável das folhas de flor,” / ou / “De amante para amante, sem beijo, / sem
toque, mas para todo o sempre assim.” OS QUE DORMEM AO VENTO: Brancos / mais que a crosta / que a maré
arrasta, / ardem-nos a areia revirada / e as conchas partidas. / Não dormimos
mais / ao vento / — / despertamos, fugindo / ao portão da cidade. / Arranquem —
/ arranquem um altar pra nós, / puxem os rochedos, / empilhem-nos com pedras
brutas — / não dormimos / mais ao vento, / propiciem-nos. / Entoem um ululuar /
que nunca cessa, / tracem um círculo e homenageiem / com uma canção. / Quando o
rugir da vaga em queda / a interromper, / jorre medido o verbo / de
águias-marinhas e gaivotas / e aves marinhas clamando / discórdias. Poemas
da poeta estadunidense Hilda Doolittle
(1886-1961). Veja mais aqui.
A ARTE DE DANIELLE CARCAV
A arte da artista visual Danielle Carcav.
AGENDA
Seminário
de Antropologia Indígena em Pernambuco -10
e 11 de outubro, PPGA Programa de
Pós-Graduação em Antropologia - UFPE, organizado e realizado pelo Núcleo de Estudos e
Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) & muito mais na Agenda
aqui.
&
&
Lá vai Tomé escapando das suas, Jiddu Krishnamurti, Rainer Maria Rilke, Boaventura
de Sousa Santos, Ladislau Dowbor, Alberto da Cunha Melo, Anselm Kiefer,
Biblioteca Fenelon Barreto & Paulo Profeta, Peter Gabriel, Tatjana Vassiljeva, Edson Zampronha & Karyme Hass
aqui.