segunda-feira, fevereiro 19, 2018

FEUERSTEIN, QUINTANA, GALSWORTHY, GIOSUÈ CARDUCCI, JORGE ANDRADE, NELSON AYRES, ELISA FUKUDA & TCHELLO D’BARROS

EXERCÍCIOS EXPERIMENTAIS DE ESBOÇOS NADA A VER – Imagem: Sim ou não (2009), do escritor e artista visual Tchello d’Barros. - UMA: ENTRE PARÊNTESES - Uma coisa é sonhar acordado quando o dia amanhece; outra é não saber nada do que fazer diante do fato de que tudo agora não faz o menor sentido. É a vida. As pessoas em redor, passam pensativas ou emocionalmente abaladas, pra onde vão, não sei, erram de si, lembram e esquecem. Eis-me aqui como se tudo fizesse para um melhor amanhã comece a partir de agora, neste momento, enquanto, na verdade, todos se encontram refugiados em um dia qualquer do passado. Não perdi as esperanças, só as rememorações. De fato, eis-me aqui, na rua e perdido como qualquer um, com minhas solas e unhas em dia, indefeso, talvez, ignoro o próximo instante. De fato, em termos inacabáveis, em processo, o desconfortável é mais que gigantesco para eu me perder entre tentativas de erros e acertos. Então, para quê compreender, sinto e isso basta! Isso não quer dizer que eu seja indiferente às contradições, sofro com as injustiças e tento fazer a minha parte, revendo minhas quedas, tentando evitar outras, não estou isento de responsabilidade. O que sei é que o fracasso da humanidade é uma tragicomédia. E me rio, até de mim mesmo, como se estivesse no fim do mundo, embriagado com seus belos amanheceres e crepúsculos, fartas aprendizagens. Vou pro que será. E se era ou não era, não esqueço que ainda um dia eu vou morrer, claro, sou como um náufrago desamparado, mas quem não é neste louco e vasto mundo com seus cheiros de esquisitice, encantos e espantos. Ouço bem as ladainhas das pessoas dorminhocas sobre sonhos de prosperidade com seus fantasmas cobrando o que devem. A escuridão não distingue vivos ou mortos, eu mesmo não sei como salvar a minha própria pele: a vida pendurada no arame do varal. Estar vivo é correr risco, fazer escolhas. Eu sei e se der, redivivo, faço amor com a Terra para exorcizar a loucura na chama das velas acesas nos candelabros, quando as sombras e os invisíveis são íntimos. Ah, Bachelard, tantos estilhaços, muitas imundícies, heranças no chão: a noite é alimária selvagem que me conduz atento, mãos às rédeas voo pelo absurdo da existência. DUAS: CRIANÇA ABANDONADA - Valdevinicio catava louco noitedia pela presença voluptuosa de Catalinivea. Errava dela, desencontros persistentes. Urdia convergência, um dia daria certo, com certeza. E deu, quando menos esperava. Ela lá, inteira, elegante e solícita: um sonho de consumo pras suas garras. Chegou a sua vez, investiu pesado. Dali para o que ele queria era um passo. Para ela, nem tanto, desconhecia, talvez, as intenções num encontro fortuito, pagou pra ver, nada demais. Desse encontro pro jantar, local discreto, às escuras, uns goles, ela indefesa suspirava entre confissões e afinidades, segredos revelados; toques acidentais de pele, outros goles, o mundo roda na cabeça, gracejos e intimidades, mão na mão, e agora? Tá bom. Mais um pouco. Amanhã... A noite é uma criança. Goles, papos e tragadas. Nada demais pra meter a cara, provar da surpresa, o gosto do imprevisível. A vida gira na taça de vinho. Os sentidos falam mais alto, no flerte as carências expostas, libido em alta. Cheiros ao olfato, perfume atrativo; o tato, a procura na ponta dos dedos, assimetrias carnais; olhos vidram e música no ar. E dançam quase sem jeito, estreitam dois pra lá, um pra cá, pisadas, tropeços, risadagem, balaçam as pernas, umas entre as outras, sem sair do lugar, apenas rodam e se tocam, a paixão faz festa. Dali o ritmo dos nervos, veias exaltadas, carne pro desejo, corpos pros lençóis, fronhas e vestes ao chão: o calor do prazer, sintoma da entrega, uma aos beijos, ventes e coxas, duas ao delírio de bocas e sexos, e amanheceu como se por encanto depois de orgamos. À despedida, novo encontro marcado. Da segunda vez, melhor. Mais outra e mais vezes, quase vício. Meses passaram até a menstruação parar não se sabe quando, um teste e a comprovação na promessa esponsal. No outro dia ela ligou, ele não atendeu, estava em reunião. Ligações repetidas o dia todo e demais dias, uma semana, quase um mês depois e ele fora transferido pra outra filial não se sabe onde. A solidão e a gravidez. Exames e parto na obstetrícia. Ela fechou os olhos, a criança chorava ao colo. A manchete do noticiário: recém-nascida encontrada na lata do lixo. TRÊS: VENCEDOR & VENCIDO - A recepção e os atavios, carteira assinada no sorriso entre orelhas, o relógio de ponto no peito estufado, o expediente e a vida valia a pena. Aprendeu rápido, muitas tarefas, profissional da vez, diplomas nos trinques, como manda o figurino. Não sabia sem vez nem voz. Meio dia, quinze minutos pra marmita. Engole sem mastigar. Encheu a pança? Bora! Tem muito a fazer. Dezoito horas, ufa! Hoje tem serão; amanhã, também; depois de amanhã e sempre, inclusive finais de semana e feriados, sem horas extras no contracheque. Que horas são? Madruga. O sono vence. O apito, despertador; corre-corre, nada de atraso. Manhã vira tarde e noite, todo dia e o dia todo. Respira cansaço, tudo pronto, concluído. A ilusão do tempo no tictac a corromper a vigília. Tá cochilando é? 99 não dão 100, quero 101! Qualidade total, erro zero! Manda quem pode; obedece quem tem juízo! Arrume o que fazer! Hem? Vá limpar o eixo do sol. Como? Vá calar aquele sabiá que está me incomodando. Hum? Plante bananeira ou dê um salto solto aí, vá! Ué! Faça-me rir! Vá ver se estou lá esquina, já voltou? Nem fui! Então acorda os pássaros, faça alguma coisa! O quê? Vai sentar o cu num balaio de rola, já! Eita! Isso, aquilo, de novo, limpe, esfregue, quero brilhando! Agora conte! Reconte! Faça! Desfaça! Refaça! De novo! Vá e volte! Sente e levante! Sentido! Fique aí coarando até eu voltar, não se mexa! Pare de respirar! Parou. Caiu, nunca mais se levantou. Era uma vez. O que será escravidão que eu não sei? © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá é dia de especial com os álbuns Perto do coração, Mantiqueira, Só Xote e Música Popular Brasileira Contemporânea do produtor musical, arranjador, instrumentista, regente e compositor Nelson Ayres; com Sonatas de Debussy e Beethoven & Brandeburg Concert Bach, da violonista e pedagoga Elisa Fukuda; & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.

PENSAMENTO DO DIADemocracia? É dar a todos, o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um. Extraído de Caderno H (Globo, 1973), do poeta, tradutor e jornalista Mário Quintana (1906-1994). Veja mais aqui.

PROGRAMA DE ENRIQUECIMENTO INSTRUMENTAL- [...] Ao construir Feuerstein's Instrumental Enrichment (FIE), nosso maior objetivo foi desenvolver uma forma de produzir esquemas de aprendizagem nas crianças, enquanto simultaneamente (e constantemente) as crianças alargam tais esquemas pela introdução de novas situações. Este duplo processo de acomodação e assimilação, descrito por Piaget como o princípio dinâmico do desenvolvimento da inteligência, é usado por nós com o propósito específico de cristalizar os pré-requisitos da aprendizagem, enquanto estes se tornam flexíveis o suficiente para possibilitar a generalização e a constante adaptação de sua aplicação a novas e variadas situações. [...]. Trechos extraídos da obra Instrumental enrichment: an intervention program for cognitive modifiability (University Park Press, 1980), do psicólogo e professor judeu-israelense Reuven Feuerstein (1921-2014), criador da Teoria da modificabilidade cognitiva estrutural (MCE) e da Teoria da Experiência da Aprendizagem Mediada (MLE) e do Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI). Originalmente nomeado FEI foi traduzido para Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI), desenvolvido por meio do método psicopedagógico baseado nas ideias de Vygotsky, Piaget, entre outros, que compreende o modelo para o apoio cognitivo de indivíduos com dificuldades de aprendizagem e com Síndrome de Down. Trata-se de uma análise teórica e avaliação empírica consolidados em dois programas de ação psicopedagógica, um avaliativo e outro de apoio cognitivo. O primeiro denomina-se Abordagem de Avaliação do Potencial de Aprendizagem, tradução para o português da denominação na língua inglesa Learning Potential Assessment Device; o segundo chama-se Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI), cuja formulação no inglês é Instrumental Enrichment Program. O PEI consiste de 15 instrumentos ou "cadernos" com variadas tarefas, sendo que cada um deles contém um ou mais objetivos de ação pedagógica, abrangendo seis objetivos específicos, os quais podem ser agrupados basicamente em duas áreas: por um lado, determinados objetivos visam a diminuição das funções cognitivas defectivas e simultaneamente o fomento das capacidades intelectuais; por outro lado, procura-se intervir positivamente nas variáveis afetivas ou extra-intelectuais correlacionadas positivamente com os processos cognitivos. Assim, pode ser definidas duas áreas como constituidas por processos "cognitivos" e "afetivos" da aprendizagem. Veja mais aqui , aqui e aqui.

O PROPRIETÁRIO - [...] Viu-lhe o então o rosto, tão pálido e imovel, que se diria que o sangue não lhe corria mais nas veias; os olhos pareciam dilatados, como as grandes pupilas de uma ave noturna apanhada de surpresa. envolta na capa de pele cinzenta, encolhida contra as almofadas do divã, ela estava estranha, e parecia na verdade um pobre mocho catvo, cuja plumagem macia se arrepelava contra as grades da gaiola. Não tinha mais o seu porte leve e ereto, dir-se-ia que uma cruel fadiga física a dobrara e que já não tinha mais razões para ser esbelta e firme, nem bonita. [...] Ela não teve um olhar, uma palavra. Os reflexos das chamas brincavam-lhe sobre o rosto imóvel. De súbito Irene tentou erguer-se, mas o marido o impediu. Foi então que ele compreendeu. Ela voltara como um animal ferido de morte, sem saber mais onde ir, sem saber mais o que fazer. Bastava vê-la ali, enrolada e encolhida dentro da capa, para o compreender. Ele soube então, com certeza plena, que Bosinney fora seu amante, compreendeu que ela soubera da morte dele, que, como ele próprio, talvez houvesse comprado um jornal em uma esquina vbentosa de rua, e lido... De folta que voltara livremente para a jaula onde enlanguescera à espera da libertação. Compreendeu a espantosa significação daquela volta; tinha vontade de gritar: “Tire da minha casa esse corpo que eu odeio e que adoro! Vá embora, com o seu rosto branco que faz sofrer, tão cruel e tão meigo, antes que eu o esmague. Tire-se dos meus olhos, faça com que eu não a reveja nunca mais...”. E como essas palavras eram pronunciadas interiormente na sua alma, Soames supôs vê-la erguer-se e afastar-se, tal uma mulher tenta fugir de um sonho terrível, erguer-se e ir embora, por entre a noite e o frio, sem reparar nele, sem mesmo saber que ele estava ali. [...] Ficaram em silêncio. Ele a olhava ainda, dobrada sobre si mesma como um pássaro que morre de um tiro, e cujo peito a gente vê arquejar, à medida que o ar lhe fogre: os pobres olhos nos fitam, a nós que lhe demos o tiro, com aquele olhar lento e doce que não enxerga mais, e que diz adeus a tudo que é bom: o sol, o céu e o amor. [...]. Extraído de O proprietário (Delta, 1964), do novelista e dramaturgo John Galsworthy (1867-1933), Prêmio Nobel de Literatura em 1932.

CANTO DO AMORBela que foi essa Rocha Paulina, / de esporões e baluartes no áureo tempo, / Paulo terceiro ideou-a à voz latina/ do missal, esta mesma voz de Bembo. / - Pelos barrancos perusino gado, / bem a seu gosto – disse – se desvia: / para avisar Deus tem o raio irado, / - Seu vigário – eu terei a artilharia. / Coelo tonantem, canta Horácio: e Deus / fala sobre o aquilhão na tempestade: / direi com os canhões – Rebanhos meus, / volvam aos pastos de Saron e Engaddi. / Temos Augusto de novo reposto. / Ouve Sangallo: faze-me um trabalho / digno de Roma, digno de teu gosto, / e do pontificado nosso, o áureo. / Disse. E Sangallo à fortaleza os flancos / arredondou como à esposa do poema: / pôs-lhe em redor um véu – mármores brancos - / deu à orgulhosa de torres diadema. / Cantou-a Molza em dísticos latinos; / e o paracleto então, em vez de sete / dons que podia dar aos peruginos, / com bombas de morteiros arremete. / Mas bem que o povo é um cão que os seixos vivos / afia, quando os não pode atirar. / E especialmente, os férreos incisivos / ama na flortalezar exercitar; / e a rói: e após com jubilo se estende / ladrando sobre as pedras arruinadas, / ergue-se após e outra corrida empreende / a outras pedras, como a outras bastonadas. / Assim foi em Perusa. Onde severa / mole de vasta sombra o solo enchia / hoje o amor ri e ri a primavera, / parlam crianças e mulheres no dia / e o sol no radiante azul imenso / nos Abruzzos além brilha e se perde. / Com desejo de amor, o mais intenso, / sorri aos montes da Úmbria e ao plaino verde. / No róseo lume calmamente os montes / surgem e após vão buscando um ao outro, / até que morram pelos horizontes / entre vapores de violeta e de ouro. / Vive, Itália, a tua coma fragrante, / no tálamos num mar de calmas cheio, / e sob os beijos do eternal amante, / treme-te efusa nos anéis ao seio. / Eu não sei bem o que é, mas de safira / meu pensamento, eu sinto, hoje floresce, / por minhas veias minha alma suspira, / e que entre a terra e o céu ou sobe ou desce. / Com um abalo, cada aspecto novo, / vem me saudar de velho sentimento, / e comovido a minha língua movo, / dizendo Amor à terra e ao firmamento. / Sou eu que o céu abraço ou tão fraterno, / vai absorver-me em si todo o universo? / Foi uma nota do poema eterno / o que eu sentia e aqui é um pobre verso. / Das aldeias umbriana (nas gargantas / dos Apeninos guardam-se em segredo) / das tirrenias acrópoles que tanto / olham dos cimos flóridos a medo; / dos campos onde estão ossos arados, / a desgraçada Roma ainda ameaça; / dos fortes alemães empoleirados, / como falcões que meditam a caça; / dos palácios do povo (desafiando, / surgem negros e cheios de torreões) / das igrejas que ao céu longos alçando / marmóreos braços em vez de orações; / dos suburbios com pressa de subir / alegres para a cidade desfeita, / como vilões que têm de repartir / depois da messe uma boa colheita; / dos claustros entre cidades e vilas, / ao som dos sinos de sombras pressagas, / como cucos, das árvores tranqüilas, / cantando dores e alegrias vagas; / e das ruas e das praças gloriosas, / onde como, de maio, hílare um dia, / bosques de quercos e florões de rosas, / libérrima, dos pais, a arte floria; / pelas messes que nos plainos se vêem, / pelos vinhais nos cumes arraigados, / pelos lagos de prata errando além, / pelos bosques, os das frondes nevadas; / pelas cabanas que fumam amigas, / ao estridor dos moinhos e pisões, / sobe um cântico só em mil cantigas, / e um hino – a coma de mil orações: / - Saúde, ô raça que cansada vai! / Tudo passa e nada vai sucumbir! / Muito sofremos e odiamos. Amai! / O mundo é belo e é santo o porvir; / que é que esplende sobre os montes lassos / e ao sol desponta como nova aurora? / Pois desses monte spelos róseo tyraços, / ainda as Madonas passeiam agora? / As madonas que viu o Perusino, / descer nos puros poentes, os de Abril, / no êxtase os braços por sobre o menino, / abrir diante de Deus assim gentil? / É outra madona cuja ideia espraia, / fulgente de equidade e de dever; / pois eu bendiigo quem por ela caia, / e quem por ela poderá viver. / Que me importam os padres e os tiranos, / são mais velhos que qualquer deus ou rei: / sei que eu maldisse o Papa há já dez anos ; hoje com o Papa me harmonizarei. / Pobre velho, é possível que lhe valha / alguma estéril vontade de amar! / Talvez volte a pensar em Sinigaglia, / Bela, mirando o adiratico mar. / Tomo em meu braços (Abri o Vaticano!) / aquele que na servidão se esvai, / vem, faço um brinde à liberdade que amo, / bebe, também, ó cidadão Mastai. Extraído de Poesias escolhidas (Delta, 1962), do poeta italiano Giosuè Carducci (1835-1907), Prêmio Nobel de Literatura em 1906.

PEDREIRA DAS ALMAS
[...] Urbana: Encontraram sinais estranhos na rocha, e uma imagem de São Tomé no nicho de pedras. “Este é o lugar para a cidade. São Tomé nos protegerá, como nos protegeu da tormenta!” Descobriram ouro na gruta. Abriram galerias que foram sair em dez pontos diferentes do morro, como se fossem dez portas de Pedreira. Mais tarde, partindo daqui, abriram lavras por todo o vale e fundaram novos lugarejos. [...] Mariana: Leis! Leis! Não aceitamos, nem o povo de Pedreira das Almas aceitará suas leis. Vasconcelos: (Áspero) Falo com dona Urbana. Mariana: Respondo por ela e por Pedreira. Todas as leis que o senhor representa, não nos poderão arrancar nenhuma palavra, nem um gesto de acatamento às suas ordens. Abra as suas portas das prisões, traga os instrumentos de tortura, revolva e destrua a cidade, derrube as torres de nossa igreja...! Mas de nossas bocas jamais sairá uma única palavra de delação Os mortos sairão das lajes e os impiedosos serão destruídos! (Os soldados entreolham-se, admirados) Que um anátema caia sobre suas cabeças! Que o corpo de meu irmão fique exposto... será uma lembrança viva do seu pecado, da sua indignidade! Vasconcelos: Veremos mais tarde, minha senhora, se não falam. Mariana: O senhor tem as espadas... nós, aquilo que assassinos de sua espécie desconhecem: respeito à liberdade. É o que Gabriel representa para nós. Pagaremos, por ele, qualquer preço! [...] Mariana: Entre na igreja, diante de seus soldados, e prove que suas leis não são ímpias. Onde está sua justiça para ajudá-lo a transpor esta porta? Onde o poder que o levará até aqueles corpos? Não passam de mortos, disse o senhor! Então, deve ter coragem para insultá-los com sua presença. [...] Se o senhor não suporta, por que suportarão eles? O senhor nos prometeu um túmulo, se revelássemos onde está Gabriel. Gabriel está lá, como minha mãe, caído sobre Martiniano. O senhor nos impôs, como condição da sua opressão, o corpo exposto de Martiniano. Nós só lhe impomos, para a nossa delação, a sua entrada na igreja. Entre e veja o que suas leis fizeram dos homens, depois de terem feito à província, empobrecendo a terra com seus tributos e toda sorte de impiedades! [...] Vasconcelos: Será processada e responderá pelo crime de Gabriel. Mariana: Já estou com as mãos amarradas. Faça cumprir suas leis! Martiniano também estava, como está o povo da Província desde os dias da Bela Cruz. Desde que nossa montanha passou de sesmaria de ouro a pedra para os mortos. Onde está Gabriel? Onde os mortos estão expostos, e os vivos presos nas rochas, sonham com uma terra mais justa. Gabriel é a única saída deste túmulo imenso que seu Governo fez de Pedreira das Almas. Faça cumprir suas leis, já que não pode fazer os mortos reviverem. Este é o nosso preço, senhor. O meu e o seu. O senhor não terá nunca Gabriel, porque matou Martiniano... e eu... porque deixei Martiniano e minha mãe morrerem! Chame seus soldados e entre na igreja! Prove a eles que não teme os mortos. Que pode encarar seus crimes. (Silêncio. Vasconcelos continua imóvel) Governos como o seu, senhor, só executam leis ímpias, mas com braços subordinados ou mãos escravas. Não presenciam nunca a verdadeira imagem de suas vítimas. Se o senhor entrar... (Vacila, fazendo um grande esforço)... naquele rosto desfigurado... que era a própria imagem do nosso sonho... verá a que ficou reduzida a Província sob sua justiça! Só aí poderá saber o que Gabriel representa para nós. Entre!... e Gabriel será seu! Eu também prometo! [...] Mariana: Mais forte do que as promessas é a morte que nos liga à terra. Sinto tudo dentro do meu corpo, como se fizesse parte do meu sangue. As rochas... a igreja... o adro! Gabriel: Mariana! Não podemos passar a vida venerando mortos. Foi para escapar a isso que sonhamos partir. É preciso saber escolher, Mariana. [...] Mariana: Gabriel! Duas pessoas perderam a vida. Não compreendes? Duas pessoas que eram a minha família. Como queres que seja a mesma? Gabriel: Também perdi a minha. Mariana: Há muito tempo. Viveste sem ela. Gabriel: Prometeste uma para mim. Não te lembras. Mariana: Não a este preço. Gabriel: Mas que preço? Foi o próprio mundo de Pedreira que matou Martiniano, como matou minha família. Mariana: Nossos mortos não podem ser abandonados [...] Gabriel: Pedreira! Vista de longe, perdida entre as nuvens, parece uma estrela branca de mármore! (consigo mesmo) O passado é um monstro... que nos acompanha para onde vamos! [...].
Trechos extraídos da peça teatral Pedreira das almas: o telescópio (Agir, 1976), do dramaturgo e escritor Jorge Andrade (1922-1984). Veja mais aqui, aqui e aqui.

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