OS MILAGRES DO PADRE BIDIÃO - Muito se
tem falado a respeito dos milagres praticados pelo Padre Bidião. Eu mesmo nunca
vi um sequer, mas que falam, falam. E muito! Pois bem. Certo dia o pároco
adentra meu escritório e me pede uma bebida. Qual? Pode ser uísque mesmo, vá.
Abri a portinhola da estante, peguei um copo e um litro do uísque que dispunha,
coloquei sobre a mesa e me levantei para ir buscar gelo no frigobar. Precisa
não, vou tomar caubói mesmo, podexá. Retornei e ele me fez pegar outro copo pra
mim. Vamos brindar! Brindar o quê, padre? Seguinte: você é escritor e eu estou
meio enganchado com o meu Evangelho, preciso de você para concluí-lo, acertado?
Padre, ora, o senhor dispõe de gente da melhor cepa, não precisa de mim reles contador
de história pra isso, ainda não sou escritor gabaritado para uma empreitada
dessas, é muita responsabilidade. Deixe de conversa mole, vá, encha o copo,
vamos brindar e virar duma vez. Assim fiz. Brindamos, vira, vira, vira, vira,
vira, vira, virou! Pronto, engoli seco, minha garganta queimou. O da batina nem
careta fez. Outra, vamos lá. O mesmo ritual. Viramos e ele após ingerir a
segunda dose, me puxou mais pra perto e me disse: Preciso de você antes do
livro. Como assim? Seguinte: quando falei com Deus pela primeira vez, pedi
poderes para curar as pessoas. Ele então me mandou pro Tibet e, chegando lá,
disse que eu fosse pra Shangri-lá. Três meses enclausurado, curso intensivo,
aprendi. Voltei ao mundo e consegui curar gente de todo tipo, botar cego pra
enxergar, mudo pra falar, aleijado andar, enfim, tudo me era possível nisso.
Porém, nunca consegui ressuscitar ninguém. Invoquei Deus e disse: Quero
ressuscitar as pessoas. Jesus fazia isso, eu também quero fazer. Quero
ressuscitar as pessoas, desencantar as árvores encantadas, os pássaros
amaldiçoados, tudo que for possível para tonar a vida das pessoas e de todos os
seres de volta ao normal. Deus então me disse: Você tem que encontrar
Gô-noêno-hôdi. Vixe! E onde é que eu acho esse? Você tem que ir lá pras bandas do sul matogrossense ,
procurar a tribo Cadiuéu. Quando encontrar a tribo, encontrará quem estou
falando. Está certo. Só tem um detalhe. Qual, Deus? Não aceite nada que ele lhe
der nem olhe pra filha dele, está ouvindo? Não posso aceitar nada que ele me oferecer
nem posso olhar pra filha dele. Isso mesmo. Posso perguntar por quê? Não,
apenas faça o que eu mando e pronto! Certo, vou anotar isso pra não esquecer. Daí
preciso de você antes do livro. Pra quê? Pra ir comigo. Ora. Ora, nada, já que
você vai ser o escritor do meu Evangelho, terá de ir comigo pro Amazonas. Oxe,
padre! Ora, cadê seus clones? Não importa, você será o escritor, tem que viajar
comigo para poder saber tudo que faço. Além do mais, tem que me lembrar do que
Deus me disse: eu não posso olhar pro... sei lá mais o nome... como é mesmo?
Gô-noêno-hôdi. Isso, tá vendo? Você já aprendeu. Então, vamos tomar outra
talagada desse uísque e vamos embora. Mas, padre. Mas, nada, vamos lá: virando?
Slept! Isso é que é uísque bom. Agora vamos. E saímos, ele amontou no disco
voador e fomos pro Amazonas. Chegando lá: Onde é que fica a tribo dos Cadiuéu?
Ah, é só ir direto aqui que vai bater lá. Seguimos o indicado, uns cento e cinqüenta
quilômetros depois, avistamos uma tribo. Ele aterrissou e perguntou pros
assustados índios: É aqui a tribo Cadiuéu? É, sim. Onde mora Gô-noêno-hôdi? Ah,
é naquela casa ali. Ainda bem que é perto, vamos. Chegando lá. Ô de casa? Sim?
É você que é Gô-noêno-hôdi? Não, eu sou o cabelo dele. Ele mora lá naquela casa
lá longe, está vendo? Estou. Vamos lá. E lá, ao sermos atendidos pelo morador,
o padre perguntou: É você Gô-noêno-hôdi? Não, eu sou a testa dele. Ele mora lá
naquela casa na colina, está vendo? Estou. Vamos lá. E fomos. Ao chegarmos: É
você Gô-noêno-hôdi? Não, sou o nariz dele! Ele mora lá naquela casa ali na
beira do rio, está vendo? Estou. Vamos lá. E assim fomos de casa em casa. Já
tínhamos passado pela casa do queixo dele, do pescoço dele, da mão direita
dele, da mão esquerda dele, do bucho dele, do umbigo dele, das catotas dele, do
rego da bunda, das costas, dos colhões dele, do furico dele, da bimba dele, das
coxas, pernas, andamos que só a má notícia, horas sem descanso, enfim, quando
chegamos nos pés dele, um chulé da porra, foi aí que o último disse: Ah, ele mora
aí em frente, pode ir que ele está lá. Aí ele se virou, bateu palmas e de lá
dentro uma voz grave e potente disse: Pode entrar. Quem é? Sou padre Bidião.
Ah, pode sentar. E o seu amigo? Ah, é o escritor que acompanha as minhas
façanhas para concluir o meu Evangelho. Ah, tá.
Ele, então, acendeu um cachimbo: Quer uma cachimbada? Não, obrigado. Não
me faça desfeita, dê uma cachimbada! Não, obrigado. Então, vamos fumar um
pascaio do bom. Vamos, dê uma tragada aí no meu pascaio. Não, obrigado, não
fumo. Vamos, padre, tome uma tragada que você vai ver estrelas e o céu todo,
vamos! Não, obrigado. Hummmm. Você é esperto, já sei quem mandou você aqui.
Diga o que quer! Quero ressuscitar as pessoas! Como? As pessoas quando
morrerem, eu quero chegar nelas e ressuscitá-las! Ah, sim. Ô minha filha, traga
aquele pente especial. A filha veio, o padre baixou a cabeça, olhos no chão e
bateu no meu joelho para não vê-la: Está lembrado? Estou padre. Não olhe pra
ela! A moça veio, entregou o pente ao padre. Ele de olhos baixos permaneceu:
Obrigado. Quando ela saiu, ele agradeceu ao Gô-noêno-hôdi. O que você quer
mais? Ah, quero desencantar todas as coisas encantadas, árvores, pássaros,
rios, tudo! Ah, você quer desencantar tudo? Sim. Ô minha filha, traga aquela
resina especial que mandei você guardar. A moça reapareceu, baixamos as vistas,
ela entregou a resina ao padre Bidião e agradecemos. Certo, Gô-noêno-hôdi,
obrigado. Mas tem uma coisa! Diga, padre. Como eu sei que está me dando as
coisas certas? Vamos fazer um teste? Vamos. Ô minha filha, mande buscar aquele
morto que morreu agorinha lá na esquina. A moça foi, daqui a pouco volta com
vários índios trazendo um homem morto. Pronto, aí está o morto, penteie o
cabelo dele pra testar. O padre foi, penteou os cabelos do defunto e logo ele
abriu os olhos e os índios pularam de alegria. Está satisfeito, Bidião? E como
eu sei que vou poder desencantar as coisas? Tá certo. Ô minha filha, mande
buscar aquela pedra grande que está lá no meio da rodagem que quero ela aqui agora.
A moça saiu, daí a pouco, voltou com um bocado de índio carregando uma enorme
pedra. Pronto, está aí, passe a resina para ver o que acontece. O padre
levantou-se, passou a resina e a pedra começou a se mexer, virou uma árvore que
cresceu, cresceu tanto no meio da sala que arrombou o teto não parando de
crescer até sumir lá nas alturas da nuvem. Pronto, Bidião, está satisfeito?
Agora estou. Muito obrigado, agora preciso cumprir minhas missões. Inté mais
ver. Inté. Quando saímos, ouvimos Gô-noêno-hôdi rgitar: Ô minha filha, corra
atrás do padre e entregue isso a ele. Aí corremos mais, pé na bunda da poeira
levantar atrás, a moça gritando, a gente mais depressa, ela mais ainda, até que
o padre tropicou e viu o pé da moça: Pronto, fodeu. Ela, então, disse: Todo
mundo que olha pra mim me deixa grávida e morre. E como desfaço isso? Você só
se salvará se fizer amor comigo. Oxe! É mesmo? É. De verdade? É. Então, peraí.
Virou-se pra mim, agora fodeu Maria-preá, vai mais pra lá que vou emprenhar de
verdade essa moça lindíssima, não se vire, nem veja, viu? Certo, padre, mande
ver. Aí ele foi se chegando à moça, levantou a batina, encostou-la numa árvore
e mandou ferro nela, no maior gemido de ais e uis, dela gritar, berrar, se
esfolar e gozar ruidosamente, dele cair duro no chão. Nessa hora corri pra socorrê-lo.
Estou bem, estou bem. Foi um gozo da porra. Agora ela está prenha de verdade.
É, agora você tem que morar comigo. Sim, vou morar, só que agora vou cumprir
minhas missões, final do mês estarei aqui pra gente se casar de verdade e criar
nossa prole. Está certo. Assim, entramos no disco voador, ele me deixou em casa
e perguntei: Agora o senhor vai cumprir suas missões, boa sorte! Nada, agora
não, vou voltar lá, dou outra peiada na linda cadiuéu pra depois cumprir as
misssões. E assim foi. Ele ressuscitava e corria na tribo, trepava e voltava;
desencantava um, retornava lá pra índia adorada, dava bimbada nela e retomava
com as missões, indo e vindo, de instante em instante, a ponto de parar sobre o
meu telhado e gritar: Ô meu escritor! Quando eu enjoar da indiazinha linda, eu
venho aqui pra você trabalhar no meu Evangelho viu? Faz tempo que ele não
aparece, deve estar salvando muita gente e se aproveitando pra dar uma sapecada
boa na sua nova paixão. (Recriada a partir da lenda Gô-noêno-hôdi, extraída da obra Religião
e mitologia cadiuéu (SPI, 1950), do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro). ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO
TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá
especiais com a música do pianista, maestro e compositor Marlos
Nobre:
Various pianoworks & Concerto Armorial n 2, op. 98; da cantora e
compositora Leila Pinheiro: Meu segredo mais sincero, Leila
Pinheiro do Brasil & álbum com seus grandes sucessos; do cantor,
compositor, maestro e arranjador Francis
Hime:
Concerto para violão Modinha, Concerto para violão Ponteio, Fantasia para harpa
e orquestra e Sinfonia para o Rio de Janeiro de São Sebastião; e da cantora Clara
Redig
interpretando Embarcação, Frevo nº 2 do Recife, Valsa Rancho, O amor e a rosa,
Trocando em miúdos & Preconceito. Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – Falta
sexo. As pessoas têm levado tudo tão a sério que a maioria já se esqueceu como
o cinema talvez tenha sido inventado simplesmente para que possamos assistir
melhor – e mais vezes – a nossos wet dreams prediletos. Será que o máximo que
merecemos é brincar de vestir Halle Barry de Mulher Gato? Por favor. Trecho
do artigo Sexo (Bravo, out/2004), do jornalista Sérgio Augusto de Andrade. Veja mais aqui.
EDUCAÇÃO PÚBLICA - [...] até uma criança sabe que se
uma formação social não reproduz as condições da produção ao mesmo tempo em que
produz não conseguirá sobreviver um ano que seja. A condição última da produção
é, portanto a reprodução das condições da produção. Trecho extraído da obra Aparelhos ideológicos
de Estado (Graal, 1998), do filósofo francês Louis Althuser (1918-1990), que na sua
obra Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (Presença 1970), reafirma que: [...] Designamos por Aparelhos Ideológicos de
Estado um certo numero de realidades que se apresentam ao observador imediato
sob a forma de instituições distintas e especializadas...(a ordem pela qual as
enunciamos não tem qualquer significado particular): O AIE religioso (o sistema
das diferentes Igrejas), o AIE escolar (o sistema das diferentes escolas
públicas e particulares), o AIE familiar, o AIE jurídico, o AIE político (o
sistema político de que fazem parte os diferentes partidos), o AIE sindical, o AIE
da informação (imprensa, rádio-televisão, etc.) [...] Ora, é através da aprendizagem de alguns saberes práticos
(savoir-faire) envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe
dominante, que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma
formação social capitalista, isto é, as relações de explorados com exploradores
e de exploradores com explorados. Os mecanismos que reproduzem este resultado
vital para o regime capitalista são naturalmente envolvidos e dissimulados por uma
ideologia da Escola universalmente reinante, visto que é uma das formas
essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideologia que representa a
Escola como um meio neutro [...]. Veja mais aqui e aqui.
DE PROFUNDIS - [...] Chamamos
a época em que vivemos de utilitária, mas a verdade é que não sabemos usar praticamente
nenhuma das coisas de que dispomos. Esquecemos que a água limpa, o fogo purifica
e que a Terra é a mãe de todos nós. Em consequência, nossa arte é da lua e
brinca com as sombras, enquanto que a arte grega é do sol e trata diretamente
com as coisas. Tenho certeza de que há pureza nas forças mais elementares e
quero voltar a elas e viver em sua presença. Todos os julgamentos julgam a
nossa vida, assim como todas as sentenças são sentenças de morte – e eu já fui
julgado três vezes. Na primeira, saí do banco dos réus para a prisão, na segunda
para retornar à prisão, na terceira para passar ainda dois anos no cárcere. A sociedade,
tal como a fizemos, não tem nenhum espaço para me oferecer, mas a natureza cuja
doce chuva cai tanto sobre o justo quanto sobre o injusto terá covas nos
rochedos onde poderei ocultar-me e vales secretos em cujo silêncio poderei
chorar sem ser perturbado. Ela encherá a noite de estrelas para que eu possa
caminhar na escuridão sem tropeçar e fará com que o vento apague as minhas
pegadas para que ninguém possa ferir-me. Ela me purificará em suas águas claras
e curará meus males com suas ervas amargas [...]. Trecho extraído da
obra De profundis & outros escritos
do cárcere (L&PM, 1982), do escritor e
dramaturgo britânico Oscar Wilde
(1854-1900). Veja mais aqui, aqui e aqui.
É ISTO UM HOMEM? – [...] Pois imaginem agora um homem a
quem, além de suas pessoas amadas, roubem-lhe também a casa, os costumes, as
roupas, tudo, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, reduzido ao
sofrimento e à necessidade, vazio de dignidade e de juízo, porque àqueles que
perderam tudo ocorre que se perdem a si mesmos [...] Pois imaginem agora um homem
a quem, além de suas pessoas amadas, roubem-lhe também a casa, os costumes, as
roupas, tudo, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, reduzido ao
sofrimento e à necessidade, vazio de dignidade e de juízo, porque àqueles que
perderam tudo ocorre que se perdem a si mesmos [...]. Trechos extraídos da
obra É isto o homem (Rocco, 1988) do químico e
escritor italiano Primo Levi
(1919-1987). Veja mais aqui.
A FOME & SUAS
CONSEQUENCIAS - [...] Minha alma desceu fuindo no buraco negro de
seus olhos. Eu e meus convidadeos. Eu e minha falta de assentos. Eu e minhas
aspirinas. Nos meus quarenta em madeira de lei, escondida selva onde ninguém
pudesse tocar. Tomaram a voltar. A cada visita, meu coração se aquietava
vendo-os entrar sem licença, mas submissos. Uma noite tentei perceber se
ficavam nos mesmos lugares. Não havia como, eram muito parecidos e se
confundiam em uma só entidade, mas sabia, sem que ninguém tivesse me avisado.
Jamais lhes dirigir a palavra, nem procurar em seus olhos sinais de humaniadde.
Deveria fechar o corpo, precaver a alma, andar como um domador entre feras. Via
em um conta uma mulher a enterrar bebês, outra a entregar os filhos em
orfanatos. Adiante, um enforcado, um tuberculoso, um suicida, uma desonrada. E
a companhia vinha espumando ódio. Indignada, nos meus quarenta anos em madeira
de lei sem regra, eu mal dava conta das aspirinas. Quanto mais da marca do
vinho [...]. Trecho do conto A fome
(Cult, janeiro 2003), da escitora, jornalista e tradutora Neuza Paranhos.
A ARTE DE FERNANDA MONTENEGRO
Veja mais:
&
INK IS MY BLOOD, APOLLONIA SAINTCLAIR
Imagens da trilogia
Ink is my blood (Tinta é o meu
sangue) publicada da artista, ilustradora e desenhista erótica Apollonia
Saintclair. Veja mais aqui.