O TRAUMA DA
MOÇA (Foto
Acervo LAM) – Brunilda acordou feliz com as suas dezesseis primaveras. Ela ganhou
de presente nesse aniversário aquilo que desejava como a razão pra sua própria vida:
um telefone celular novinho. Era o desejo de um aparelho sofisticado e assim o
foi. Custou os olhos da cara do pai, mas sua vontade foi satisfeita. Agora ela podia
conversar, filmar, fotografar, ouvir música, baixar e enviar arquivos, enfim,
era tudo que precisava para ser feliz. A sua felicidade dependia disso. Agora
sim, ela podia dizer que estava à altura das amiguinhas, não mais a última do grupinho
a se atualizar na moda. De certa forma, entendia porque o pai, quando estava em
casa nos últimos dias, fazia contas e mais contas. Devia de ter comprado numa
valsa interminável de não sei quantas prestações, isso não importa, não vem ao
caso, o que importa mesmo é que estava exultante por estar na moda e agora esquiparada
às colegas do seu rol de amizade. Já se sentia excluída, infeliz e um nada de
gente. Agora não, agora era gente de verdade. E foi se arrumar com suas roupas
de grife combinado com aquela novidade. Podia agora estufar o peito e dizer:
estou na onda. E se arrumando já pensava em como chegar pra turma da classe e
exibir-se com aquilo que a traria de volta à imponência de ser gente de posse,
gente fina e não uma pé rapado como estava se sentindo nos últimos tempos.
Agora sim, agora ela podia ir fazer o trabalho escolar com dignidade e altivez,
aproveitaria para mostrar pra turma do colegial o seu presente. O trabalho era
uma coisa que desgostava, porém era o seu momento de se mostrar. Trabalho em
equipe, hummmmm, isso lhe causava certa antipatia e mal-estar. Por que? Ninguém
até agora lhe explicou direito a razão de se estudar literatura e ter que ler
um texto de mais de cem anos, um tal de O espelho, de um certo escritor Machado
não sei que lá, que ela não sabia quem era e que vivia num tempo que não era o
dela, não tendo nada que ver com a sua vida, nem com seus sonhos. Ela já não
gostava de ler e vinha essa obrigação forçosa de que tinha que ler e
interpretar! Coisa mais sem propósito para ela isso de ter que ler, pensar e
adivinhar o que o tal escritor queria dizer, isso é muito chato pra ela. Ficava
aborrecida com isso, mas destá, ela preferia que fosse uma letra de música para
decorar, principalmente se fosse de um funck novo, ou alguma poesia romântica.
Mas os da escola? Tudo chato. Pra que estudar? Para que ler literatura, tudo
uma velharia, passado, ela queria viver o presente, isso sim. Essas coisas do
colégio são tudo chatas, os professores uns porres e os assuntos piores ainda.
O que tinha a ver com a vida dela equações, fórmulas, leis, essas coisas tudo
uma chatura da braba. O que é a vida? Para ela, com certeza, a vida não era
nenhum dos conteúdos ministrados na sala de aula. Pra ela, viver é cantar,
dançar, comprar, passear, ficar, curtir os amigos no shopping ou no cinema, nos
barzinhos, nas festinhas e, sobretudo ficar e, se der certo e firme, namorar
com um garoto lindo que será seu príncipe encantado para sempre. Antes disso,
só beijar na boca e ficar muiiiiiiito. Ah, ela resolveu dar um chute na
chateação e se arrumar melhor pra mostrar o seu presente pra galera, desfilando
suas grifes, se mostrando presente e no ranking da moda. Foi aí que ajeitou-se
toda, pôs o par de fones no ouvido e saiu dando um tchau breve pra mãe.
Apressada, abriu e fechou a porta, livrou-se do portão e já na calçada saiu
embalada com o som que rolava nos fones, curtindo o último lançamento dos
funkeiros. Lá se ia contente e maravilhada na calçada da rua pro ponto pegar a
condução, acompanhando a marcação da música, quase já coreografando com o andar
a dança do seu universo, seu mundo, não via ninguém nem nada, só a música, seus
sonhos, seu momento de felicidade. Nem deu conta de uma motocicleta parando ali
perto, quase na sua frente e o passageiro descer da garupa e se dirigir até
ela, assustando-se com a aproximação. Nem deu conta da mãozada que lhe deu de deixá-la
estendida no chão. Três dias depois acordava ela na cama de um apartamento de
hospital: afundamento craneano, duas costelas e o braço esquerdo fraturados, o
olho esquerdo fechado e o pau da venta inchadíssimo, hematomas e escoriações.
Quando tomou conta da situação viu sua mãe chorosa, seu pai aos pés da cama,
seus dois irmãos encostados na parede, tudo muito triste. Ela olhou para cada
um, olhou do lado e quando ousou falar, sentiu dificuldade. Conseguiu balbuciar
esforçando-se: - Cadê meu celular? Ah, foi aí que tomou ciência: fora assaltada
e espancada. E o seu presente de aniversário, no assalto, o dono levou. Um pranto
inconsolável encheu o ambiente. (Luiz Alberto Machado). Veja mais aqui.
Confira também:
Imagem: a arte da pintora,
desenhista, gravadora e professora brasileira Anita Malfatti
(1889-1964). Veja mais aqui e aqui.
E veja mais: É pra ela, Carlos Gomes, Silviane Bellato, a lenda
munduruci Quando mandavam as mulheres, Neila Tavares, Heloneida Studart, Maria Esther
Maciel, Monica Bellucci, Giuseppe
Tornatore, Piet Mondrian, Edwin
Landseer & Meimei Corrêa aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem Nu, do pintor do Neoclassicismo francês Alexandre Cabanel (1823-1889).