A
CRUZETA NA VOLTA QUE A VIDA DÁ
(Imagem do pintor e ceramista português Manuel Cargaleiro) - Sempre fizera o que, pra ele, era
certo. Amigos e negócios, meio misturados, desde que não causassem prejuízos;
os inimigos, a severidade da lei, inexorável. Pai e mãe, na hierarquia de Deus.
Parentes, segundo lugar. O certo é certo, punhos e ideias; o errado, pra lá.
Nunca arredara de suas convicções: credo e palavra de homem, em cima da linha.
Não trastejava um milímetro que fosse daquilo que tinha por verdade. Tudo na
base do dito e não dito, preto no branco. Conversa mole, dispensada com
descompostura; o acertado, na risca. Viesse com proposta, assuntava da orelha à
pulga, ou avalizava, ou defenestrava. Não havia meio termo. Fosse quem fosse,
ou sim, ou não. Firme. Favores, dentro da licitude mais ajustada; não fosse
assim, negava-se sem cerimônia. Assim fora a vida de João Dáulio, cópia fiel do
seu pai, o Daulião; da mãe, Dona Dilte, apenas respeito. De tão severo nas suas
relações e negócios, angariou antipatias. Amigos ou conhecidos, ou mesmo
desconhecidos que chegasse com ajeitados, bota-fora. Até mesmo o delegado que
pedira um favor, recebeu a negativa inarredável. Não sabia o que poderia vir
daí por diante. Autoridade pra ele, só nos céus e na paternidade; fora disso,
tudo da mesma laia. Quando se dispunha de fazer qualquer que fosse a
empreitada, vestia a camisa, pilha toda, dedicação integral. Nada fora do
prumo. Desde que fosse o certo, tudo; errado, nunca! E assim foi na escola, nas
repartições e estabelecimentos em que trabalhou, até findar administrando os
negócios do pai que se aposentara, rompendo todos os vínculos empregatícios que
tivera. Fechou-se em sua vida e família, recusando convites de clubes de
serviço, instituições classistas e outras representatividades sociais. Assim
foi até os seus sessenta anos de idade: mulher, filhos, tudo na sua
austeridade. Via o que era certo, avalizava; sentia cheiro de pinoia,
descredenciava na hora! A trupe dos desafetos, dia a dia, se avolumava: crescia
a rede de antipatizantes que falsamente maquinavam arapuca. Ele nem aí, só
metia o bedelho pra separar joio do trigo. Até que um dia, voltando pra casa
depois dos negócios, encontrou a mulher morta, estendida no chão. Acudiu, mas
já era tarde. Ela fora envenenada. Investigações iniciadas buscavam
responsabilidades. Inicialmente, deixaram-no à margem das acusações. Mas como
não se conseguia apurar a autoria, chegara a hora do delegado. E o dedo da lei colocou
suspeita sobre ele num inquérito policial que ganhou a torcida de um bocado de
gente. Os do contra foram emprenhar ainda mais o ouvido do delegado que, em
tempo recorde, entregou tudo concluído pra promotoria que foi ainda mais célere
por causa das más línguas fazendo o circo pegar fogo. Dáulio não quis advogado,
tinha confiança na sua consciência e retidão. Deram-no, mesmo assim, ele
ignorou o defensor. E enfrentou audiências, quase preso por desacato ao Juiz; e
seguiu adiante, destemido. Veio o Tribunal do Júri e ele lá: altivez, certeza
de inocente. Condenado por unanimidade. Hoje repassa a vida e se vira pra
dentro de si. Pelas grades vê o dia, perspectivas no horizonte; quando surgem
as estrelas da noite, um mundo de desgraças. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
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Imagem:
Mulher nua, do artista plástico português Artur Bual
(1926-1999).
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