quarta-feira, março 30, 2016

O POETA E A FERA

O POETA E A FERA - Diante do espelho, as cortinas se abrem e a cena surge: é um deserto, quase noite. Uma fera emerge em sua natural emulação, rugindo indômita, impulsiva, indócil. Valendo-se apenas do seu instinto, sabe-se que ela é imprevisível com seu ímpeto selvagem, sua força devastadora. Para ela, não há certo ou errado, precisa viver. E para isso, segue à caça, predadora, à espreita da presa, afiando as garras, aprontando o bote. Quando surgem caçadores que a querem acoá-la, reprimí-la, coagí-la e abatê-la, ela se defende e reage causando danos irreparáveis, afora pavores e calamidade assustadora. É de causar pânico estar diante dela, porque não se sabe quando mansa saciada, ou quando feroz faminta e sedenta. Diante dela está o poeta com sua estatura vulnerável, desprotegido e desarmado. Não há saída, o confronto é iminente. Se o pânico prevalecer, ele haverá de correr até ser alcançado e, inevitavelmente, devorado. Se houver confronto direto, sabe ele que estará em desvantagem e, fatalmente, será abatido. Desesperar, não; precisa sacar do ensinamento: desespero é falta de imaginação. Só resta ao poeta encarar, buscar no acervo de seus recursos intuitivos e intelectivos, a sua poderosa criatividade para o enfrentamento. Lançando mão desses recursos, torna-se cônscio de que há a possibilidade de dominá-la, não pela força porque está ciente de sua inferioridade física, porém de sua inata criatividade e ciência de que a sua vida foi feita para superar tantos quantos obstáculos. Toma, então, a iniciativa de não recuar, nem avançar, pois sabe que ela está pronta para o que der e vier. Resta-lhe tomar pé da situação, imaginar todas as possibilidades e ter nas mãos todo território ao seu redor. Teve, por isso, de buscar dentro de si a força jamais cogitada, o poder nunca conscientemente revelado e a sabedoria latente sequer imaginada e mais que exigida para momentos de extrema delicadeza, e buscar saída praquela encurralada. Apesar de temeroso, manteve-se altivo diante da iniciativa dela de ficar rondando pra lá e pra cá, sempre ao seu redor. Ele então cravou seus olhos nos olhos dela e sem hesitar, nenhum gesto brusco, nenhum recuo, mantendo-se sem ceder espaço algum, mesmo quando ela rugia ferozmente, vigilante irredutível, demonstrando estar pronto para o combate. Depois de algum tempo insistentemente sondando suas fraquezas e procurando seu vacilo, ela arqueou seu corpo e pôs-se em posição de descanso, um ardil para encontrar o momento propício para seu ataque. Assim permaneceu por um longo período, percebendo-se que não estava faminta, nem no cio. Com isso, o poeta tomou a iniciativa de ir até ela, ao que pôde perceber sua atenta desconfiança, enrijecendo seu corpo com a menção de levantar-se, acomodada ainda nas patas arqueadas no chão. Ele aproximou-se cuidadosamente e passou-lhe a mão, fazendo um carinho em seu dorso. Alisando-a com voz afável, recitou-lhe um poema com versos do seu mais profundo íntimo e, ao que parece, tocou o coração da fera. Aos poucos ela relaxou e até chegou aos cochilos, acostumando-se com a presença amável dele. Assim ficaram por horas, dias, meses e anos, a fera amansada e amestrada pôde se satisfazer e o poeta se realizar, como se fossem um só: um ao outro, não mais antagônicos, agora complementares, reciprocamente, irmanados. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


Imagem: a arte da artista plástica italiana Mariarosaria Stigliano.

Veja mais Cantarau, Thiago de Mello, Paul Verlaine, Francisco de Goya, Tracy Chapman, Melanie Klein, Chico Buarque, Vincent Van Gogh, José Celso Martinez Corrêa, Warren Beatty, Méry Laurent & Paulo Cesar Barros aqui.

CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: desenho da artista plástica Leila Nogueira.
Veja aqui e aqui.


PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

  Imagem: Foto AcervoLAM . Ao som do show Transmutando pássaros (2020), da flautista Tayhná Oliveira .   Lua de Maceió ... - Não era ...