A CARTA DO
BARBEIRO
Luiz Alberto Machado
- Valha-me, Nossa Senhora! Sangue de Cristo tem poder! -, exclamava
o entusiasta Ocrídio, católico fervoroso, preto bom, metido numa situação assaz
desagradável, recorrendo à santa de sua devoção. De tão devoto que era, beijava
sempre o medalhão que lhe fazia volta no pescoço, com uma insígnia de Nossa
Senhora Aparecida, sua salvação nas horas deprimentes. Há anos em
Alagoinhanduba, Ocrídio, um sujeito calmo, pacato, bulia com todo mundo,
mangava de todos, aparando barba, cabelo e bigode de seu dileto povinho. O
salão do barbeiro já era ponto de encontro para alguns desocupados que viviam
de trocar pilhérias a torto e a direito. Sua clientela era gente simples do
lugar, afora alguns abastados que prestigiavam o seu labor, levando um pitaco,
uma fofoca, uma anedota ou coisa que valha. E quando anoitecia, ele
expulsava-os na hora de fechar, isso sempre depois das dezenove horas, visto
que era hora da santa missa na matriz. Logo cedo, por volta das seis da manhã
de todos os dias, lá estava ele no batente esperando qualquer cabeleira cristã
necessitando de formosura.
- Veja se não é o Roberto Carlos! -, era o autoelogio dele pelo
excelente trabalho realizado em Pé-de-ferro, Tranca-Rua, Zé Mouco, Luiz Cocó ou
Pedim do Padre e em outros resenheiros dos acontecimentos e traquinagens,
sujeitos ogros como os tais assíduos que desejavam se aformosear com o trabalho
dele, desbastando as cabeleiras, barbeando fachadas rudes, aprumando os
bigodes, enfim, arrumando a pose dos feiosos que queriam uma boniteza que a
vida não queria contempla-los. Claro que não escapavam de uns caminhos de
ratos, para-lama dianteiro de fusca contornando as orelhas, uma costeleta maior
que a outra, um redemoinho complicado na beira da testa. Tinha nego até que
saía com o cabelo espichado mais parecendo arame em pé. Ou então enfezado pelo
cabelo bombril mais enrolado que antes numa tufa de dar dó. Ninguém é perfeito.
Isso com a perícia de trinta e tantos anos na profissão, ajeitando as mais
insólitas cabeças do lugar. O certo é que mangavam dele o tempo todo, pelo
distinto crioulo possuir guardada, a sete chaves na carteira, uma foto sua da
juventude. Nessa foto ele se apresentava com uma daquelas arupemas na cabeça,
moda da época dos Jacksons, anos setenta, com uma costeleta emendada de um lado
a outro, um cavanhaque cheio de bode velho, sobrancelhas rentes uma na outra,
um Don Juan preto, soçobro das moçoilas sem dono.
Ninguém nunca reclamara da meia sola na cabeleira no dia em que
ele estava doido para molhar o biscoito com a escolhida do seu harém. Todos
compreendiam suas agonias mais assanhadas. Ademais, tudo sempre era realizado
sempre na maior tranquilidade e dedicação, nunca se excedendo nem se metendo
com rusgas para não levar desaforo na lata.
Só uma vez a sua parcimônia fora assaltada, sendo suspensa quando
um galego oriundo dos pampas, todo cheio de prosa, parecência com artista de
cinema e tudo em cores, com mocinho e uma porrada de bandido, após haver
Ocrídio realizado o serviço de aparar barba, cabelo e bigode no dito cujo. O
desaforado do visitante achou de provocar situação vexatória, quando olhou uma
donzelinha que se encontrava no recinto e deu-lhe a maior cantada.
- E essa aí, quanto vai na bolinagem?
- Peraí, meu, essa aí é minha filha.
- Se isso aqui é zona do baixo meretrício, aqui é tudo puta!
- Qué isso, meu, ofendeu minha religião, vai ter cacete na gaia.
- Qué isso, tchê, puta é para foder, não é crucifixo, não!
- Vai levar porrada até amanhã de manhã!
E o sangue do gaúcho desceu parecia que cumeeira abaixo, rolando
pela calha, até melar o chão daquele meretrício. Sujeito folgado aquele, soltar
lorota logo com quem. Foi um bafafá dos grandes, Ocridio absolvido pela honra
de pai. Passou e nada mais, até então, manchara sua reputação.
Quando não tinha o que fazer Ocrídio gostava muito de desenhar
letras na folha de papel pautado que guardava sempre na gaveta do penteador. Um
calhamaço que já nem tinha tamanho, difícil até de apalpar. Escrevia cartas a
seres imaginários, inventados pela sua baboseira. Horas e horas ali imaginando
cartas ao presidente da República, ao governador do estado, ao prefeito,
requerendo uma aposentadoria justa num futuro próximo, ou saneamento básico na
casa de sua quarta concubina, ou solicitando a Deus uma salvação do inferno em
que vivia para um paraíso tropical de preferência em companhia dumas boazudas
galegonas para não finar na monotonia.
Muitas vezes era surpreendido por uma transeunte simpatizante com
a requerência dalgum trocado.
– Deixa eu chupá tua rôla, Ocride! –, e ele, manhosamente, acenava
para que ela se aligeirasse lá pros fundos, cuidadosamente cerrando as portas
da barbearia, não antes averiguar de um lado a outro se alguém estava
bisbilhotando e, precavido como sempre, suspendia suas atividades
momentaneamente. Diligente, arriava a braguilha e expunha aquele membro preto
nas ventas da requisitante.
– Bora, bora! –, exigia ele logo a felação, esfregando a peia na
cara dela que, sob essa determinação chupava o negão até deixá-lo esporrar nos
seus peitos. Ao cabo de dez ou quinze minutos ele encerrava a safadeza, soltava
uns peidos, metia a mão no bolso e tirava algumas cédulas como pagamento pelo
bom serviço de felatriz, dando-lhe uma palmada no glúteo dela com uma risadinha
maliciosa.
– Venha amanhã de novo que eu te dou mais, tá? Num se esqueça! –,
e empurrava de porta afora, dando um tempinho para reabrir o estabelecimento.
Alguns minutos depois chegava Bico-de-Bule inquirindo:
- Tava fechado, nego? -, bisbilhoteiro safado àquela hora metendo
focinho na intimidade dos outros.
– Não, tava orando a Deus! -, todos acreditavam, um beato preto,
cheio de munganga, rezando no meio do expediente comercial, pudera, balançava
até os colhões do padre na hora da missa, ora.
Mesmo com toda devoção, Ocrídio não gostava de alguns mandamentos
que julgava em sua modesta observação, que deveriam ser substituídos por outros
mais apropriados, como o de não adulterarás e não cobiçarás a mulher do teu
próximo, por, por exemplo, não fofocarás jamais nem te meterás com a vida do
teu próximo. Aí sim, tudo bem. Além desta exceção ao postulado bíblico, uma
outra também andava de longe de ser respeitada por ele quanto alguns pecados
capitais.
- É pecado demais para ser cumprido os mandamentos todos! -, defendia-se,
deslizando em alguns deles.
- É, Deus é tão bom que nem vai reparar um deslizezinho desse fiel
aqui mais fiel do mundo! –, e adorava o Cântico dos Cânticos de Salomão,
recitando-os invariavelmente aos incautos comparecentes, até que o Padre Quiba
teve de chamar-lhe atenção para outros livros na Bíblia Sagrada.
Pois sim, o nego era perdido, sabia-se que às escondidas gostava
mesmo era de um bombo alta hora da noite de sexta-feira, todo de branco e cheio
de pacutia, num xangô arrepiado, remexendo esqueleto e se dizendo linha de
azeite no meio da cerimônia.
No mais sua vida era dentro do normal, tirante, claro, os
sobressaltos naturais que acometem a vida de qualquer sujeito.
- Ô, Ocride, compra uma máquina de lavá, eu num guento mais tá
enxaguando e lavando tanta roupa, meu véio! -, era Neuma, a matriz esponsal
dele, crente da igreja presbiteriana, exigindo uma lavanderia elétrica para dar
vencimento na lavagem de pano dela. Ocride, um maloqueiro sabido, choramingava
com aquela solicitação dela na frente de todo mundo, prometendo logo adquiri-la
assim que a situação melhorasse. Enrolão era mesmo e a Neuma saía com a mesma
cara de santa.
Lembrou-se do tempo em que ela era ciumentíssima e, para evitar as
suas escapulidas, aprendera de coibir suas puladas de cerca, prendendo uma
fralda nele, ao invés de cueca, com umas presilhas irremovíveis. Era uma
humilhação. Isso porque quando ele ia investir na mulher alheia e que precisava
de arrear as calças, era a maior risadagem. Por causa disso era uma trabalheira
para fazer o pingolim subir. Ele se danava, mas não perdia a viagem. Graças à
igreja presbiteriana, ela acabara com aquela maluquice, liberando ele para a
mancebia descarada de hoje. Só uma coisa ele ficava chateado com Neuma, mas só
por causa de uma loja sortida que o desgraçado possuía na perna dele, uma
verdadeira pereba de anos que a distinta esposa tratava com asco e que por isso
não lavava meia nem cueca dele, ficando sempre entulhadas por razões que um dos
filhos dissera ser por vingança da traquinagem e da pulverização sexual dele
com algumas alheias. No mais, tirante isso, tudo reinava na santa paz do casal.
Não demorava muito e lá vinha Xandinha,
- Ô meu pretinho, quando é que tu vai trocá aquela televisão
preto-e-branco por uma colorida, hem ?
Aí Ocridio coçava o pixaim e respondia:
- Logo, logo, minha nega, espere que chega já, tenha fé em Deus,
tenha fé em Deus, sangue de Cristo tem pudê.
E lá se ía Xandinha, filial número um do adúltero preto, nega
desengonçada, jeitosa, peituda, reboladeira que deixava o neguim doido para
foder de manhã, de tarde e de noite. A nega era fogo na roupa, quando ele
chegava em casa, ela alisava todo, botava ele na banheira, todo ancho. Não
sabia que ela estava fiscalizando os colhões dele, se boiassem estava frito,
era o maior quebra pau.
- Nego safado, tu tá amocegando rapariga por aí, num tá?
- Juro minha nega, tô não. -, era ele procurando assunto na ideia
pra sair dessa, o bicho dava tanto salto solto, meio mundo de tapiação,
argumento besta e proseado mole pra cima da encrenqueira, com o fito de
amolecer a ruindade dela. Brincasse com ela não, era a gôta!
Mais um pouquinho chegava Dorinha, uma alvinha matuta que fora
descabaçada aos quinze anos pelo enxerido e requeria dele dinheiro para comprar
cominho e tempero pro almoço. Ele metia a mão no bolso e sacolejava por dentro
a peia pra que ela visse que ele iria almoçar naquele dia com ela, não antes
dar-lhe um beliscão nas nádegas.
– Sai pra lá, nego safado, tô vendo que tu quer safadeza, né? –,
desleixava ela enquanto ele todo pabo, dava o dinheiro e mandava que fosse
embora até mais tarde, quando iria se amufanhar nos cobertores dela.
Daí mais um pouco era a Nega Tisiu, uma magricela, terceira filial
sentimental do pombudo preto, gasguita e cheia de nove horas, exigente,
reclamando pelo dinheiro da escola dos meninos, deixando-o nervoso, de
abufelar-se todo e na hora, para livrar-se da zanga dela, passava um cheque
alusivo às tais mensalidades escolares dos bastardinhos dele. Mal a chata dava
as costas cagando raio, chegava a quarta, a Lucilena, professorinha rural do
engenho Mameluco que parava na porta a dar chauzinhos para ele com um risinho
tímido e atraente. Toda formosazinha, safadinha, do jeito que ele gostava,
quente que só chaleira pegando fogo, assanhada toda por homem, botava uma gaia
no nego de empená-lo dum jeito do homem já estar corcunda, insinuando levantar
a saia, de tanto que gostava de dar espetáculo no meio da rua. Ocride se
aperreava, dava uns trocados a ela mandando-a embora rapidinho senão comia ela
ali mesmo. Ela insistia, o negão arrastava ela pra dentro e, de porta aberta
mesmo, o povo passando e vendo, ele intrometia a pica na boceta dela numa
trepada agoniante e barulhenta.
- Eita fungado da gota! –, era um curioso que chamava a atenção
daquilo.
- Vá pra porra, seu feladaputa enxerido, arrede daqui, não me
atrapalhe! –, enxotava Ocride qualquer intrometido, não deixando de se
concentrar no coito.
O pior era quando elas se arretavam com a mancebia dele com as
próprias, era uma greve do nego fazer carnaval no meio da rua, reclamando até
que elas suspendessem aquela ordem depois do atendimento de todas as
reinvindicações delas.
– As mulheres tão tudo de boi, tô fudido! Urucubaca braba, meu! –,
era a coincidência mais desagradável, tudo de regra no mesmo período.
Empertigado, ficava ele fulo da vida. Foi com um movimento reivindicatório
desses que Neuma conseguiu que ele fosse ao estabelecimento comercial de seu
Marquito Ladeira e tentasse comprar uma lavadeira elétrica para ela. O
comerciante foi prestativo e apresentou todo tipo de promoções, crediários,
valsas, formas de pagamento, tudo, mas ele constatou não possuir dinheiro
suficiente para comprá-la naquela hora. Crédito ele possuía visto nunca
inadimplir, sujeito correto, de uma idoneidade a toda prova; justo, probo,
severo de palavra, não arredava um só milímetro da retidão, pra se ver mantinha
uma conta corrente com cheque especial na instituição bancária oficial do país
há mais de vinte anos, nunca extrapolando os limites seus, nem pagando juros de
nada, resgatando qualquer duplicata um dia antes do vencimento, cabra direito
até dizer basta, honrando seus compromissos no peito e na raça, sustentando uma
mulher e quatro amásias nunca faltando nem deixando faltar nada para qualquer
delas, tudo morando em casa própria, de propriedade dele, que ainda possuía
mais umas cinco casas alugadas a inquilinos direitos, oito quartinhos na chã do
Buraco Fundo, também alugados e dois prédios onde se instalavam dois
estabelecimentos comerciais, tudo fruto de uma herança deixada pelo seu
distinto pai, mais uma questão judicial trabalhista contra a Usina Mequetrefe,
onde trabalhou por longos doze anos sem carteira assinada; três anos como
guarda freio da Great Western; cinco anos como enfermeiro, curando todo mundo à
base de óleo de pau d’olho; e cortando cabelos, barbas e bigodes, administrando
seus bens e rezando na missa todo santo dia, a exceção da sexta-feira, quando
escapulia para ninguém saber onde. Desconfiava-se, pois, que se esbaldava no
xangô, coisa mais tarde constatada.
Depois da missa diária, ele saía de casa em casa, fiscalizando o
que faltava, partindo para dormir na última a ser visitada. Era um sorteio todo
dia, não passando nunca mais de cinco dias sem esquentar o colchão da matriz e
das filiais. Tudo corria na calha. Mas Ocrídio não desistiu de comprar o
eletrodoméstico requisitado pela matriz, visto que ela ameaçava separar-se dele
caso não findasse com a mancebia desastrada que ele mantinha às claras com as
outras ditas vagabundas. Por causa dessa quizília ele suspendeu as cartas que
gostava sempre de escrever e meteu-se numas contas sem fim para adquirir o que
Neuma exigia. E saiu juntando algumas economias feitas e seguiu para a loja do
seu Marquim. Quando viu o juro cobrado pela financeira quase caiu de costas.
Arregalou os olhos e mandou o comerciante para a puta que o pariu, saindo puto
da vida com aquilo. Meditou bastante, ficava torcendo para que seu Juvêncio
Quintão, ou seu Julio Mariano de Pindorama, ou o Nezito Guaxuma, ou Totonho de
Jacaré das Virgens, ou sei lá quem mais, viessem fazer a barba, cabelo e bigode
porque sempre sobrava uma gorjeta gorda para ele. Eram todos homens ricos,
idolatrados por todos na cidade, duma bondade extraordinária e que facilitaria,
sem sombra de dúvidas, a vida dele. Cadê que não davam nem as caras por ali?
Aperreou-se mais com a nova greve de Neuma, ameaçadora a ponto de quase perder
o juízo, não podia perder nada do seu curral sexual, todas eram mantidas
religiosamente em dia pelo obstinado poligâmico. Foi aí perdendo a paciência,
pegou mais alguns trocados e seguiu para a loja do seu Marquim, comprando numa
valsa sem fim o tal eletrodoméstico. Jogou as contas pro ar e levou ele mesmo
na boleia da camionete a bicha, novinha em folha, para a mulher. Arreganhou as
portas, entrou de casa adentro arrastando o móvel e chegou na cozinha e mandou
o tal do instalador efetuar as ligações. Quando o profissional encerrou a
cerimônia explicativa do modo de usar a coisa toda, ele botou umas moedas na
mão do sujeito e mandou-lo embora, chamando a mulher pra ver a maravilha. Ela
encheu os olhos d’água. Ele foi se chegando, ficou esfregando a peia na bunda
dela enquanto ela conferia o funcionamento do aparelho. Ele levantou-lhe a
saia, arreoua caçola e empurrou a bimba no cu dela, debruçada sobre a máquina
de lavar.
- Tá me rasgando, nego! Ai! Ui! Tá doendo! -, reclamava Neuma.
- Calma, porra, já vou gozar! Um!hum!hum! -, impado danado, ela se
contorcendo, ele empurrando a macaca, ela ai, tá doendo, calma, ai, ui, foi, é,
isso, ui, eita! Danou-se! Deu a gota! Arremedou!
Tô cum cabrunco no couro
Não tenho sangue no olho
Quero mais é ser feliz
Tanto molejo cadenciado
Tanto show rebolado
Do cristão pedir bis
Teve cu, peito e boceta
Pode vir até de muleta
Que empurro o meu perdiz!
Neuma ficara feliz e depois que o marido zarpou para o trabalho,
chamou os meninos e mostrou a felicidade de vê-la funcionando. Botaram logo um
nome na coisa linda: Tozilda. Já era um membro da família. E ficavam horas a
fio admirando a engrenagem dela trabalhando sem interrupção. Ela que estava
atrasada lavou meio mundo de trouxa dos clientes, aproveitou lavou toda a roupa
da casa e para não deixar o aparelho parado, lavou duas vezes tudo de novo.
Passou pela manhã entrou pela tarde, atravessou a noite, enfiando na madrugada.
Lá pelas tantas ela desligou e foi dormir o sono puro dos inocentes felizes.
Entrou dia, semana, meses, Tozilda lá inspecionada por todos,
atração real da residência.
Um final de semana depois, Ocrídio resolveu fazer uma média e levar
Neuma e os meninos para a praia de São José da Coroa Grande. O seu intento era
dar um pé de peru aos familiares, fazendo uma de bacana para aliviar a sua
barra no conceito dos familiares. Ele alugou uma rural e botou todo mundo em
cima quando causou o maior rebuliço da garotada por não deixarem Tozilda
sozinha em casa. Pronto! Levaram a droga para a praia. Deram até banho de mar
nela. Quando retornaram, no outro dia botaram a bicha para funcionar e a danada
nem deu sinal de vida. Não era a mesma desde aquele mergulho. Deu a porra!
- Será que essa bicha tá de greve, também, só faltava essa! -, Ocrídio
quase morre do coração e foi ter com seu Marquim que mandou um técnico
inspecioná-la. O consertador achou por bem encaminhá-la para assistência
técnica na capital. Ocrídio ficou puto!
- Ora, porra! Aqui é tudo incompetente nesta cidade de merda! Tem
que levar para a capital, é? É! Puta-que-a-pariu esta porra de máquina que só
tem conserto na capital. Olhe, esses negócios modernos, sem botão não dá! E pra
quê trinta e duas memórias se eu que vou comprar me esqueço de tudo, imagine
ela com tanta ideia assim!
Depois de muito puxa e encolhe, levaram a desgraçada pro conserto
na capital.
- Eu, que sou eu, Ocridio, devoto de Nossa Senhora Aparecida,
rezador de dia e noite, num vou passear na capital para essa desgraçada ter uma
folga dessa! Ora veja! Também, esse negócio de tecla não dá certo, é muito
fresco e eu sou muito macho. Gosto mesmo é de botão que quando me arreto, faço
ele dá meio mundo de volta do ponteiro rodar bem muito!
Quarenta e cinco dias depois, todo mundo triste dentro de casa,
Tozilda chega como se fosse de novo novinha, funcionando que era uma beleza!
Voltou a ser a alegria da casa.
- Esse negocim assim todo levezinho, num dura nada. Gosto da coisa
pesada, com cardam, aí sim, a bicha dura de se esquecer do tempo. Veja só, a
minha geladeira é que é boa, tem mais de vinte anos e o congelador é todinho de
gelo, eu abro, quebro e já tá a pedra pronta. Esses negócios modernos, a gente
nem vê o gelo no congelador.
Mês e meio depois, começou Tozilda a ter um comportamento
estranho. Foi que deram por falta de algumas peças que foram requeridas por
seus proprietários, até uma queixa fora prestada para uma investigação policial
se ele e os familiares andavam desfilando indumentária nova, roubada dos
clientes assíduos que enviavam suas roupas para lavagem na casa dele. Dois
detetives profissionais passaram mais de mês investigando e constataram ser uma
denúncia vazia, visto que nem Ocrídio, nem matriz, muito menos filiais, nem
seus filhos e enteados desfilavam qualquer roupa diferente da que eles sempre
usavam. Entretanto, descobriram que Tozilda estava andando com um vício feio:
fome. Ocridio então reclamou ao seu Marquim o mau procedimento dela, recebendo
alegação de que deveria devolvê-la pra assistência técnica, o que foi
prontamente efetuado e mais sessenta e dois dias sem a atração da casa.
- Veja só, comprei a fi’a dos sete cancro da peste rodeira, a
vista, a um ladrão dum comerciante sem-vergonha, e agora só dá defeito, botou
as manguinhas de fora de gente ruim, tendo eu, um cidadão ocupado, de pastorar
a danada de noite a dia. Na assistência futucaram ela toda e num resolveram
nada, tenho passado a maior vergonha da vida.
Mais dois meses depois voltou a danada pior do que saíra, agora
não só comia com uma gulodice sem fim, como dava pitaco, assistia novela, saía
rebolando por dentro da casa, um desgosto. Ocrídio mesmo, mais de dez vezes, já
pastorara a máquina que se insurgia no quintal pra lá e pra cá, levando-a de
volta ao seu local de costume. Não dava trégua e até tarde da noite ela ali
assistindo televisão, passeando na praça, botando gosto ruim nas coisas,
ensaiando uma greve, provocando a maior dor de cabeça. Para aumentar seu
tormento, certa noite de lua cheia pairou um dito profeta aclamado na praça em
frente da sua residência, anunciando seus arroubos escatológicos de forma
frenética. Eita! O mundo vai se acabar e Tozilda é o anticristo, sinal do final
dos tempos. O estranho profeta, diziam, curava gente noutras terras, um
Dulcamara que era possuidor de uma panaceia universal capaz de rejuvenescer a
todos, indicando a salvação como dignitário divino e com sua fanfarrice deitava
o espírito-santo-de-orelha mediante aquele povinho crédulo. Irado como todos os
ditos apóstolos bodes de hoje, recitava todos os rifões, adágios, locuções,
anexins, jargões, provérbios, parábolas, máximas, apotegmas, sentenças,
exemplificando a vida farisaica de todos dali.
- “Sabe, porém, isto: nos
últimos dias, sobreviverão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas,
avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais,
ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio
de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos
dos prazeres que amigos de Deus. Foge também deles. Timóteo 2, versículo 3”-,
vociferava imperativamente o tal dermatóglifo em cima do banco da praça. O
intruso insistia na leitura da terceira mensagem de Nossa Senhora de Fátima,
acusando ímpios e fariseus de não darem ouvidos à benevolência do criador,
tornando-o malévolo e vingativo com os moucos da providência divina. Ocrídio
atentamente analisava o que aquele barbudo iracundo dissera, os trejeitos
frenéticos que emitia ao reclamar no megafone as palavras tempestuosas e
difíceis para o parco vocabulário do marmanjo. No maior estardalhaço o tal
haríolo vociferava sobre a vinda do mestre da morte e da sepultura nos próximos
dias, repassando as profecias de São Malaquias, as inscrições da pirâmide de
Quéops, os manuscritos do historiador Masoudi do século X; das transcrições do
Livro dos Mortos; as predições do Monge de Pádua; o eclipse de 11 de agosto; a
grande translação de outubro anunciando a vinda do Leviatã quando Gog destruirá
tudo e por aí vai. Mesmo, assim, do que entendia Ocrídio tudo coincidia.
Realmente, pensava consigo, todos estavam egoístas, tudo para si, ninguém mais
socorria ninguém na hora difícil, no aperto, ninguém dava mais esmola aos
pedintes, tiravam proveito de tudo, uma roubalheira, juiz metido com promotor,
delegado e autoridades em maracutaias; gente assassinada a todo instante, todo
mundo enfiado na cachaça, brigas, arruaças, arengas, vôte! É o apocalipse!
- “Os sete selos! Os sete
flagelos! Úlceras malignas e perniciosas, a besta fera, a morte dos seres
viventes, o sol queimando, os homens comendo a própria língua, terremotos,
relâmpagos, guerras, trovões, vai descer o fogo dos céus e tudo vai consumir!”
-, essas palavras remoíam na sua cachola. E absorto, nem percebia a chegada de
clientes para atendimento, quando acordavam-no dum sonho de olho aberto, os
dele arregalados.
– É o fim do mundo, gente! -, Ocríde estava hipnotizado com os
últimos acontecimentos no Timor Leste, no Paquistão, na Bósnia, no Afeganistão,
o assanhamento dos neonazistas, a carestia, as CPIs do narcotráfico, dos
medicamentos, das corrupções, de tudo; o desemprego grassando, o povo perdido,
polícia roubando, ladrão mandando em tudo, o governo falido, meio mundo de
menino chorando pelas portas pedindo esmola, os ricos quebrando, lojas e mais
lojas fechando as portas, o fiado comendo no centro, todo mundo sem dinheiro, o
Sol torrando a paciência, os rios secando, os bichos morrendo, gente nascendo
todo dia explodindo o planeta de gente e mais gente, árvore nenhuma,
puta-merda, é o fim do mundo mesmo! Foi aí que Ocride apossou-se da caneta e
narrou todos esses fatos, nos mínimos detalhes, para o fabricante da máquina de
lavar. Todo o teor da carta ele mandou uma cópia para as autoridades todas que
tivesse conhecimento. Na missiva estava uma esculhambação velada ao seu
Marquim, chamando a responsabilidade de todos em vender produtos sérios e
perfeitos, reclamando por onde andaria o controle de qualidade naquela hora? Onde
guardar a lucidez numa loucura dessas? E não economizou clamando por Deus por
tanta ignomínia, tanta embromação, tanta enrolação, tudo sacrificando um crente
em Deus e nos seus poderes, numa hora dessas de fim de mundo, - Salvai a mim
que sou santo! Como isso, ele não se deu por vencido, esgueirou-se até sua
casa, arrancou Tozilda à força, saiu com ela pendurada pelos braços, todo mundo
acompanhando a loucura dele, chegou no parapeito da margem do rio seco e
jogou-la dentro da última poça restante da antes caudalosa riqueza pluvial.
Depois disso trancou-se na casa de Neuma por dois dias e ficou matutando a
situação. As palavras do tal pastor martelavam na sua cabeça. Ele pensou,
perscrutou, meditou, fundiu a cuca e planejou uma forma de se salvar. Ficou horrorizado
mais com a televisão que anunciava de instante em instante o dia do fim do
mundo se aproximando rápido. Era notícia de repórteres do mundo todo anunciando
o final dos tempos. Como isso ele apavorou-se, foi até o banco e exigiu que o
gerente dobrasse o cheque especial dele que era de mil reais, o que o gerente,
pela honradez de sua conduta naquela instituição financeira, atendeu
prontamente, não só dobrando, como estipulando um limite no cheque especial
para dez mil reais. Depois desceu no setor de cadastro, requereu um papagaio de
dez mil reais com vencimento previsto para trinta dias, foi aprovado na hora,
zarpou. O abstêmio de sempre chegou num bar, todo mundo empolgou-se, pediu uma
lapada de aguardente, tomou meia dúzia; uma cerveja para lavar, tomou quinze,
ficou bêbado e recolheu-se em casa falando besteiras. Faltavam vinte dias para
o fim do mundo.
No outro dia, foi até o banco, requisitou todos os talões de
cheques que possuia, vinte; sacou tudo com apenas um cheque e guardou os
restantes, levou o saldo disponível, limite de cheque especial e o papagaio,
foi até a agência de um concorrente, abriu outra conta com o dinheiro,
solicitou cheque especial, foi atendido; requereu outro papagaio para mais
trinta dias, aprovado. Saiu todo ancho, tomou uma lapada, ingeriu meia dúzia;
lavou com uma cerveja e bebeu quinze, ficou bêbado e rumou para casa. Voou.
Faltavam quinze dias para o fim do mundo.
No dia seguinte foi na loja do seu Marquim onde este, para se
livrar da bronca exagerada dele, deu-lhe uma tuia de cartões de crédito, azougou-se
e meteu tudo no bolso. Foi até a agência onde abrira a conta, requisitou talão
de cheques, pegou dez; sacou tudo de novo, o saldo, o limite do cheque especial
e o crédito, botou tudo num saco, saiu arrastando e quando chegou num caixa
eletrônico meteu um cartão de crédito, saiu mil reais, ele achou bom, beijou o
caixa, ficou gamado à primeira vista pelo sistema. Empurrou outro cartão, sacou
mais mil reais, saiu empurrando um a um os quinze cartões que ele havia recebido
de seu Marquim, homem probo feito Ocrídio, gozava de um crédito ilimitado.
Meteu-se depois com uns agiotas, num calote danado. Rapou fogo. Foi até outro
bar, pediu uma lapada, tomou meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte.
Ficou bêbado, passou um cheque pré-datado para trinta dias e foi-se. O tempo
passa rápido. Faltavam apenas dez dias para o fim do mundo.
Na manhã do outro dia, namorou um tempão o caixa eletrônico,
empurrou os cartões de crédito, sacou o limite do dia de cada um, jogou noutro
saco, escondeu em casa junto com os outros. Foi prum supermercado, fez um
estandarte de compras, pagou com cartão de crédito, saiu empurrando dez
carrinhos pelo meio da rua e botou em casa. No bar, pediu uma lapada, tomou
meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte e duas. Ficou bêbado e se
recolheu em casa. Faltavam apenas cinco dias para o fim do mundo.
Ocorre que numa cidade interiorana, quando o sujeito inventa de se
meter a extravagâncias, chama logo a atenção. Eis que uns espertalhões e
interesseiros deram de azucrinar Ocrídio. Estava ele numa condição
monopsonística. Livros, santinhos, indulgências, uma nave espacial, o raio que
o parta, a bexiga lixa, o escambau, de tudo estavam aqueles intoleráveis
tentando vender ao coitado. Arre! O nego aboticou os olhos e largou uns
bregues. Escafederam.
Na ressaca seguinte, fez duzentos e tantos jogos na mega-sena;
comprou vinte cartelas de poupa-ganha, trinta de telesena; fez trezentos jogos
na quina, quatrocentos na supersena, meio mundo da loteria federal, jogou tudo
no bicheiro da esquina, na banca da praça, apostou na loteria esportiva, todo
tipo de jogo de azar, pagou tudo com cheques pré-datado para oito dias, pediu
uma lapada de aguardente, tomou meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte
e cinco, tropeçou embriagado, foi para casa, dormiu o sono dos justos. Faltavam
dois dias para o fim do mundo.
- Quero ganhar todo dinheiro do mundo e, depois, jogar fora pros
pobres! Pelo menos no fim do mundo serão felizes! -, e continuou com sua
doideira, foi até o hipermercado da capital, parece que acometido pela síndrome
malthusiana, quando fez uma feira para dois anos, pagou dolosamente com cheques
que deveriam ser resgatados no mês seguinte, arrastou tudo num caminhão fretado
para a casa da matriz. Ainda saiu, arrastou as filiais pelo cabelo, com
bruguelo e tudo, meteu dentro de casa, deu uns bregues nas mulheres, deixou
tudo murcho, juntou tudo na sua arca de Noé. Já no bar, comprou várias grades
de cervejas, caixas de uísques, aguardentes, vinhos, vodcas, gins, licores,
conhaques, vermutes, tudo que endoidasse o danado. Pediu uma lapada, bebeu dez
arrotando sua escatologia; lavou com uma cerveja, tomou trinta. Meio grogue,
pagou tudo com cheques para mais adiante, juntou tudo no caminhão, caiu da
caçamba, lascou a testa, rasgou o quengo, saiu se arrastando e se jogou na cama
totalmente lavado. Faltava apenas um dia para o fim do mundo.
Quando se acordou já era quase nove horas da manhã, faltava apenas
uma hora e quinze minutos para o mundo se findar. Até ali não chegou a ganhar
nenhuma das apostas feitas. Os credores já desconfiavam de seu trambique ao que
ele aos peidos revelou:
- Quando eu ganhar na loteria eu pago tudo, pago tudo mesmo! -, e remoía
para si: “Ora, aquele que possuir
recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu
coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” Lembrou João 1,
capítulo 3, versículo 17.
Acordou-se com o buá das crianças, olhou em volta, a matriz, as
filiais, os dezesseis filhos, tudo junto olhando pra ele. Levantou-se se
encaminhando até o banheiro e arrependeu-se de ter fabricado prole tão gigantesca.
Daquele jeito, pensou em pegar o revólver e fazer feito Tião Amocrácio quando
as três mulheres dele pariram e ele viu o choro das crianças, aborreceu-se,
pegou de um revólver calibre 38 e disparou no caralho para não engravidar mais
ninguém. Pensou mais um pouco, é, o mundo vai se acabar mesmo, pra quê isso?
Já se aproximava das dez horas da manhã havendo, assim, pouco
tempo para espocar dos tempos. Utilizava sempre nas suas horas de dificuldades
a oração por auxílio divino de David, Salmos 25. Levantou-se e do jeito que estava
convocou as mulheres para o quarto de dormir, com os filhos, mandou todo mundo
se deitar e começou a rezar. Depois leu a bíblia, o Apocalipse, os Salmos, dez
padre-nosso, onze creio-em-Deus-pai, pegou um copo de água, colocou sobre uma
mesa com uma toalha branca, quando ouviu o pipôco!
- É agora! Abaixem, vamos dormir para sempre.
Uma barulheira grande! Tiros! Fogos! Vôte, a zoada é grande. Meia
hora depois aquele silêncio.
- Psiu. Ninguém fala. O mundo tá se acabando bem baixinho da gente
nem ouvir. Vamos morrer de barriga cheia.
Foi aí que ele abriu o compartimento onde estavam depositados
todos os víveres previstos, alimentou um a um, comendo do bom e do melhor,
bebericando em silêncio de tudo, gargalharam, mangaram, lambuzaram, macularam,
treparam juntos, maior trupé, ele no meio das mulheres, os filhos tudo olhando,
tudo nu, maior doideira. O mundo vai se acabar! Ficou grogue de bebaço e...
Três dias depois bateram à sua porta. Assustado abriu, era um
oficial de justiça com a polícia que vinham confiscar tudo.
- Que ligeireza!?! Ué, o mundo num se acabou não ou tem isso
também no céu? © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem: arte da pintora, escultora,
professora e artista gráfica e visual brasileira, Leda Catunda.
O Lobisomem
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Ademilde Fonseca, Inezita Barroso & Ronald
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DE AMOR POR ELA