A MORTE E A MORTA
Luiz Alberto Machado
As mãos trêmulas de João Albano seguravam a
xícara de café. Juliana, gasguita e inexcrupulosamente ensaiava severa
reclamação pela procedência dele de haver chegado alta hora da noite. As mãos
nos quartos e a cara de poucos amigos dela, ingresiava inexorável pelando a
alma e a vergonha do sujeito mole. E estava tudo certo, no pensar dele, e
conferindo direitinho ela tinha lá suas razões. Afinal, dera motivos para tanto
vez que chegara exatamente às duas e meia da manhã, oriundo de duvidosa noite.
Por isso ela ampliava aquela lamurienta situação vexatória com alguns dos seus
prediletos palavrões, daqueles capazes de destronar Deus e o diabo num tom bastante
provocador. Eram xingamentos, ameaças, lamúrias, gastando saliva sob a honrosa
justificativa de desprotegida na situação, decepcionada com o comportamento
dele agora, depois de tantos anos casados. Aquilo tudo remoía por dentro como
uma cólica aguda extirpando as intimidades. A voz dela batia fundo nas suas
entranhas, assanhando os nervos, alfinetando a pleura, furando os tímpanos,
revirando seu íntimo metabolismo. E quando ela pegava forte arrepiava até na
lua. Mais fosse e mais teria o que desonrar.
João mesmo assim ficava impassível,
ressacado, absôrto, nada ouvia; ele até já sabia que não adiantaria nada
revidar aqueles impropérios. Assim era, assim tinha de ser: - eu hem?
Em seu sermão Juliana justificava o quiprocó
em que se metera, em confiar naquele homem, antes tão solícito, tão
compreensivo, tão caseiro, tão merecedor do casamento e naquele bolo lindo na
cerimônia, na igreja, nos aparatos, grinaldas, nas porta-alianças, os
padrinhos, o festival de arroz, jurando amor e fidelidade para todo o sempre,
amém, revelando ali que um nascera para o outro, representados pelas duas
imagens, a de São Lúcio e Santa Bona, os bem casados, ela tal qual a santa com
o queijo na mão direita e ele o santo com uma faca para partirem no céu o
queijo da castidade. Ela reivindicava hoje o João Albano de ontem, um homem
diferente, igual aquele romântico de antes, enamorado, atencioso. Mas não, hoje
era outro metido com as de saias soltas, perdidas nos antros da safadeza, não
ligando mais para ela, cadê aquele homem tão sonhado dos anos de namoro?
Cadê-lo? Evanesceu-se. Verdade, ele era um outro, não mais aquele de antes.
Ela, também, descabelada, subtraída, faltando um pedaço de tudo, posses tivesse
estava nas mãos de um analista, se culpando, gorducha, desperançada,
destrambelhada.
Terminada a ceia matinal, João levantara-se
até a porta para espreitar o panorama ali fora, acendendo um cigarro, dando-lhe
umas baforadas espertas, construindo suas ilusões na fumaça, se perdendo no
tempo e no espaço, desintonizado dali, de férias das chateações.
Os resmungos continuavam da parte de Juliana,
que de lá para cá, no interior do quarto, da cozinha, do banheiro, sempre
renovando seu repertório de pacutia. Ele, ao contrário, continuava fumando em
silêncio absoluto, ouvido para nada.
Afastando-se da porta, ele arrastou os
chinelos até o banheiro onde depositou no amaro bocão uma baita diarréia, fruto
da cachaçada noturna no bar do Dudé com porrinha, mão-de-vaca, caldinho, dominó,
baralho e regados a uma boa dosagem de aguardente da mais original da
redondeza, divertindo a ideia. Estava desaranjado, o corpo e o destino, tudo
desapontado. E não havia fio de prumo que endireitasse aquela desavença. Tudo
troncho, desinretado, torto. Nem ânimo possuía para recolocar as coisas em seu
devido lugar. Deixa estar, tudo, com o tempo, se acomoda. Vamos ver no que dá,
pensava.
Agora o momento era outro, ressacado, se
acabando pelo fundo feito panela, pensando sugerir à mulher que lhe fizesse um
chazinho de boldo, tencionando sanear os intestinos e o fígado, pois que de
instante em instante era cada cólica de arrepiar qualquer seboso já vestindo
casaca de infiel. Pensou mais uma vez e sequer ousou a solicitação uma vez que
os disparates prosseguiam agora do fundo do quintal. Um verdadeiro boi de fogo.
- Aquela quenga! –, repudiou implacavelmente
Juliana – tenho certeza que ele tava com aquela safada, mas destá, destá.
Juliana já desconfiava da safadeza dele em
conluio com Marildita, uma cabocla tesuda das terras da vizinha cidade Água
Barrenta, tirando-lhe o sossego do lar.
- Só pode ter mulher nesse meio, só pode ser
isso! Não acredito que um homem passe a tarde inteira entrando pela noite,
madrugada adentro, fora de casa, sem nada fazer, inda mais dizendo que tava
trabalhando, ora, só pode ser mulher balançando saia por perto! Tem rabo de
saia nessa história! -, reclamava ela enquanto espatifava os bisquís no chão,
não se cansando da injúria que crescia em denúncias avassaladoras e João
mantendo-se impassível, pensando apenas nas vendas, nas trocas pelos engenhos oficializando seu sustento e a sua
profissão de prestamista, um ambulante que oferecia e comprava de tudo. Quando
não dava expediente na feira, era pelos engenhos oferecendo brebotes,
bugigangas e utensílios por preços razoáveis e condições elásticas de
pagamentos; trocando tudo, comprando o impossível e vendendo o inexplicável. O seu
caderninho registrava toda transação e, vez por outra, conferia as anotações
totalizando créditos e lucros. Empertigava-se toda vez que concluídas as contas
observava que o lucro previsto já se havia consumido. Quanto mais trabalhava
mais ficava devendo e o preço de uma compra hoje, corrigida em cem ou duzentos
por cento, não dava para adquirir a mesma mercadoria amanhã pois que já se
reajustara de acordo com a sua impossibilidade. Injuriado alegava sustentar os
comerciantes com o seu próprio suor; aborrecera-se com esta conclusão. Irado,
contou um molho de dinheiro, depositando o correspondente à feira da semana num
jarro, separando umas notas para o bolso e destinando outras tantas para um
presente para Juliana, atitude que não tomava ao longo de anos, aliás, desde
que se casara que nunca presentiara nada além de si próprio, assim se julgara.
Presenteá-la agora, claro, com o objetivo de lhe diminuir a fúria e conseguir a
anuência para dar uma saidinha, escapulida até os braços da Marildita. Então,
chamou Juliana a um canto, contou as cédulas e fez-lhe o tencionado. No inicio
ela fitou o dinheiro com asco, não dizendo nada. Depois, pensando melhor,
deu-lhe um bote, escondendo-o no porta-seio com um meio sorriso e um silêncio
consagrador. Suborno praticado, João se passou por incólume na situação, ligou
o rádio sentando-se na cadeira de balanço da sala e danou-se a pensar. Viajava
nas cantigas do tempo do ronca nas ondas radiofônicas. Nostalgia, um ôco no
peito. Um afã de aprumar apesar dos revezes. Nada. Juliana por sua vez estava
entre aborrecida e feliz, arrependida pelas palavras ásperas que havia dirigido
ao seu marido, mas ele só fazia a vez de presenteador quando havia despeita
entre ambos e sabia que ele só tinha feito aquilo para enganá-la, para
acalmá-la, enrolá-la na maior das arteirices de um condenado seboso filho de
uma égua. João conseguia sempre encetar esse tipo de malabarismo, confiante de
que assim nunca sentiria o assalto de qualquer embaraço e, para tanto,
armava-se de todas as cautelas e precauções possíveis e imagináveis,
salvando-se das suspeitas, desconfianças e maledicências para o seu lado.
Àquela hora pensava em Marildita, jeitosa e cobiçada, tinha que levar a
obrigação da semana para que outro não lhe assaltasse em surpresa e, ao mesmo
tempo, fazer uma sacanagenzinha embaixo do lençol saciando sua sede. Isto
ocupava seu pensamento por horas em coloridas imagens que fabricava na sua
indisposição de pensar em algo mais sério de maior proveito para a sua vida.
Bastaram duas dúzias de palavras mais alguns
motivos esdrúxulos para convencer a mulher de que precisava sair para realizar
um negócio qualquer na cidade. A abestalhada engolia a conversa mole. Assim
dito, assim feito.
Já estava ele embarcando de cara lisa rumo a
Água Barrenta e lá se encontrando com a desejada dos seus sonhos, repleta de
luxúria e concupiscência. Marildita estava como nunca, decotada, arrumada,
vitaminada e apetitosa. Nem pensou duas vezes e o saculejo já estava solto no
quarto rangendo cama, gemendo corpos; era remexido agoniado, impado sôfrego,
buliçoso. Serviço feito, desleixe. Um beijinho na testa, apalpadela na bundinha
dela e uma derramada de dinheiro no porta-jóias da pitisqueira, além da certeza
de um retorno daqui alguns dias. Mandou-se probo.
Regressando de sua missão, chegou em
Alagoinhanduba, uma passadela no bar do Dudé, referencial inesquecível de seus
dias para alinhar os planetas, onde ali estavam proseando, jogando ou
negaceando em qualquer pedra ou carta, saboreando comidas típicas ou mesmo
ingerindo petiscos, tira-gostos e bebidas.
Juliana em casa pensava nos dezenove anos de
casados, no exemplo de marido que era João, no primeiro filho, sonho dele, hoje
um desmantelo, o menino copiando suas mandingas. Lembrou, certa vez, antes de
parir ele trouxe para ela uma raiz de mandrágora e colocou no pescoço da
parturiente num colar com um saquinho cheio de pedras de aras dentro para
quando a dor do parto chegasse, ensinando a ela segurar numa das mãos o cordão
de São Francisco, as orações para Nossa Senhora do Bom Parto, do Bom Sucesso,
do Ó, da Conceição, das Dores, dos Anjos, de Lourdes, e das Graças; deixando o
cabelo dela crescer, em longos cachos, ofertados à imagem do senhor Bom Jesus
dos Passos. Dezenove anos de casados, pensava ele, quinze de putaria e de bar
com os mesmos amigos, afora os tres últimos que se ajeitava com Marildita, a
mancebia que lhe corría nas vísceras.
Nesses últimos anos conseguira amoldar seus
negócios e intenções de forma adequada, obtendo sempre êxito nas investidas,
conseguindo se safar da vexatória situação precária sem o menor drama de
consciência. Porém, nesses casos, há sempre um dia de urucubaca nas costelas do
distinto que desmantela toda engrenagem, deixando-o abilolado, nu com a mão no
bolso, assim se dera.
Sob aconselhamento de más línguas e botadores
de gosto ruim na comida dos outros, Juliana, conduzida pelo inesperado e sob a
ira de todas as traições, pegou em flagrante delito o desejo de João com a mão
na botija de Marildita – olha a volta do enterro! – zoada das grandes devido
recalcitrância dele, às falações gasguitas da esposa traída, sem acordo, sem lero-lero,
na maior pauleira da paróquia e mais o testemunho miúdo de duas centenas de
gente curiosa, fuxiqueira, ávida por escândalos, reprovando tudo e empenando a
situação pra banda dele. Deu-se de fato. Um rebuliço dos grandes. Desmantelo
armado, um seu parente conduziu a chorosa Juliana para casa, enquanto
dispersava os interrogadores vizinhos prontos para bisbilhotar o acontecido
perguntando de tudo. Até que a situação fora se normalizando e João chegando à
sua residência fora assaltado pela surpresa, fugiu-lhe o sangue do corpo,
lívido, exangue, não acreditou e, lá estava, em letras garrafais um bilhete: “Fui
com meus filhos para longe da sua sujeira. Vou para nunca mais voltar, para
nunca mais ter que passar por vergonha tão violenta e para dar paz ao meu
coração e a dos meus filhos”.
Assaltado pelo inopinado, os neurônios se
escapuliram diante da maior sem saída, o raciocínio de férias e o juízo se
escondendo por trás da maior loucura, estarrecido ele instou os vizinhos que
não sabiam de nada nem para que lado da venta tenha ela havia tomado e se
perdido nas tantas veredas do mundo para que pudesse envidar qualquer
perseguição e consequente captura dos seus e dela, ao seu lar sagrado. Inquiriu
familiares e nenhuma informação recebera que subsidiasse sua busca. Nada feito.
E agora? Que revestrés mais sem propósito, Deus meu? Até das fotos do álbum de
família era sumira.
Tres meses passados, cansado de tanto
rebuscar cada centímetro do continente como um cão farejador, depois de
interrogar os ventos, a chuva e o destino, ficara numa espera ansiosa a
qualquer baque de coisa se julgava encontrá-la, desapontado com a certificação
de que não seria nada, era a sua imaginação exagerada. E só.
Ao cabo de uns meses depois mudara
definitivamente para o convívio estreito com Marildita, esta também não estava
para boas recepções, desgostosa ao tomar ciência de que aquele homem a quem
dedicara seu amor era comprometido com outra mulher, sem ter a consideração de
pelo menos revelar-lhe essa oculta situação civil; e o que é pior: aguçou
ciumeira braba nela, aprisionando-o em casa, cheirando sua roupa, fiscalizando
sua cueca, procurando marca de batom na gola da camisa ou no lenço, perseguindo
perfumes, hálitos e até intenções. Colada que só zagueiro na cacunda de atacante
goleador. Marcação cerrada, laço justo.
Passaram-se anos e devido essa ciumeira dizem
que ela foi acometida de uma doença que não teve jeito e aos poucos sucumbira
de morte instantânea. Desta vez ficara sozinho o nosso João Albano, sem ter a
quem recorrer nas noites de frio, nas horas de silêncio, nos cômodos da casa.
Na solidão pensava na vida e se condenando pela revolta da mulher de ir-se
embora com seus filhos; a outra inventou logo de morrer justo numa hora
daquelas sem o menor propósito, merda de vida, tanto trabalhei para ter
conforto que na hora agá fico sozinho com a vela na mão sem mar para navegar. -
secou tudo! Restava apenas a posse de algumas coisas como duas casas, uma
mercearia arrendada e uma bodega num engenho, fruto de vários anos de trabalho
e agiotagem. Pensou muito e um estalo veio na ideia: foi ter com o cartório
oficializar o falecimento da dita cuja, providenciando o óbito e o sepultamento
com todas as honras funerais. Sob tramóia engenhosa, ninguém sabe como,
conseguiu que o obituário registrasse o nome da falecida como sendo o de
Juliana Pereira de Antão, a esposa legítima que fugira com os filhos. Ocultou
sua sujeira num caixão hermeticamente fechado alegando razão de doença
contagiosa, organizou tudo direitinho, sem testemunhas, acumulando para si só
os bens do casal e procedeu com os últimos rituais do enterro. Foi um plano
bastante audaz, o suficiente para usufruir sozinho no inventário, negando a
existência de filhos uma vez que eles ainda não haviam sido registrados civilmente,
arquitetando subornar todos e conseguir seu intento. Agora viúvo não almejava
mais uma vida regular com qualquer inhazinha da beira do rio sem sequer demorar
mais de duas semanas esquentando os pés e procurando nova guarida. Virou de uma
hora para outra um bom partido para as moças casadouras, virgens encardidas,
viúvas ardentes, senhoras adúlteras e meretrizes sonhadoras, além do centro das
atenções de debutantes, dondocas, casadas, desquitadas e até beatas que
sonhavam com o seu príncipe encantado, nele encarnado pelas posses, jeitão
másculo e idade quase já passando no ponto, pois que a nenhuma delas dava
trela, seduzindo-as e depois se desfazendo arguto de qualquer compromisso.
Ao longo de dez anos vividos e passados do
acontecido, dividiu emoções com putas desbocadas, coroas enxutas, esponsais
assanhadas, anciãs depravadas, potrancas e descabeladas, até que uma
tuberculose crônica suspendeu sua devassidão, jogando-o nos confins de uma
enfermaria hospitalar. Tratara-se e depois perdera um rim, um baço, o apêndice
e nunca mais conseguira ser o mesmo. Caducara antes do tempo até que numa tarde
de janeiro agonizou sem mais nem menos, de um minuto pro outro, pronto, juntou
os pés e nunca mais respirara seus devaneios. Nem parentes ou amigos para prestar-lhe
exéquias.
A notícia andou por longe e aguçou a piedade
de Juliana que tencionando ainda encontrá-lo com vida, estava disposta a
perdoar o passado e cuidar do seu velho como uma mulher solidária. Ela não
pensara encontrá-lo com a outra, longe disso, mas sozinho e indefeso, sem ter a
quem recorrer e estaria ali, como uma vingança tácita, a dar-lhe uma verdadeira
tapa de luva, provando a estirpe de mulher que era. Qual não fora o seu pranto
ao encontrá-lo sepultado, condenando-se a si própria a responsabilidade pela vida
breve que teve. Suspendendo o choro voltou ao local de origem para satisfazer
as exigências da lei, na qualidade de viúva e, para seus filhos, se apossar dos
bens materiais deixados pelo defunto. Teve, portanto, com um rábula da
província, com o intuito de regularizar aquela situação, deixando tudo preto no
branco, legalizando os papéis requerendo seus direitos à justiça quando foi
surpreendida pela notícia de que estaria mortinha da silva, vítima de enfermidade
incurável há mais de dez anos atrás. Por conta disso, deu-se uma correria no
ambiente causando nela um profundo estranhamento.
- Oxente! Que correria mais besta desse povo!
Tá tudo doido, tá? © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
Imagem: arte da pintora do Modernismo
brasileiro Tarsila do Amaral
(1897-1973). Veja mais aqui, aqui e aqui.
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