quinta-feira, março 17, 2016

A MISÉRIA OBSCENA DA AVAREZA


A MISÉRIA OBSCENA DA AVAREZA

Luiz Alberto Machado

Totonho Miséria é mais conhecido como o mão de figa da pior marca, vez que não abre uma mão nem com broca, nem nunca acena para ninguém. Olha só com um olho para não gastar o outro! Usa só uma samba canção a vida toda, para não viciar os testículos com cueca nova! Bota meia sola na sandália de tira para não ralar o solado do pé! Economiza até cagada para não desgraçar a tripa gaiteira! Não pensa para não acabar com os neurônios! Nunca estudou para economizar a sabedoria! Estas e outras são as tantas causas das galhofeiras mangações relacionadas à sua simplíssima pessoa. Matutão broco, dum tironício sagaz, ligado nas adversidades dos outros. Farinha de Araripina, acusavam-no. O bicho justa de tudo, conta a maior choradeira, pechincha em cima da situação, visando não gastar nada. Nem o mínimo. Posudo, não fala com ninguém para evitar dor de cabeça. Odiado por todos, todo metido às pregas, autossuficiente, discriminador, odeia negro, judeu e pobre. Vive nos pés do padre só para pedir perdão, mais nada. Lava a culpa na igreja e sai todo ancho certo por perdoado. - De preferência, só compro a preço de coisa roubada! De graça, se possível. E pechincha tanto que na hora de fazer a feira, sai catando restos, verduras passadas, carne sentida, frutas rejeitadas e vai colocando tudo no bagageiro da bicicleta, numa caixa de papelão. - Me dá um pão doce com caldo de cana! -, este é o almoço dele, todo santo dia. Um dia por semana vai ao Recife pesquisar as novidades, ver se compra alguma coisa barata. Salta na Agamenon Magalhães de uma carona que lhe abomina, vai para o Brum, passa pela Conde da Boa Vista, desce pela Guararapes, entra pela Dantas Barreto até o Mercado São José, peitica nas toldas, atravessa pela Imperial, dobra a Cabanga, desliza pelo Pina, se encosta na feira de Boa Viagem, atravessa o Canal de Setúbal, cai no fim da Imbiribeira e desemboca em Prazeres, já em Jaboatão e depois fica ali na beira da calçada esperando o retorno de alguma carona para casa. O seu roscofe do tempo do ronca marca vinte horas, totalizando uns não sei quantos metros de andança a pé pelos quilômetros que ligam o Derby até Porta Larga. É muito chão. Analisa o solado da sandália, ainda aguenta um bocado de quilômetro, por certo. A garganta seca, ninguém lhe oferece água, pede qualquer líquido, dão um copo de cerveja, nada mais. Só um copo nada mais e no arrego, claro! O seu maior problema são os vizinhos Zé Mouco e Maria Cachacinha, casal que não diminui por nada a mangação pelas atitudes dele. Contam no maior dos esparros as sandices de sua avareza. - Vá para a puta que o pariu, mão de figa! O lazer dele é só no domingo, numa peladinha logo cedo no campo da Petrobrás, onde reclama por uns gols e arrebenta a perna de certos encrequeiros que só vão para tumultuar a partida, mangando dele. Depois vai para casa, toma um banho de segundos, arranca a televisão guardada na caixa lacrada para ninguém assistir, liga o aparelho, e assiste o Programa de Sílvio Santos, conferindo o resultado do Baú da Felicidade. Por instantes fica irado porque não ganhou nada de todos os sorteios do programa e confere os dez carnês do grupo. Aposta em tudo: rifa, quina, telesena, supersena, megasena, loteria federal, jogo do bicho, poupa ganha, papa tudo, bingos, tudo quanto for jogo de azar que não passe de um real ou pouco mais. Passou disso é roubalheira, segundo ele. Dinheiro, ele mesmo guarda nuns cofres pequenos que costura dentro do colchão do casal. - Eita cama dura da gota! -, reclama a esposa. - É bom para a coluna, é feito colchão ortopédico! -, explica. Já os filhos descansam num quarto contíguo em camas de campanha. Outra hora quizilenta é quando adoece, ih! Procura de um enfermeiro afamado que prescreve uns remédios que solicita amostra grátis, passa-lhe um xêxo nos honorários e vai para casa descansar. Possui um fusca, é, zero quilômetro, isto é, com apenas catorze quilômetros rodados, isto usado apenas da concessionária para a sua garagem. Ainda hoje está no mesmo lugar, coberto por uma flanela felpuda sem sair para lugar algum. Seu transporte é só a bicicleta velha, comprada na década de quarenta e até hoje com reposição de peças de um ferro velho vizinho. Até os pneus, todos foram recolocados de segunda mão. Para fugir da rotina de ferrolho com a mulher, casado que é há vinte e cinco anos, dá umas escapulidas com qualquer estradeira na beira dos acostamentos de rodovias. Um coito a preço de centavos. Só. Razão porque é acometido sempre por doenças venéreas estranhas. Simples, para sarar espreme limão na cabeça da rola e se satisfaz por curado.

Um dia Zezo Cocão passava por uma dificuldade violenta, estava em papos de aranha. Olhou pros quatro cantos e não via saída, lembrou-se, então, de Totonho Miséria, o único que possuía dinheiro em espécie para adquirir qualquer coisa. Recorreu ao sovina que sequer queria conversar com ele, escondendo-se para não entrar em fria. Zezo insistiu. Nada. Esperou ele na saída da loja dele, no final do expediente e o avarento passava-lhe pitu, deixando-o a falar sozinho. Ia na casa dele, diziam que não se encontrava. Montou vigília, de manhãzinha o pirangueiro escapulia. - Eu ainda encontro esse desgraçado! Escondeu-se e flagrou Totonho vindo e de supetão interpelou-o, num flagrante claro de tirar proveito do desgraçado. - Amigo Tonho, preciso falar com você pois tenho um negócio da China para você ganhar dinheiro! -, sabia o Zezo como segurar a atenção do usurário. Totonho fez uma careta prevendo o conto do vigário que vinha para a sua banda. - Preciso vender minha casa e você seria a pessoa indicada para comprá-la. Não vou vender para estranhos, prefiro você que é meu vizinho, gente boa e, depois, quando eu quiser comprar você me vende. - Quanto é essa bagatela? Quinhentos mil! -, respondeu. Totonho pensou, franziu o cenho, fez cálculos de queimar a cachola e propôs preço aviltante. - Pago cinquenta! Que é isso, não é roubada não. Procure outro para comprar. Calma, Totonho, você é gente boa, vai me pagar um negócio melhor! Só isso e pronto, até outro dia! Totonho saiu sem mais nada dizer. Zezo esconjurou a sovinice dele. O mão de figa já tinha ciência da situação do peiticante e sabia mais que ele entregaria por besteira a casa dele. Totonho! Ói, me dê quatrocentos! Cinquenta! Trezentos e cinquenta! Cinquenta! Trezentos! Cinquenta! É palavra de rei, é? Duzentos! Cinquenta, mais nenhum centavo! Cem! Não! Me dê os cinquenta mil! Me dê a chave e venha buscar amanhã. Tire tudo de dentro logo, amanhã mesmo vou alugar! No dia seguinte Zezo já havia retirado seus troços e estava com uma chave esperando o dinheiro. Totonho antes fora conferir o estado da casa, entrou pela sala, saiu pelo quarto, chegou ao quintal, voltou pela a varanda, fechou com um cadeado novo e botou a tabuleta: aluga-se! Saíram juntos até a casa de Totonho que deixou-lhe esperando no portão, em pleno sol quente, trancou a porta do quarto, abriu um confrezinho, contou o dinheiro duas vezes, abriu outro, juntou um molho jogado em dois sacos de papel grande, saiu com eles na mão e entregou ao suplicante. Desapareça! Zezo atendeu a ordem e escafedeu-se. Trezentas pessoas se espremiam para alugar a casa. - Quanto é o aluguel? Cem por mês! É caro! Procure outra! Agora é cento e cinquenta! Quanto mais aparecia gente mais Totonho aumentava o aluguel. Um ano depois já havia despejado dois tomando as posses dos inquilinos inadimplentes. Ninguém suportava pagar duzentos por coisa que só valia cinquenta. Exigia fiador de reconhecida notoriedade e rico, identidade, documentos todos e contracheque que comportasse pagar o aluguel.

Dez anos depois Zezo retornava com os cinquenta mil requerendo a casa. - Oxente, eu comprei, é minha e caia fora! Nada disso, quero minha casa de volta, tome seu dinheiro! Totonho se enervou com aquilo. Nada de devolver a casa. O assunto foi pegando no tom de briga. Zezo inarredável. - E os juros? Os juros foi o aluguel que você cobrou do pessoal! Me dê trezentos que eu lhe entrego as chaves. Aliás, quatrocentos. O que é isso, ladrão? Agora só entrego por quinhentos por causa da ofensa! Zezo contratou advogado e peticionou ação de reintegração de posse. A casa não era dele Zezo, era do sogro. Não passaram a respectiva escritura pública nem fora assinado um pule de bicho sequer, se bem que a esta altura do campeonato recibo algum teria validez jurídica. Totonho mordeu-se com o embuste. Procurou uma testemunha para se amparar na transação, num encontrando um só pé de gente para tal vez que todos torciam para que ele se ferrasse num prejuízo bom. Agoniou-se, recorreu ao padre que lhe declamara vários versículos bíblicos persuadindo para que se desfizesse das posses materiais senão arderia no inferno quando morresse; fitou de soslaio, desconfiado com a torcida do padre para o outro lado da questão, se bem que era mesmo, todo mundo guardava um certo desprezo pela sovinice dele. Foi no cartório tentando subornar funcionários para escriturar no seu nome a propriedade, chorou nos pés do tabelião, jurou pagar todos os emolumentos necessários até um molha-mão para todos do Registro de Imóveis; requisitou uma audiência com o prefeito, com o secretário de obras, foi até o delegado apresentar queixa de enrolação, seguiu para o promotor, todos os recursos possíveis e todos só mangavam da choradeira dele. Tome, desgraçado. Não se conformava, mudou fechaduras, acorrentou tudo, apregou uma placa de propriedade privada, requereu advogado que lhe cobrou uma fortuna para defendê-lo da pendenga, arretou-se, dispensou o bacharel pela roubalheira cobrada, enfiou-se atrás dos muros da casa e ficou cantando: daqui eu não saio, daqui ninguém me tira. Viera o batalhão da polícia militar com oficial de justiça para reintegrar Zezo na casa, ele agarrou-se nas portas, puxado por mais de dez soldados, esperneando feito louco, gritando por socorro, até que fora jogado em cima de um monturo num terreno baldio. Fora obrigado a devolver a casa e pagar além dos aluguéis por dez anos bem como as custas processuais. Teve um ataque cardíaco, deitou maca numa enfermaria pública e quase morre doso nervos atacados. Hoje ainda se ouve apenas ele ronronando pelos cantos: cinquenta... cinquenta... © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


Imagem: Nude sleeping, da pintora russa Zinaida Evgenievna Serebryakova (1884-1967). Veja mais aqui e aqui.

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Reclining woman etude de femme Hadija Marakech, da pintora russa Zinaida Evgenievna Serebryakova (1884-1967).
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