DESDITA DE TRIPA
Luiz Alberto Machado
Zé Tripa
sempre acompanhava o velho Rosas em tudo. Era a sombra dele. Até os pantins do
ancião o molecote imitava: fungado, corcunda, pigarro, leseira, penço capaz de
relar a venta no chão, magérrimo, cagado e cuspido. Um protótipo autenticado em
cartório, cópia fiel, dou fé. O velho experiente, conselheiro, amigo, era um
preto magro já passado do ponto, carregando as malas dos metidos a lordes que
chegavam oriundos da capital e de outras cidades circunvizinhas, no expresso
rodoviário dali. Quando desembarcavam passageiros dos ônibus, o velho logo
oferecia a cacunda para carregar a bagagem. Às vezes carregava até gente. Zé
Tripa ali, imitando-o, angariando um abastado passageiro cheio de malas para
engordar suas economias.
O
avelhentado partia do box rodoviário com duas malas, três sacolas, uma
frasqueira, duas valises, uma maleta, um alforje, um saco e uma caixa, tudo no
toitiço dele. Tripa aí que bem olhava, invejava e fazia as contas para bater o
recorde dele, fazendo na hora o cálculo do peso carregado: noventa e dois
quilos, puta que o pariu! Tinha de levar mais do que isto, tinha idade, sim,
não seria um magricela senil que iria humilhá-lo na flor da idade.
Lá pelas
tantas, quando não havia mais chegada ou partida de cata-corno, se encontravam,
os dois, mestre e neófito, na banca de jornais do finado Odilo, ouvindo as
exigências de Dona Maria de querer tudo no devido lugar. Rosas ouvia de nada,
não emitia uma só palavra. Só piscando os olhos, cara lisa, concordava.
O
macróbio andejo ensinava, nas horas vagas, o que era a vida ao imberbe Tripa e
profetizava coisas que o adolescente não seria capaz de discernir naquele
momento. Era, exagerava nos relatos deixando o ouvinte arrepiado com trajetória
tão tortuosa. Mas não dispensava uma só vírgula da narrativa, tentando entender
aquele labirinto de experiências. Falava de tudo: de alcoviteiro, ticoqueiro,
calunga, enredeiro, artesão, canavieiro, intrujão, habilidades zis numa pessoa
só, competência além da conta para um lugar tão sem perspectivas. E Tripa, ao
que parece, apreendia tudo com o tempo.
Quando
Dona Maria cerrava as portas da banca, ao meio dia, eles se dirigiam para o
pavilhão de Dona Zefinha, hora das refeições. Engoliam seco, não sobrava
reserva para refrigerantes ou sucos, só um copo d’água para ajudar a descer a
comida entalada na garganta. Um esforço enorme para que a iguaria num ficasse
inchada no bucho. E à sesta aguardavam alguém que saltasse em terra com seus
bagulhos, acocorados no tempo. Enquanto isso, nada faziam e ficavam ali ouvindo
imposturas do Marquinhos-Ôio-de-gato, os imbróglios de Nito Maguinho e do
solene Tó Zeca, um trio de fraudulentos contadores das petas mais cabeludas,
jactantes insinuadores de uma verdade acima da compreensão dos bestas,
alegrando o mormaço da tarde com chistes nada convencionais.
O Tripa,
magro, seco, cotoco de gente, raquítico, seguia os passos do carregador de
bagagens até quando ele se abufelava dos despautérios inventados pela tríade
mentirosa dos conversadores de potoca.
Certa
feita o Marquinhos-Ôio-de-gato narrou com minudências um contato seu de quarto
grau com viajantes de um objeto voador não identificado, ocorrido dias atrás,
perto das pedrarias do Rio Pirangí, numa noite enluarada. Conta ele que não
teve um só pingo de receio, encarando-os no topete de sua nobre coragem e
desfiando detalhes íntimos em conversação animada, ali, em cima da bucha,
envolvendo todo mundo como que hipnotizados pela narração dele. Para provar que
possuía o endereço dos tais alienígenas, fez questão de mostrar aos presentes
um cartão postal, tipo holograma, de lá da terra deles, inclusive, convidando-o
para um final de semana naquela galáxia distante. E mais: sustentava ele ser
perto e, como bom amigo de todos, estendia o convite recebido aos presentes.
Rosas irritado com a invencionice saiu esbravejando aquela tal falsa persuasão.
- Esse
aprendeu direitinho com o Tó Zeca!
Tó Zeca
era o mestre dos mestres na arte de inventar inverdades ou verdades jamais
ocorridas, aprendidas com Jaime de Letícia, a ponto de chegar, nas inventagens
cabeludas, a dar uma rasteira no professor dele, de deixá-lo mudo por um bocado
de anos. O seu principal discípulo era o Nito Maguinho que não ficava por baixo
na arte de encobrir suas façanhas com detalhamento rico, enganando
verossimilhanças. E Tripa achava gozado o trio ficcionista desconfiando da
sanidade deles.
Pois
bem, o tempo foi passando e a pedido de Rosas, Tripa foi contemplado com um
apoio financeiro do prefeito, de uma boa quantia e que juntando com algumas
moedas escondidas a sete chaves num mealheiro de barro, adquiriu, depois de
muita lengalenga, uma banca, daquela tipo tolda, afixada na calçada do Teatro
Cinema Apolo, melhorando de vida com seu próprio negócio. Como sinal de
agradecimento ao velho Rosas, todo dia ele convidada o amigo para refeição no
pavilhão de Dona Zefinha, sinal de gratidão imensa, já que arredou pé na vida
de carregador, posto ver que não tinha nenhum futuro, principalmente por ouvir
leseiras e conselhos de gente da estirpe da trindade mentirosa dos inveterados.
E mais prosperava. Como bom samaritano, sempre ajudava nas despesas de Rosas. E
prosperou mesmo. Jeitoso, surtiu a tolda com revistas dilaceradas, jornais
pretéritos, bombons estragados, confeitos meleguentos, cigarros de palha,
chicletes chupados, bolas furadas, bisquís laxados, souvenirs quebrados,
bugigangas inutilizadas, coisa velha, artigos para presentes, seminovos,
utensílios usados, gibís despaginados, folhetos de cordel encardidos,
alternativos do tempo do ronca, emblemas encardidos, camisas de times de
futebol com sovaco rasgado, temperos inventados, condimentos da hora, ervas
santas inócuas, raízes de todo tipo de pau, ervas daninhas, orações
milagreiras, meizinhas, simpatias, livros espíritas desencadernados, catecismos
enodoados, imagens de santos danificadas, bonecos de barros faltando um taco,
carrancas, quinquilharias e unguentos.
- Isso
parece mais um armarinho de lixo, só tem coisa imprestável, meu ! -, mangava
Nito Maguinho:
- Num
sei cuma é que um povim desse gosta de tanta tranqueira! Mas negóço honesto, dá
trabaio e eu faço de tudo! -, expressava a sua satisfação contra o escárnio do
mangador. Transava tudo: trocava um ferro elétrico que não mais funcionava por
um urinol; uma coleção de tio Patinhas sem capas por uma chave de fenda; um
manual de bruxaria por um liquidificador queimado; passava um risco no chão,
ele negociava. E foi com esta ventura de bom comerciante, que certo dia o Nito
Maguinho se encostou ao empreendedor astuto e aconselhou ao Tripa a fazer
aquisição de um automóvel adquirido pelo enrolão num concurso de pinoia. Tripa
endoidou: era verdade, pela primeira vez na vida via que um dos integrantes
daquela besteirada toda, falava a verdade. Ainda desconfiou, conferiu tudo;
ficou arrodiando e depois de uma inspeção atenta num minucioso walkaround, pagou em moeda vigente e a
vista.
- Essa
foi a maior moleza de negóço!! -, gritava incontido Tripa.
Abestalhado,
o adquirente danou-se a fazer piruetas mentais, contando, somando, subtraindo, multiplicando,
dividindo, tirando a prova dos nove; comparando o preço do combustível, do
litro de gasolina, das despesas que agora teria de ter, em relação às suas
vendas; esquentava os chifres com cada conta, fedia, somava, fumaçava, sobrava
tanto - eita fedor de chifre queimado da gota; dividia, faltava muito; depois
multiplicava e aí é que a conta não dava; ficava zarolho com o resultado
obtido: tô fudido! E o pior não era nada, nem sabia guiar o veículo. Nito
Maguinho, condescendente, não queria deixá-lo na mão, oferecendo-se a dar umas
aulas ao comprador em troca de algumas moedas, o que, desconfiado de novo
trote, mandou-lhe tomar banho nos cafundós de Judas.
- Se eu
for ter aula de motorista com esse pinoteiro, termino perdendo o carro, ôxe! Se
sou bom, vou aprender sem se ensinar!
Sozinho,
Tripa ficou manipulando marchas, setas, limpadores, manivelas, tudo, se
assenhoreando, não antes dar quatro arranhões, arrancar um para-lama, deixar um
rombo no piso, quebrar o para-brisa e deixar três pneus estourados com sua
habilidade em não saber se livrar do meio-fio. Era uma perícia de barbeiro
tirando fino em postes, gente, muros, polícia, desavisados. O carro não era lá
tão novo mas dava para andar. Era o que se podia dizer do que normalmente é
conhecido por mandú, um loré daqueles imprestáveis, caindo as bandas, todo
afixado no barbante, desconjuntado, empenado, emassado, mas aos olhos do dono,
ah! envaidecedor, um daqueles tipo de capa de revista, lindo de morrer. Destá.
Mas, entre sopapos e engulhos, aprendeu sozinho a conduzi-lo, depois de muitos
altos e baixos, mangações do povo, reclamações de pedestres e truculentas
repreensões dos policiais locais. Os gastos foram então aumentando e ele exibia
a fumaçada do cérebro: no primeiro freio que deu terminou com o solado do
sapato gasto, levando o piso e o pedal para os ares, parando assim com os
próprios pés.
- Ainda
adestro este burro brabo! Vai ficar mais ensinado que cachorro de rico! -, e
não foi só, numa curva o volante rodou tanto, mas tanto mesmo, que acabou
invadindo a residência de Fortunato Laranjeira, sem ao menos pedir licença.
- Vôte,
esse carro quer morar na casa dos outros, é? -, isso sem contar com o nó que
deu nos braços, dando maior trabalho para desamarrá-los: - Eita nó-cego! Por
causa disso, confundiu-se tanto, não se sabendo até hoje qual dos dois braços é
o direito ou o esquerdo. Nisso, teve uma vantagem: escrevia com uma e com
outra, virando ambidestro.
- Parece
que depois que troquei as mãos e os braços fiquei mais sabido.
Verdade.
Mas o negócio fedeu: reconstruiu a casa do sujeito e ficou sem o veículo uns
quinze dias por causa dos serviços de lanternagem e ajustes mecânicos. Ajeitar
mais o quê naquilo? Depois de consertado, saiu passeando por aí, quando avistou
a prendada Nonília Trambolho. Menino, o coração dele deu uns pinotes e de tão
extasiado, errou na debreiada deixando engrenada uma marcha, de ficar somente
na primeira durante todo trajeto do flerte.
- Vou
perder a mulher, pode?
Ah! Fez
força, arengou com a alavanca, arrancou tudo e o carro esquentou, fumaçou e
depois estancou de vez, não pegando nem com reza forte. Empacou ali mesmo e,
para desgraça dele, Nonília só mangando. Insistiu tanto no azougue que um ano e
meio depois, devido tal incidente, estava ele com carro ajustado e casado com
Nonília, uma porção de dívidas em diversas oficinas mecânicas, razão porque
ele, a cada dia, recorria a desconhecidos. Era um mecânico para cada problema
surgido, visto ele não confiar mais em ninguém que botasse a mão no seu patrimônio
e não resolvia o defeito, ao contrário, aparecia sempre outro.
- Esses
caras de oficina são tudo enrolão! Chego com uma bronca e saio com outra! Pode?
Pois é.
Bem, nas tardes de domingo, o casal dava de passear no bicho. Eles punham a
melhor roupa do casal e desfilavam seu orgulho na Praça Saulo Saranhos, anchos,
envaidecidos. Que coisa linda! Uma vez no meio do prazeiroso devaneio, algo do
inopinado irrompera causando transtornos: o carro passou a dar tiros.
- Eita!
Será faroeste? Esse carro é pistoleiro, por acaso?
Os dois
escondidos embaixo dos assentos não sabiam de onde vinham os pipocos, seria
alguma vingança? Não, mas por via de dúvidas se escondiam no interior do
automóvel. Alguém os socorrendo, anunciava peremptoriamente uma satisfação meia
escorregada para tal fatalidade.
- Deu
bexiga no platinado, tem de lixá-lo bem para ver se dá certo pro bicho andar
sem peidos.
O
altruísta interventor, ajeitou tudo ali mesmo, recebendo, depois de uma
verdadeira mão-de-obra inacabada, apenas um muito obrigado por pagamento. O
cara ficou fulo e praguejou contra a mão de figa do Tripa. Destá.
Depois
de trezentos e vinte e cinco voltas na praça, a mais visitada e aconchegante da
cidade, ufano em ser possuidor de um objeto que encheria de inveja aquele
povinho, novamente o condenado pifou.
- A
bateria arriou, tem alguma coisa roubando corrente!
- Então
prende logo esse ladrão, ora!
Tripa
agoniou-se e foi atrás de um mecânico. E sob muitas requerenças encontrou um
que se encontrava bicado, trocando as mãos pelas pernas que se meteu a remexer
no alternador, gerador, arreando o motor, tirando porcas, remendando mangotes,
arrancando cabos, trocando velas, um verdadeiro desmoronamento da gota. Só se
via o carro se espragatando. Tripa triste e impaciente vendo seu patrimônio
vasculhado e decomposto assim, ah! quase chora de tanto desconjuntamento.
- Aqui
não dá, tem que levar para a oficina -, disse o ajeitador.
- Eita!
De novo??
- Se
quiser o carro bom, tem que levá-lo pra lá!
Pronto.
Rebocado sob tremenda humilhação, por fim o veículo chegou na oficina. Ai foi
pior: viu serem arrancadas todas as peças das particularidades do inominado.
- Será
que acertam botar de novo no lugar?
- Não se
mete, mulher, eles sabem o que estão fazendo! Espero.
Anoiteceu
e o carro solava, solava, solava e nada de pegar. Entrou a segunda-feira, saiu na
terça, passou pela quarta, invadiu a quinta e na sexta de tarde estava pronto.
E Tripa, insone, orgulhoso, na maior ansiedade de passear nele. Ôxe, quando o
cara berrou que estava pronto, Tripa não se conteve e já guiando sem ao menos
pagar a conta da oficina. Há, não demorou muito. Parece que rogaram praga. Só
sendo!
- A
bobina tá quente e arriou a bateria de novo!
E foi de
sexta para sábado, de sábado para domingo, entrou pela segunda, nem se esperava
na terça e já estava na quarta ao meio dia, Tripa nervoso que só, teve de
comprar motor de partida, buchas, platinado, condensador, bobina, rotor, jogo
de velas, correia e induzido. Tudo novo.
- Esse
bicho que me ver pobre de Jó!
Tudo
certo, saiu ele de mãos dadas com Nonília, na estrada da Usina Serrado Azul,
quando ouviu-se um estrondo. Para o carro, desce e vê um pneu furado. Procura a
chave-de-roda e o macaco. Cadê? Na procura vem um caminhão da Usina Trumbaty em
disparada, buzinando muito e, que desdita, arranca uma banda do seu desejado
fusca. Eita! Um desmantelo!!
- É
cego, é?
- Por
que não butou o triângulo? Quando vi tava em cima, ora!
Mais
prejuízos, nem tinha chave de roda nem macaco e ainda por cima, agora, sem a
porta do lado do motorista, esquecida aberta durante a procura dos acessórios.
O que ele achava ser um jeitoso bem apetrechado, agora estava todo deformado. E
agora? O caminhoneiro zarpou e, o coitado, ficou falando sozinho, com uma mão
na frente e outra atrás. Lá para as tantas, depois de muito se esganar, eis
que, de novo, um bom coração encostou para ajudá-lo.
- Bem -
disse o sangue bom -, o carro não presta. Mas se trocar o pneu, dar pro senhor
levá-lo até uma oficina.
- Pelo
amor de Deus, num guento mais esse negócio.
- Calma,
vou ajudá-lo no que posso.
Ah, o
cara arrancou o pneu furado e pediu o estepe. Que é isso? Não havia estepe
algum. Foi aí que Tripa, sem saída, resolveu pedir carona na boleia de um
caminhão canavieiro, descendo numa borracharia. Lá, viu seu pneu ser condenado,
exigindo agora um outro novo, o que estava completamente fora de cogitação. O
borracheiro, ainda atencioso, ofereceu-lhe um outro, seminovo, mais barato,
estava meio rodado com uns duzentos mil remendos mas ainda aguentava uns
quilômetros; nem balbuciou, aceitou, ajeitou, tudo ok, pulou numa carroça e
chegou onde se encontrava Nonília chorando, ali sozinha naquela escuridão,
perto do cemitério e onde corria tarado a noite toda. Era só o que faltava!
Como não havia jeito, teve de ele mesmo tentar repor a roda no carro. Enrolado,
percebeu que perdera dois dos parafusos da jante, colocando o pneu assim mesmo.
- Você
vai sair daqui de qualquer jeito, seu amolestado!
E saiu
mesmo. Depois que deu um toque, o bicho pegou e saiu remoendo de volta para a
cidade.
Nem
havia ainda se livrado daquele susto, quando, em plena Rua Coronel Irinácio, o
pneu despencou torando os parafusos restantes.
- É
hoje! Parece mais que pisei em rastro de corno!
É, uma
verdadeira bronca: o carro dormiu com a venta enfiada no muro da calçada de
Zezinho do Sport. E não tinha quem conseguisse arrancá-lo dali.
- Pronto,
fica aí desgraçado, amanhã arresolvo!
No outro
dia, juízo queimando, providências tomadas, o carro no ponto, foi trabalhar.
Esse bicho vai acabar comigo, pensou ele.
Domingo
de novo, ele e Nonília inventaram de ir para Batente, povoado próximo de
Alagoinhanduba, e aceleraram na piçarra com a felicidade peculiar aos que se
encontram em pleno gozo de suas posses. Era um vento fresco narinas a dentro,
uma realização aprazível comungada com os familiares, capaz de estourar em
alegria nunca antes degustada por aqueles corações sofridos. Nonília já
reclamava do frio anunciando que griparia logo. Já estava com os septos nasais
esfolados de tanto espirrar.
- Guenta
aí, mulher. Isso passa, veja o passeio bom!
Adiante
as curvas, as retas, a paisagem, nunca se afastaram tanto na vida. Foi uma
verdadeira ousadia, nem sabia direito conduzir o veículo e já se esgueirava
pela rodovia estadual sem se dar conta do que podia acontecer. Estavam leves,
nada poderia estragar. É, e não esperavam pela polícia.
- Cadê a
carta ?
- Botei
ontem no correio!
Ficou
preso por soltar gracinha, enquadrado por desacato à autoridade. Carro retido,
saiu a pé com a esposa, pegando carona de volta.
De um
estalo, no outro dia, foi até o usineiro cobrar os prejuízos causados pelo
caminhão, apresentando ao ricão um orçamento que dava para comprar dois carros
zeros. O negócio embromou, fazendo com que o traste do Tripa chiasse,
choramingasse, lamuriasse, esperneasse, o usineiro desconfiado, resolveu depois
de tanta pacutia chorenta, pagar a metade do cobrado. Ôxe, uma festa! Tripa deu
três saltos soltos, largou propina para o policial rodoviário, liberou o auto
para a oficina, arrumou o carro, todo engalanado, acessórios esquisitos como um
pisca-pisca que mais parecia uma árvore de natal; um brake light que os mangadores chamavam de para-corno; uma imagem de
São Jorge matando o dragão no para-brisa; uma bandeira do Flamengo na antena;
brebotes balançando nos vidros laterais; botou um som incrementado, quatro
pneus novos, porta emassada, tudo nos trinques.
- Agora
sim, vamos para Batente!
Novamente
interceptado pela polícia, faróis não acendem; stop, nada; pisca não assinala; extintor de incêndio, vazio;
limpador, não funciona; não tem cinto de segurança; o vidro da porta, não sobe;
dirigindo de sandália; falta o retrovisor externo do motorista; ignição,
pegando por ligação direta; sem placa; infrações assim nem vendendo o carro
dava para pagar. Foi então que Triupa contou um história triste, abufelou-se,
babou o ovo do guarda e conseguiu sair depois de pagar mais uma propina,
ficando o automóvel - se é que se pode chamar aquilo de automóvel - apreendido.
Depois trouxe o mecânico, dois dias para deixar tudo em ordem, a perícia
exigente, descobrindo a razão do veículo puxar para um dos lados que só bicho
brabo, quando se aproximava de mato. Um cabrito. Puta que o pariu! Na cadeia.
- Cadê
os documentos do fusca?
- Quiz
documentos ? Eu comprei um carro, num foi papel, não!
Resultado:
teve de legalizar o veículo não sem antes extorquir meio mundo de gente,
molhando a mão dos funcionários do Detran, dando gorjeta para o carcereiro
soltá-lo com o fim de resolver o problema; deu uma bola gorda pro delegado e,
ainda, a título de gracejo, uma bolada correspondente a umas vinte cervejas
para os policiais. Tudo justo e acertado, debreou o carro e ficou feliz. Uma
azáfama incontida no peito. Que maravilha!
- Agora
o bicho anda até embaixo d’água!
No seu
entusiasmo preferiu voltar por um atalho numa estrada de barro, evitando passar
pelos patrulheiros, podia ser que botassem pantim pra cima dele. Passou por um
atoleiro, encheu o carro d’água e ficou lá agarrado na lama. Ôxe, teve de vir
trator de longe para puxá-lo. Arrancado do atoleiro, foi conferir o estrago.
Resultado: a lama de fora estava toda dentro do carro. Quando foi conferir por
baixo mais parecia uma tábua de tiro ao alvo de tanto buraco que se via no
papo. Arretou-se, mandou consertar tudo.
Chegou
em casa pegou o caderninho e começou a fazer conta, adições, subtrações,
divisões, multiplicações, noves fora, uma dívida enorme, já empenhado o
relógio, a banca, a bicicleta, a pulseira de ouro de Nonília, o revólver, um
liquidificador, uma penteadeira de estimação, a tv a cores, a cama do casal,
três botijões de gás, as vendas futuras e o sono. O responsável por isso
descansava na calçada.
E lá
vinha no outro dia um bendiz que deslizava; o burrinho de freio que estourou; a
correia que tá gasta; o gerador que tá pifado; o alternador que não funciona; o
tanque de combustível furado; a polia que tá empenada, dando uma folga de
dançar o motor; o câmbio que tá roncando na segunda, terceira e na quarta; o
disco de freio tá deslizando; o platôr de embreagem sifu; o filtro de óleo tá podre;
a ferrugem tá estourando no capô, na mala e no resto.
- E esse
carro fica se balançando, parece empolgado num sei com quê? O danado faz festa
enquanto eu vou me fudendo de trabalhar para sustentar esse desgraçado!!!!
E era
amortecedor ruim, falta de freios devido lona estragada; baixando o nível de
óleo, o retentor está desgastado, o motor já está rajando.
- Só vai
se for na retífica!
- Puta
merda!
Mais
quinze dias desesperado de espera, amonta nele ainda e sai feliz. Sozinho,
resolveu sair da rotina e arrumou uma concubina, tomou cachaça e se ouriçou
todo. Foi dar uma volta com a rapariga, quando o motor morreu. Ficou enfezado
com essa. Depois de estancar, ele agora se achando sabedor de tudo, vai pro
motor e fiscaliza o que há de errado. O capô lhe cai sobre a cabeça.
- Quer
me comer é desgraçado? Vá engolir a mãe, viu?
Lembrou-se
que o motor estava na traseira. Fez uns gestos estranhos do carro pegar
sozinho, contando tuxe na medida. Para aliviar a bronca, agarrou-se na moça e
trepou ali mesmo. Depois do serviço sexual, tomou uma. A moça começou nas
intimidades a dizer de sua vida, seus problemas, a penúria. Eita! Lá vem o
enterro voltando. Deu-lhe uns trocados e zarpou.
Quase
perto de casa, puft! Enguiçado de novo. Cheio da meropéia, desce, chuta o carro
e completamente aborrecido se dirige para casa, aos empurrões do infortúnio.
Nova investida de profissional do ramo e o carro fica bom. Não demora muito.
- O peão
e coroa da caixa de marcha está ruim.
E lá vai
carreta sincronizada que dançou; pivô de suspensão, terminal de direção, sem
fim e o setor da caixa de direção, polia do alternador, rolamento da roda,
virgem!
- Por
isso que a roda saiu sozinha por aí, desgraçada!
Para
completar, Nonília desconfiada de que ele andava pulando a cerca, dá-lhe uns
bregues acentuados para piorar o seu azarão.
A
amante, por outro lado, vive insistentemente cobrando dele a separação da
mulher, fechando as pernas até que ele se resolvesse.
- Dá um
chute na bunda dela, porra!
No meio
da apunrinhação, aciona o motor, engata primeira e se manda azoado.
- O
motor caiu no meio da rua, seu!
- Por
isso que o desgraçado tava tão silencioso!
Os
mecânicos sorridentes recolheram o desditoso, Tripa já triste, liso e
desesperado. A mulher não dava trégua, a amante na cola e o carro, isso aí. E
lá vai bojo de escapamento, para-brisa rachado, freio-de-mão inutilizado, farol
direito queimado, pisca-pisca traseiro, capô, suspensão dianteira desalinhada.
Para quem nunca bebia, quer dizer, por costume, encheu a cara, pegou o carro e
estacionou na calçada com muito cuidado. Demonstrando uma tranquilidade
disfarçada, entrou em casa, tomou um banho para relaxar e notou o silêncio.
Desconfiou daquela paz. Ao sair do banho a mulher lhe esperava com uma
mão-de-pilão e uma carta da rapariga encontrada no bolso da calça, que
imprudência desavisada! Ôxe! Naquela hora, foi cacete, bate boca, arrastão,
capoeira, rasteira, mandinga, bisquisada, caçarolada, bule no quengo, píris,
xícaras, jarrada, bolada, beliscada, trincada, mãozada, bicada, mordida,
puxada, colherada, facada, garfada, cusparada, porrada, saculejada,
desembaraçada, chicotada, moleirada, cinturãozada, toalhada, empurrada,
caçolada, cadeirada, tamboretada, canetada, chutada, peitada, pernada, bundada,
barrigada, umbigada, braçada, pescoçada, telefonada, cinzeirada, camada de pau,
sapatada, chinelada, antenada, cuscuzada, macarronada, feijoada, marmelada,
laranjada, filtrada, papelada, maquinada, sacaneada, linguarada, testada,
caqueirada, vergalhada, tijolada, ripada, vassourada, canecada, canelada, chave
de braço, de perna, de fenda, de roda, de casa. Azougue total madrugada adentro
e o entrevero tinha fôlego para chegar de manhã. Nonília roupa rasgada, nuínha
da silva, teve medo. Tripa partiu com mais de mil pra cima dela, ela correu,
saiu pelo meio da rua, ela nua, ele de cacete na mão, desapareceram. Ele volta
ofegante, não alcançou a carreira dela. Dirigiu-se aos presentes e perguntou
pro Marquinhos-ôio-de-gato, ao Nito Maguinho e ao Tó Zeca se a viram passar
para onde. Sob a negativa deles, retorna para casa e se apossa de um punhado de
troços, correntes, barbantes, cordas, cordões, nylon, fio elétrico, cabo de
aço, linhas e afins e amarra o carro no poste da calçada. Como? Isso mesmo,
amarrou o carro no poste da calçada, com muito cuidado, com zelo, paciência,
amarra todinho no poste da rua, horas e horas amarrando, o povo ajuntando para
presenciar atitude tão insólita.
- Onde
já se viu acorrentar um carro?
- Será
que alguém quer roubá-lo?
- O que
será?
Depois
de bem atado com dez metros de corda, trinta e cinco metros de barbante, vinte
e cinco correntes grossas, oito cabos de aço e não sei quantos tipos e metros
de fios e linhas, ele se esconde no interior da casa.
- Tripa,
ainda falta amarrar direito as rodas! -, alguém que gritou pra ele, já com ar
de gozação.
Retorna
com mais cordas às mãos e completa o ritual, escondendo-se novamente no
interior de sua residência.
Quando a
multidão já vai se dispersando na maior das interrogações daquela cena, eis que
ele aparece vestido a rigor, de como quem vai para uma luta. Mostrou-se num quimono,
lutador de karatê. Daí, dá um berro e identificam um martelo na sua mão, uma
marreta, mais precisamente. Ele se dirige ao carro imóvel, presa fácil e
desfere golpes violentos. Olhos esbugalhados, um ar de louco no ar, uma ira
insana tomando conta de Tripa, seu sonho, aquele carro que lhe dera muita dor
de cabeça, acabara com seu casamento, fizera pouco dele, endemoninhado, nunca
mais mangaria dele, nunca mais.
- Ele
está doido!
- Endoideceu
de vez!
Depois
de ver os destroços, Tripa fitou o que restava do seu bem amado e se vira para
a plateia. Está desfigurado, bate uma mão na outra demovendo a poeira que
porventura pudesse sujá-lo, passa o braço na testa demonstrando ar de cansaço,
põe as mãos à cintura, olha enviesado e se dar por satisfeito.
- Tô
vingado!
Alguém
ainda ousou se aproximar e desferir uma pergunta ao louco. Mas, nenhuma sílaba
obteve por resposta.
A mulher
escafedera, nua e perdida naquela noite sinistra. E como o futuro a Deus
pertence, teria de recomeçar, procurar o velho Rosas e se aconselhar, começar
de novo.
- Mas,
vem cá, diz uma coisa: pra quê você amarrar o carro, Tripa?
- Pra
não escapulir da minha vingança. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
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Imagem: La recolte, da pintora
portuguesa Maria Helena Vieira da Silva
(1908-1992).
Veja mais Fecamepa, Georges
Bataille, Viviane Mosé, Torquato Tasso, Ástor Piazzolla, Bernardo Bertolucci, Mary Louise Brooks, Wanda Gág & Dominique Sanda aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem: arte de Walter S. Parker.