JOGO DURO
Luiz Alberto Machado
O futebol sempre fora uma daquelas
avassaladoras paixões do povinho simples de Alagoinhanduba. Era mesmo. Para se
ter uma ideia, tirante os festejos da padroeira, da emancipação local e das
quatro festas do ano, o jogo era a atração indispensável nas vinte e quatro
horas que cobriam os mais recônditos e aprazíveis escaninhos dali. Basta! Ó!
Fosse no mormaço do dia ou no prurido da noite, era só baralho, dominó,
porrinha, gamão, fliperama, apostas, da velha, pules, palpites, adivinhações e
similares, ocupando o ócio daquele povinho sem futuro no abismo dos instantes.
A sensaboria só abandonava aquilo ali apenas nas eleições, nos escândalos, nos
adultérios flagrados, nas ostentações ruidosas dos pirobos, nas festas do
calendário oficial ou no azáfama de uma competição marcada para o estádio
local. Ah, o campo não era nenhum Maracanã, mas era o orgulho dos munícipes,
principalmente nas decisões dos clubes que se digladiavam num campeonato cheio
de rodadas, quadrangulares, melhor de três, na vera, valendo, revanche,
desforra, nêga, repescagens, cartolagem, conchavos e arrumações, para uma
inequívoca decisão entre os favoritos Anhaguera Sporting Club Alagoinhandubense
e o Gremio Esportivo Usina Santa Anunciação dos Martírios, popularmente
conhecidos como Anhaguera e Martírios, as cores mais favoritas, com privilégios
até superiores aos da Seleção Brasileira. Ôxe, bote fé. Os protagonistas desta
maratona batiam o pontapé inicial a primeiro de janeiro, nos festejos do ano
novo, encerrando a temporada com uma decisão ruidosa e cheia de animosidade no
dia 24 de dezembro, sob as bênçãos fraternais do momento natalino. Apesar de se
encerrar a contenda às vésperas do Natal, o resultado do certame não era tão
altruístico assim, como se exigia que fosse. Mas, destá! Vôte! A decisão sempre
vinha acompanhada de vandalismo dos espíritos beligerantes que arengavam por
todas as ruas, artérias, logradouros, recantos, transversais, avenidas, becos,
vielas, cancelas, mata-burros, rodagens, rodovias, ferrovias, distritos,
vilarejos, arruados, esquinas, veredas, alhures, antros, capoeiras, várzeas,
travessas, rincões e algures. Isso porque sempre findavam indignados com a lebre
levantada de uma suspeitável ladroagem dos cartolas, mais apimentada pelas
arbitragens duvidosas que apadrinhavam um ou outro naquele pleito
futebolístico. Menina, na vera, o negócio era fogo na roupa! Não havia como a
parcialidade tomar conta dos resultados, pendendo para um ou para outro,
balanceando os títulos entre os de maior torcida, acirrando ainda mais os
ânimos dos fanáticos mais febris. Na verdade, era um tanto de nebulosas
negociações que expectoravam nos comentários mais cabeludos dos torcedores,
invariavelmente, em pé de guerra contra o favorecimento desse ou daquele time.
Dá, então, para se entender que ali eram todos contra todos, envolvendo nervos,
músculos e desaforos, até findar na rebentada braba lascando a fachada dos
fariseus ardorosos. Quem lucrava com isso, era o farmacêutico Jactâncio
Numeriano e seus enfermeiros. Quanto maior a turba fosse incontrolável, mais
ele torcia para ver os aleijões de fora. E tinha mais: quem não podia pagar as
intervenções cirúrgicas ou as prescrições doidas do único ser que mais ou menos
entendia de desaleijar os arrebentados, tinha de ser bancado ou pela
prefeitura, ou pelos políticos apadrinhadores ou mesmo pelos próprios clubes
futebolísticos. Senão, já viu, a vaca tossia e novos escândalos arrebentavam
sob a ira dos familiares do vitimado. Cada um dos patrocinadores livravam logo
a sua pele, avalizando o atendimento necessário. Quem era doido avolumar mais
ainda as ingresias? Quem? Isso sem contar com os coadjuvantes que não possuam
protetorado algum, como Flamengo Barro Duro, Coité do Nóia Futebol Clube,
Sociedade Esportiva Alagoinhandubense, Canavieiro Esportivo, Calunga Escrete de
Ouro, Mata Garrote Esporte Centenário, Biriteiros Esporte Social, entre outros.
Aliás, este último, era a principal lanterninha e, às vezes, maior azarão dos
grandes clubes, devido posicionamento irregular de seus atletas antes, durante
e depois das competições. Outros escretes de pega-na-rua incrementavam os
turnos esportivos, ora causando dor de cabeça nos majoritários, ora se
desfazendo após a primeira derrota clamorosa, agigantando o miúdo confronto
entre os de maior torcida. Os dois principais líderes massacravam seus
adversários com goleadas estrondosas, garantindo uma competição no confronto da
final das finais, com uma expectativa de emoções muitas e desacertos
demasiados.
Naquele ano, ao final de uma ruidosa e
irregular trambicagem no tapetão, o Anhanguera tornara-se octacampeão. Por
isso, os índices de mortalidade aumentaram de bater recorde nas estatísticas
locais. Nunca tanta gente virara alvo de balas, facadas, esfoladas, cacetadas,
foiçada e petecada. E o pior, era que cada morto arrastava mais outros tantos
para a cova, devido a rixa que nascia e não terminaria nem tão cedo. Com o
título, estava prevista a festa da entrega de faixas. E depois de muita noite
de sono, escolheram uma agremiação de renome, o Escolinha Futebol Clube, time
de uma cidade vizinha que se sagrara nebulosamente campeão estadual, derrotando
as equipes favoritas da capital. Fora, sem dúvida, um certame duro,
desmoralizador, zebra das zebras, a ponto de todo futebol do estado ficar de
cabeça baixa.
Alagoinhanduba nem se parecia com aquela
pasmaceira de dias longos e noites maiores, como sempre. Uma algazarra
esfuziante tomava conta da cidade. Logo de manhã o prefeito inaugurara um
montão de obras públicas, retribuindo como gratidão tanto aos atletas do
Anhaguera pelo feito bravo e histórico, quanto aos eleitores e desafetos do
lugar. Inventara de última hora a entrega das faixas de campeão aos atletas
oito vezes consecutivos líderes na história do futebol daquela cidade, para
premiá-los com uma parafernália sem precedentes na história do município. A
festa, grande, com inaugurações do chafariz da rua São Lucas dos Desesperados,
com discursos e encerramento do pavilhão local tremulando ao lado das bandeiras
estaduais e nacionais; era o calçamento do bairro do Caçotinho, com uma
passeata rumorosa e pesunhando forte sobre o paralelepípedo invés de massapê;
era a arborização da Praça Santo Aquino dos Embriagados, mais lugar próprio
para mijada de cachorro e homenagem a uma palmeira centenária no meio da rua; a
iluminação da rua Santo Antão dos Devedores, antes escuridão de breu; e tantas
e tantas outras realizações da administração pública de somenos importância,
complementando a efeméride. Houve discurseira dos mais importantes da região,
augurando melhorias para aquela gente pacata, mera demagogia dos políticos
aplaudidos com fervor. Os mais importantes como o Padre Lucidalvo, o major
Ernestildo Cavalcante, o fiscal de rendas e pretenso candidato a prefeito,
Edtelmo Justiniano, o presidente da Câmara de Vereadores e bodegueiro Joventino
Emereciano, o tabelião Adautino Lopes, e a primeira-dama e cafetina
Lindinaldita e seu marido puxando o saco do Deputado João-dos-cavalos pelos
melhoramentos empreendidos com sua interveniência ali, se ajuntavam num
palanque, gritando seus propósitos inúteis para esquentar a festividade.
Ao meio dia em ponto, toda a população se
espremia concentrada em frente ao palanque armado na calçada da catedral da
matriz, portando faixas e cartazes em homenagem ao Anhaguera. A expectativa era
grande e as emissoras de rádio das cidades vizinhas se aboletaram ali,
instalando seus equipamentos e locutores para cobrir todo evento, dos discursos
inflamados até a partida que estava por acontecer. Era uma gritaria, um
puxa-e-encolhe e todos apinhados, aguardando a hora do confronto e a chegada do
visitante.
Na cabeça de cada um, estava a imagem da
pompa com que eles chegariam, beiçudos e metidos-a-merda, cheios de nove horas.
Não era pra menos, aqueles eram os atuais campeões. Deveriam de chegar num
daqueles ônibus executivos, de vidros fumê e ar refrigerado, daquele de não sei
quantos pneus e de uma elegância autoritária só vista na televisão.
Com mais de hora de gritaria, eis que surge
um caminhão desgovernado, indo direto para foder a multidão. Era um daqueles
caindo os pedaços, com um bocado de marmanjo na carroceria e um desatinado
gritador na boleia, vociferando para os da frente saírem por motivos de
ausência dos respectivos freios. Nossa, que vexame! Foi uma correria, de
resultar meio mundo de gente nas calçadas arranhando as fuças, testas, braços,
antebraços, queixos, orelhas, mãos, dedos, pernas e troncos; uns tantos com membros
fraturados, fissuras musculares, pescoços entronchados, colunas desminliguidas,
pernas desconjuntadas, gaias arrancadas, dedos desmentidos, coxas contundidas,
olhos enviesados, dentes extraídos, cotovelos ensambocados, pulsos
imobilizados, clavículas arreadas, costelas partidas, até um certo maluvido que
não entendera o que ocorria, findando por perder os documentos sexuais
pendurado no para-choque do caminhão enfezado.
- Tô capado, gente! Tô capado! -, era o grito
de desespero do anônimo.
O que antes era alegria resultou num
atendimento hospitalar das maiores consequências, uma vez que o comercial
pesado de marca não-identificada e surgido do inopinado quase atropelara a
população inteira, causando uma catástrofe ruidosa. Felizmente o inominado
veículo esbarrou na palmeira centenária que estava fincada há anos no meio da
rua.
- Isto é lá lugar de plantar uma árvore! Ela
num saiu da frente, ó!
O povo, ôxe, mordido e ouriçado, protestava
veementemente contra o veículo que se intrometera no meio das comemorações. Um
dos ocupantes da boleia já se refazendo do incidente, ainda conseguiu indagar
de um transeunte salvo, onde se estabelecia a prefeitura.
- É ali mas trate logo de tirar esta merda
véia da frente que o ônibus da escolinha tá vindo aí!
Depois de muito empurra-empurra e safanões,
certificaram-se ser aquele veículo desgraçado o que dava por condução da
famigerada Escolinha. Ah! É nada? O quê? Sim... mas pia só? Foi muito apupo e
revolta.
- Tão querendo acabar a festa, é ?
- É mentira!
- Bota logo eles para correr, gente!
Foi pra mais de uma hora de discussão. Era,
não era! Até que conciliaram: para tirar a dúvida era só chamar o contato. Era
exatamente Zé Bolo Cru.
- Cadê ele?
- Tá na feira de Ribingudo!
Era dia de domingo, saíram procurando,
caçando agulha num palheiro, encontraram três meninos perdidos dos pais; um
desaparecido de sessenta e quatro; três pés de cobra; duas moscas azuis; um
saci pererê que insistia em ser sobrinho de Pelé; um fiscal de renda liso; o
décimo terceiro de um trabalhador desatento completamente intacto; e o contato
que era bom, nada. O prefeito vendo aquele esforço deles de se autenticarem
originais, legítimos e indubitáveis integrantes da famigerada Escolinha,
levou-los para um canto, arquitetando um plano onde tudo ficaria o dito por não
dito e politicamente o edil solucionou a questão secretamente, uma vez não
sendo aqueles intrusos os tais da atual campeã estadual, perderiam o jogo para
o Anhanguera, engrandecendo o clássico com uma vitória, a bem da população
local, premiada então com uma goleada. E tudo acertado às secretas, o homem
achou de encaminhá-los para o banquete comemorativo. Os visitantes respiraram
aliviados não sabendo da tramoia em que se metiam. O banquete, mesmo, mais
parecia um defunto estirado coberto por um longo pano branco encardido.
- Isto é um restaurante ou um necrotério?
Aquilo na mesa era um leitão cozido, isto é,
mal cozido, acompanhado de um macarrão grosso que o cozinheiro dispunha nos
pratos com as mãos mesmos, mais enrolados que festival de minhocas numa
esplendorosa suruba. Além disso, um ponche alaranjado bem escuro mais parecendo
mijo de doente renal, conferindo que aquela cor escurecida era proveniente da
qualidade de açúcar que se fabricava por ali. Ainda era servido um arroz que
mais parecia papa, mais umas tantas iguarias peculiares da região, visitadas
constantemente pelas simpáticas moscas e mosquitos, dando uma ideia da
higiênica comilança. O ambiente não era lá tão imundo. Não, que é isso? Só
havia uma pocilga na vizinhança causando uma fedentina dos diabos, um chiqueiro
dos mais fedorentos, uns duzentos guenzos que não sabiam o que era água há mais
de dez anos e que não ficavam quietos com patas sobre a mesa, fiscalizando as
guloseimas e deixando cair no assoalho de cimento batido, uns carrapatinhos
indesejáveis. Ôxe, o que tinha de gatos, galinhas, saguis, cavalos, garnizés,
patos, marrecos, concrizes, bicharada toda com várias espécies de insetos que
futucavam um ou outro presente, tudo reunido numa estrebaria nos fundos do
estabelecimento. Na hora do vamos ver, o prefeito achou por bem de abrir o
apetite com seu proeminente ar de orador de plantão, proferindo um discurso
entediante sobre landraces, wissex, duroc, sobre os mamíferos artiodáctilos da
família dos suínos e suas espécies caetetu ou queixada, a canastra, a caruncho,
a piau e a dos cerdos de um modo geral. Durou uns cinquenta minutos de
palavrório, discorrendo detalhadamente sobre a apetitosa carne vermelha,
destacando o pernil e o lombo como de sua preferência alimentar, concluindo ser
ele, além de criador, um profundo conhecedor dos suínos. Quando ninguém
aguentava mais o saco, ele conclamou a todos a comer e beber comedidamente, vez
que ainda restavam tantos outros bichos para serem devorados pela gula de todos
naquela solenidade ímpar em Alagoinhanduba, terra querida, berço incólume das
riquezas dele. Aplausos rápidos e avanço na amolagem dos dentes. A multidão se
aglomerara dum jeito de deixar neguinho distante mais de metro para alcançar a
mesa.
- Eu mesmo engoli, agora mesmo, um mosquito!
-, reclamava quem ainda não havia nem tocado em nada.
A fome era grande e atacaram assim mesmo a
comida regada a uma boa lapada de cana-de-açúcar lavada com uma cerveja choca,
mergulhada, cheia de gelo, no pé do pote. A bebida e a comida, pelo que foram
reabastecendo, dava para muitos dias de refrega. Os da Escolinha, a-há, acharam
de encher o tampo na bebida, apostando os copos e goles, esquentando as
orelhas.
Post meridiem.
Lá para as tantas, quando o sol já ameaçava
descansar, rumaram para o campo. Chegaram todos no estádio, cada atleta se
dirigindo para o vestiário. E o povo amontoando-se nas beiradas do campo. Os da
Escolinha foram persuadidos a entregar seus pertences ao representante
responsável pela comitiva e depositaram nas mãos dele todos os objetos de uso e
os que traziam consigo. Entregaram um por um, depositando-os num saco. O
diretor da equipe achou por bem conferir tudo: quinze relógios, nove
trancelins, seis carteiras – fazendo questão de contar o dinheiro depositando-o
em seu próprio bolso de forma escondida – quatro santinhos, oito camisinhas, um
anel, duas alianças, sete carteiras de moedas, quatro pulseiras, dois brincos,
uma foto de Zico, dois escudos do Corinthians, seis moedas, três pentes, um espelho,
dezessete camisas, onze cuecas, cinco bermudas, quatro calças, cinco sandálias,
três chinelos, dois tênis, dois sapatos, um par de meias com chulé, uma sunga
suja de mais de oito dias com uma lista de merda na bunda, um óculos de lentes
arranhadas, três bonés encardidos, uma viseira, um walk-man, uma gargantilha,
duas lentes de contato, uma camiseta, uma oração-da-cabra-preta, três dentes de
alho, uma fita cassete de Roberto Carlos, um engov, duas cibalenas, um colírio,
uma baga de maconha, um galho de arruda, três revólveres, duas facas peixeiras,
uma pistola sete meia cinco, três pares de meiões, um short, um alka-seltzer,
duas envelopes de alcachofra, um galho de arruda, um desenho de Jesus e os
apóstolos, um copo, dois garfos, seis talheres, três pratos, uma bandeja, um
candelabro, duas velas, um incensário, um xarope vick, um talismã, três
crucifixos, uma flâmula do Flamengo, um cartão de cartomante, três ossos, uma
dentadura, um aparelho auditivo, uma chuteira velha, um rádio de pilha, uma pasta
de dentes, dois gels, dois shampoos, um condicionador de cabelo, três lâminas,
um chuncho, um pé de coelho, quatro senhas para o show dos concluintes do
Colégio Presbiteriano, um poster da Xuxa, um livro de química inorgânica, uma
revista pornô, um cartão postal de Maceió, um recorte de revista com a foto de
Tereza Collor, uma página dobrada com o desenho da Drag Car, um controle
remoto, dois desodorantes, cinco calendários de mulher nua com a boceta
arreganhada, três revistas em quadrinhos com trepadas muitas, uma agulha, um
retrós, um carretel de linha, uma presilha de cabelo, duas tiaras, uma chave de
fenda, uma foto de uma namorada de não sei quem, um pneu de bicicleta, uma
chave de cinto de castidade, duas camisinhas de Vênus, um folder do motel Tremedeira
Louca, uma válvula de botijão de gás, uma oração de mãe, duas canetas
esferográficas e sete fotos de turma no maior pileque.
- Esses meninos tem cada costume estranho,
virgem!
O povo se ouriçou mesmo quando viu o
visitante no gramado, fazendo o aquecimento com ginásticas e acrobacias
estranhas. Isso tudo sob vaias irritantes. O trio de arbitragem se encaminhava
para o centro do campo, conferindo tudo, afastando o povo, ordenando isso e
aquilo.
- Vamos começar o jogo! –, reclamou o juiz ao
time local ainda na concentração do estádio.
- Pode não, falta Bolo Cru!
- Quem?
- Bolo Cru.
O tal Bolo Cru além de contato era a
principal estrela do time, um craque para ela. Mais ainda: era cabo eleitoral
do Deputado João dos Cavalos, o padrinho da equipe, homem mais rico do lugar,
mais forte e poderoso, e, ainda, possuía umas afeições familiares pelo tal Bolo
Cru que desenrolava tudo para ele sem cobrar tostão, coisa de filho para pai.
Por aí se vê.
O juiz retornou ao centro do gramado, chamou
os bandeirinhas e numa atitude insólita agita os braços de um lado para o
outro, bota as mãos na cabeça e, por fim, começa a jogar palitinhos com os seus
auxiliares.
Depois de um aquecimento longo no gramado, o
capitão da Escolinha reclamou do juiz para que ele começasse o jogo cansado
devido demora do adversário. Haja espera. Não obtendo sucesso, ele reuniu seus
comandados e objetivou se preparar melhor para a peleja porque no almoço
tomaram muitas grades de cervejas além da conta, nego ia cansar logo logo. Vestiram
o padrão, ouviram o apito do juiz e se organizaram entre as quatro linhas do
gramado.
A equipe local ainda se encontrava nos
vestiários. Pela demora, deu uma mijadeira nos visitantes, um por um se
espremendo até o banheiro; outros que não aguentavam, mijavam ali mesmo,
depois, uns dois foram presos por indecência e despudor públicos – queriam
urinar na torcida. Ôxe, e deu tempo? Deu o maior mijadeiro no time, de quase
afogar todo mundo. Danaram-se a fazer aquecimento intensivo, se exercitaram
além da conta, deram uma carreira no gramado atrás da bola e apagaram o fogo.
Um deles deu logo uma vomitada no pé do bandeirinha, ficando verde que só pé de
coentro. Arreado, foi de maca para o banco de reservas. Outro bem chamuscado do
aperitivo, num treinamento, pediu um cruzamento, bola na área, ele chutou,
errou a pelota, caiu dentro do gol e quis, por fim da força, que o juiz
validasse o gol quando a partida nem tinha começado. O técnico da Escolinha
teve que rever umas quinhentas vezes a escalação do time visto que alguns
apresentavam, após aquela comilança, sinais visíveis de debilidade física. E
aumentando o seu prejuízo, teve um outro bem dosado que armou a maior confusão,
xingando todo mundo e dizendo que ali só tinha corno e provocou o maior auê, a
ponto de levar um corretivo no maluvido, caindo estendido fora de campo, sem
sentido. Depois de uns entreveros endemoniados, por fim, ou melhor, por
enquanto, reinou a calma. Isso porque, três horas e meia de atraso, noite
escurecida, metade dos refletores acesos e a outra sem dá sinal de vida,
sorrateiramente adentra os portões do colosso das multidões, todo engalanado,
recém-saído de uma cama quentinha com a amásia – com quem havia derrubado três
trepadas da boa –, ajeitando o pixaim no maior rebolo, e dirigindo-se para o
vestiário com ar de mister universo sob aplausos da plateia eufórica, quem?
Quem? Zé Bolo Cru, em carne e osso, ao vivo e em cores, num verdadeiro ouriço
da torcida do Anhanguera.
Alguns minutos depois, devidamente
paramentado, numa indumentária hilária do padrão doado pelo Deputado João dos
Cavalos, com a propaganda do estabelecimento comercial do parlamentar nos
costados, Funerária Morra Feliz, Bolo Cru deu três saltos soltos no ar, cinco
cambalhotas ineivadas, mesuras para a plateia, deferência para o deputado nas
gerais e fez um sinal pro juiz iniciar a partida.
- A saída é deles! –, ordenou duro pro juiz.
O árbitro exigiu silêncio, contou os onze
jogadores de cada lado e, peraí, um detalhe: o de preto que todo mundo
esculhambava a mãe e familiares, se encontrava no centro do gramado, urubu
desalmado e xingado a plenos pulmões, era aleijado, coitado, e fiscalizaria
tudo dali mesmo do meio de campo. Era respeitado pelos jogadores porque a muleta
era a sua arma, viesse não jogador malcriado pra banda dele que o cacete comia
no centro.
Antes do início da contenda, ajoelhou-se com
dificuldade no círculo central do tapetão e começou a rezar. E orou, se benzeu
e deu o apito inicial.
A resenha esportiva toda assanhada se pôs a
anunciar a escalação dos clubes, comentando o favoritismo da Escolinha,
provando por a mais b, na prova dos nove, que o atual campeão estadual
massacraria a agremiação do Anhanguera.
Pro negócio pegar mais fogo ainda, a torcida
do Martírios virou-se toda a favor dos visitantes, alimentando a intriga
provinciana.
Logo aos dois minutos, num ataque velocíssimo
Bolo Cru humilhou a zaga da Escolinha, driblando tudo e dando três voltas de
caírem sentados, verdadeira bunda no chão. Por causa disso, um dos zagueiros
ofendidos deu-lhe uma raquetada daquelas de lhe arrancar o samboque da cara
dele com a chuteira. O pau comeu. O juiz ficou observando tudo sem se meter no
rebuliço. O zagueiro só deu umas três voltas no campo com a torcida toda atrás
dele, pega mas num pega, enveredou no avelóis e só foi encontrado três semanas
depois na cidade de Rodamundo, uns setenta quilômetros dali. Ânimos arreados,
ninguém expulso já que o ofensor voluntariamente se evadira deixando a
Escolinha desfalcada, apenas com dez jogadores em campo, reiniciando tudo no
meio do maior tumulto.
Pouco tempo depois, um certo jogador
apelidado por Manjuba, sujeito dum porte de umas toneladas, centroavante do
Anhaguera, parou a bola, alisou a peia e deu um toque para Bolo Cru que se
encontrava ainda meio zonzo com a pernada do zagueiro. Era uma jogada ensaiada,
já que Manjuba sabia que Bolo ia fazer uns estragos danados, esperando o
desfecho do lance para receber o toque na caixa torácica e levar todo mundo da
defesa contrária no peito para dentro das redes; goool! Anhaguera. Ovação! Um a
zero no placar.
Nem meio minuto depois, se repetia a mesma
jogada, Manjuba segura o caralho que se sobressai do seu calção branco com sua
cueca bem avermelhada, aí se prepara para a devastação, quando Bolo perde o
domínio da pelota caindo com ela na linha de fundo. Aaaaaaaaaaaaaaah! Batido o
tiro de meta a bola, foi cair justamente num rebolado do time visitante, um
ponta direito avexado que saiu na carreira, passou pitu no lateral, deu um
banho de cuia no volante, deixou o líbero sentado, a torcida apavorada, só
parando o reboliço porque sentiu nas costas um indigesto prato de bosta de boi.
Foi o técnico do Anhanguera que invadira o campo e tascou-lhe a meleca nas
costas com raiva do capeta que, sem dúvida, reverteria o escore do jogo. Vistas
grossas no lance, um novo tiro de metas foi batido, e ninguém sabe como, de supetão,
a Escolinha empatou a partida. Ó ó óóóóóóóóó... Os xingamentos ganharam
proporção com adjetivos e apupos nada alvissareiros, mau presságio para o final
da partida.
- Sai pra lá Suco de Pneu!
- Cana Queimada!
- Stibiu!
- Ôi de Bomba!
- Bailarina da meia noite!
Foi com tal provocação que o beque do
visitante se encostou no Bolo Cru, marcação cerrada, e não era para declaração
de amor para todo o sempre, amém; nada, e numa jogada de somenos, o atacante
desferiu um certeiro depois de um traço da vaca, quebrando três dentes do
infeliz do beque. O pau cantou de novo.
- Ou perde no campo ou apanha na rua!
Nesse tumulto passaram uma rasteira na muleta
do juiz e o buruçu estava pronto. A polícia entrou em campo e ao invés de
garantir a partida, meteu o cacete nos jogadores. O rolo cresceu de volume e
sem a menor previsão para terminar. É certo que àquela altura já havia saído
bala, uns trezentos tiros com um total de quatro vítimas fatais e cento e
sessenta e oito em estado grave, fora uns duzentos e cinquenta e tantos feridos
e uns seis casos em estado interessante que se sentiram mal. Porém, o estádio
continuava apinhado, gente como a praga prestigiando o clássico deles. Contornar
mesmo o pandemônio, só com a intervenção do Juiz de Direito da Comarca, Dr.
Zezito Dalsa, que se encontrava de plantão para apaziguar os ânimos, não antes
haver dado voz de prisão para umas vinte dúzias de elementos baderneiros que avolumavam
o bafafá. Para encurtar a história, Bolo Cru fora recolhido à maternidade
local, uma vez que ali não dispunha de hospital nem unidade de emergência,
devido munhecadas avulsas e anônimas. As vítimas fatais foram: Bilunga de
Nonoca, qualificado posteriormente como gigolô da dita cuja; Balaio, um pedinte
adoidado que não sabia nem onde estava; Gogeba, um cachaceiro de bodega que
adentrara naquele recinto só para passar sua bebice; e Garinha, uma putazinha
menor-de-idade levada ali pelo deputado para uns xambregozinhos entre outros
atrevimentos. Todos uns desavisados que entraram na briga sem saber do que se
tratava, descobrindo-se depois que enveredaram no beligerante vuque-vuque
porque imaginavam ser ali ocasião de distribuição de brindes e dinheiro. Resultado:
toda zaga do Escolinha fora expulsa e devidamente encarcerada pela lei da
justiça e da ordem. O técnico da Escolinha, abestalhado com o que se dera, não
havia se passado nem cinco minutos de jogo, escalou de pronto quatro penetras
que vinham de bigu no caminhão, retirando outros tantos da linha de frente para
suprir sua defesa. Bem, se um zagueiro fugira e outros três foram expulsos, a
equipe só contava em campo com apenas sete jogadores. E sem que ninguém esperasse,
devido a cervejada, outros seis atletas acrescentaram furtivamente o time em
desvantagem, quer dizer, a Escolinha contava então com treze jogadores, só
descoberta a trama aos dez minutos do primeiro tempo, sendo recolhidos os
intrusos na delegacia local, devidamente enquadrados nas peças iniciais de um
inquérito policial, conforme os ditames penais arrumados ali. E o jogo
continuou pesado como estava.
Aos quinze minutos, o goleiro visitante que
havia tomado vinte cachetes de marca variada, não se conteve em pé, nem mais
via a bola que já saía atrás dela fora da área de permissão. Ôxe, o arqueiro
corria atrás da bola como quem quer pegar galinha, novo rebu. Depois de muita
agitação, tiraram o guarda-metas que estava doido e, outro que nunca sequer
pegara uma bola parada, estava lá pronto para defender honrosamente as cores do
campeão estadual. Outra expulsão reduziu a seis: o ponteiro esquerdo insistia
em bater o lateral na marca do pênalti. Vôte! Novo carnaval. Soube-se que ele
havia ingerido um ponche mágico não sei onde.
O escrete local a partir de então era só
ataque. O zagueiro do Anhanguera não tendo como participar do jogo sentou-se
num montinho que havia no meio de campo e ali ficou assistindo tudo, entretido.
Do montinho surgiu um formigueiro cu adentro, foi o maior um berreiro.
Substituído, o enfermo foi levado para uma cirurgia médica em Tigres Vermelhos.
Mais cinco minutos o placar constava 4x1, um
gol legítimo e três pênaltis seguidos, multa administrada pelo juiz porque o
time visitante saíra das estribeiras. A mangação começou forte com gritos de
olé. Pelo visto, é de se esperar que a dileta leitora imagine que o jogo não
terminou. Terminou: exatamente aos vinte e dois minutos do primeiro tempo,
porque, num arranca-rabo sem limites, roubaram a muleta do juiz. Aí, o negócio
ficou feio. O cacete comeu no centro. Ainda ouvi algum jogador dizer:
- Nunca mais eu venho aqui, meu!
- Vamo simbora, besta, que lá vem o povo infesado!
© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem:
a arte da artista plástica Milena Olesinska.
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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: Nu de pé - Óleo
sobre tela 90 x 80, do artista plástico Silva
Teixeira.