terça-feira, março 15, 2016

JOGO DURO


JOGO DURO

Luiz Alberto Machado

O futebol sempre fora uma daquelas avassaladoras paixões do povinho simples de Alagoinhanduba. Era mesmo. Para se ter uma ideia, tirante os festejos da padroeira, da emancipação local e das quatro festas do ano, o jogo era a atração indispensável nas vinte e quatro horas que cobriam os mais recônditos e aprazíveis escaninhos dali. Basta! Ó! Fosse no mormaço do dia ou no prurido da noite, era só baralho, dominó, porrinha, gamão, fliperama, apostas, da velha, pules, palpites, adivinhações e similares, ocupando o ócio daquele povinho sem futuro no abismo dos instantes. A sensaboria só abandonava aquilo ali apenas nas eleições, nos escândalos, nos adultérios flagrados, nas ostentações ruidosas dos pirobos, nas festas do calendário oficial ou no azáfama de uma competição marcada para o estádio local. Ah, o campo não era nenhum Maracanã, mas era o orgulho dos munícipes, principalmente nas decisões dos clubes que se digladiavam num campeonato cheio de rodadas, quadrangulares, melhor de três, na vera, valendo, revanche, desforra, nêga, repescagens, cartolagem, conchavos e arrumações, para uma inequívoca decisão entre os favoritos Anhaguera Sporting Club Alagoinhandubense e o Gremio Esportivo Usina Santa Anunciação dos Martírios, popularmente conhecidos como Anhaguera e Martírios, as cores mais favoritas, com privilégios até superiores aos da Seleção Brasileira. Ôxe, bote fé. Os protagonistas desta maratona batiam o pontapé inicial a primeiro de janeiro, nos festejos do ano novo, encerrando a temporada com uma decisão ruidosa e cheia de animosidade no dia 24 de dezembro, sob as bênçãos fraternais do momento natalino. Apesar de se encerrar a contenda às vésperas do Natal, o resultado do certame não era tão altruístico assim, como se exigia que fosse. Mas, destá! Vôte! A decisão sempre vinha acompanhada de vandalismo dos espíritos beligerantes que arengavam por todas as ruas, artérias, logradouros, recantos, transversais, avenidas, becos, vielas, cancelas, mata-burros, rodagens, rodovias, ferrovias, distritos, vilarejos, arruados, esquinas, veredas, alhures, antros, capoeiras, várzeas, travessas, rincões e algures. Isso porque sempre findavam indignados com a lebre levantada de uma suspeitável ladroagem dos cartolas, mais apimentada pelas arbitragens duvidosas que apadrinhavam um ou outro naquele pleito futebolístico. Menina, na vera, o negócio era fogo na roupa! Não havia como a parcialidade tomar conta dos resultados, pendendo para um ou para outro, balanceando os títulos entre os de maior torcida, acirrando ainda mais os ânimos dos fanáticos mais febris. Na verdade, era um tanto de nebulosas negociações que expectoravam nos comentários mais cabeludos dos torcedores, invariavelmente, em pé de guerra contra o favorecimento desse ou daquele time. Dá, então, para se entender que ali eram todos contra todos, envolvendo nervos, músculos e desaforos, até findar na rebentada braba lascando a fachada dos fariseus ardorosos. Quem lucrava com isso, era o farmacêutico Jactâncio Numeriano e seus enfermeiros. Quanto maior a turba fosse incontrolável, mais ele torcia para ver os aleijões de fora. E tinha mais: quem não podia pagar as intervenções cirúrgicas ou as prescrições doidas do único ser que mais ou menos entendia de desaleijar os arrebentados, tinha de ser bancado ou pela prefeitura, ou pelos políticos apadrinhadores ou mesmo pelos próprios clubes futebolísticos. Senão, já viu, a vaca tossia e novos escândalos arrebentavam sob a ira dos familiares do vitimado. Cada um dos patrocinadores livravam logo a sua pele, avalizando o atendimento necessário. Quem era doido avolumar mais ainda as ingresias? Quem? Isso sem contar com os coadjuvantes que não possuam protetorado algum, como Flamengo Barro Duro, Coité do Nóia Futebol Clube, Sociedade Esportiva Alagoinhandubense, Canavieiro Esportivo, Calunga Escrete de Ouro, Mata Garrote Esporte Centenário, Biriteiros Esporte Social, entre outros. Aliás, este último, era a principal lanterninha e, às vezes, maior azarão dos grandes clubes, devido posicionamento irregular de seus atletas antes, durante e depois das competições. Outros escretes de pega-na-rua incrementavam os turnos esportivos, ora causando dor de cabeça nos majoritários, ora se desfazendo após a primeira derrota clamorosa, agigantando o miúdo confronto entre os de maior torcida. Os dois principais líderes massacravam seus adversários com goleadas estrondosas, garantindo uma competição no confronto da final das finais, com uma expectativa de emoções muitas e desacertos demasiados.

Naquele ano, ao final de uma ruidosa e irregular trambicagem no tapetão, o Anhanguera tornara-se octacampeão. Por isso, os índices de mortalidade aumentaram de bater recorde nas estatísticas locais. Nunca tanta gente virara alvo de balas, facadas, esfoladas, cacetadas, foiçada e petecada. E o pior, era que cada morto arrastava mais outros tantos para a cova, devido a rixa que nascia e não terminaria nem tão cedo. Com o título, estava prevista a festa da entrega de faixas. E depois de muita noite de sono, escolheram uma agremiação de renome, o Escolinha Futebol Clube, time de uma cidade vizinha que se sagrara nebulosamente campeão estadual, derrotando as equipes favoritas da capital. Fora, sem dúvida, um certame duro, desmoralizador, zebra das zebras, a ponto de todo futebol do estado ficar de cabeça baixa.

Alagoinhanduba nem se parecia com aquela pasmaceira de dias longos e noites maiores, como sempre. Uma algazarra esfuziante tomava conta da cidade. Logo de manhã o prefeito inaugurara um montão de obras públicas, retribuindo como gratidão tanto aos atletas do Anhaguera pelo feito bravo e histórico, quanto aos eleitores e desafetos do lugar. Inventara de última hora a entrega das faixas de campeão aos atletas oito vezes consecutivos líderes na história do futebol daquela cidade, para premiá-los com uma parafernália sem precedentes na história do município. A festa, grande, com inaugurações do chafariz da rua São Lucas dos Desesperados, com discursos e encerramento do pavilhão local tremulando ao lado das bandeiras estaduais e nacionais; era o calçamento do bairro do Caçotinho, com uma passeata rumorosa e pesunhando forte sobre o paralelepípedo invés de massapê; era a arborização da Praça Santo Aquino dos Embriagados, mais lugar próprio para mijada de cachorro e homenagem a uma palmeira centenária no meio da rua; a iluminação da rua Santo Antão dos Devedores, antes escuridão de breu; e tantas e tantas outras realizações da administração pública de somenos importância, complementando a efeméride. Houve discurseira dos mais importantes da região, augurando melhorias para aquela gente pacata, mera demagogia dos políticos aplaudidos com fervor. Os mais importantes como o Padre Lucidalvo, o major Ernestildo Cavalcante, o fiscal de rendas e pretenso candidato a prefeito, Edtelmo Justiniano, o presidente da Câmara de Vereadores e bodegueiro Joventino Emereciano, o tabelião Adautino Lopes, e a primeira-dama e cafetina Lindinaldita e seu marido puxando o saco do Deputado João-dos-cavalos pelos melhoramentos empreendidos com sua interveniência ali, se ajuntavam num palanque, gritando seus propósitos inúteis para esquentar a festividade.

Ao meio dia em ponto, toda a população se espremia concentrada em frente ao palanque armado na calçada da catedral da matriz, portando faixas e cartazes em homenagem ao Anhaguera. A expectativa era grande e as emissoras de rádio das cidades vizinhas se aboletaram ali, instalando seus equipamentos e locutores para cobrir todo evento, dos discursos inflamados até a partida que estava por acontecer. Era uma gritaria, um puxa-e-encolhe e todos apinhados, aguardando a hora do confronto e a chegada do visitante.

Na cabeça de cada um, estava a imagem da pompa com que eles chegariam, beiçudos e metidos-a-merda, cheios de nove horas. Não era pra menos, aqueles eram os atuais campeões. Deveriam de chegar num daqueles ônibus executivos, de vidros fumê e ar refrigerado, daquele de não sei quantos pneus e de uma elegância autoritária só vista na televisão.

Com mais de hora de gritaria, eis que surge um caminhão desgovernado, indo direto para foder a multidão. Era um daqueles caindo os pedaços, com um bocado de marmanjo na carroceria e um desatinado gritador na boleia, vociferando para os da frente saírem por motivos de ausência dos respectivos freios. Nossa, que vexame! Foi uma correria, de resultar meio mundo de gente nas calçadas arranhando as fuças, testas, braços, antebraços, queixos, orelhas, mãos, dedos, pernas e troncos; uns tantos com membros fraturados, fissuras musculares, pescoços entronchados, colunas desminliguidas, pernas desconjuntadas, gaias arrancadas, dedos desmentidos, coxas contundidas, olhos enviesados, dentes extraídos, cotovelos ensambocados, pulsos imobilizados, clavículas arreadas, costelas partidas, até um certo maluvido que não entendera o que ocorria, findando por perder os documentos sexuais pendurado no para-choque do caminhão enfezado.

- Tô capado, gente! Tô capado! -, era o grito de desespero do anônimo.

O que antes era alegria resultou num atendimento hospitalar das maiores consequências, uma vez que o comercial pesado de marca não-identificada e surgido do inopinado quase atropelara a população inteira, causando uma catástrofe ruidosa. Felizmente o inominado veículo esbarrou na palmeira centenária que estava fincada há anos no meio da rua.

- Isto é lá lugar de plantar uma árvore! Ela num saiu da frente, ó!

O povo, ôxe, mordido e ouriçado, protestava veementemente contra o veículo que se intrometera no meio das comemorações. Um dos ocupantes da boleia já se refazendo do incidente, ainda conseguiu indagar de um transeunte salvo, onde se estabelecia a prefeitura.

- É ali mas trate logo de tirar esta merda véia da frente que o ônibus da escolinha tá vindo aí!

Depois de muito empurra-empurra e safanões, certificaram-se ser aquele veículo desgraçado o que dava por condução da famigerada Escolinha. Ah! É nada? O quê? Sim... mas pia só? Foi muito apupo e revolta.

- Tão querendo acabar a festa, é ?

- É mentira!

- Bota logo eles para correr, gente!

Foi pra mais de uma hora de discussão. Era, não era! Até que conciliaram: para tirar a dúvida era só chamar o contato. Era exatamente Zé Bolo Cru.

- Cadê ele?

- Tá na feira de Ribingudo!

Era dia de domingo, saíram procurando, caçando agulha num palheiro, encontraram três meninos perdidos dos pais; um desaparecido de sessenta e quatro; três pés de cobra; duas moscas azuis; um saci pererê que insistia em ser sobrinho de Pelé; um fiscal de renda liso; o décimo terceiro de um trabalhador desatento completamente intacto; e o contato que era bom, nada. O prefeito vendo aquele esforço deles de se autenticarem originais, legítimos e indubitáveis integrantes da famigerada Escolinha, levou-los para um canto, arquitetando um plano onde tudo ficaria o dito por não dito e politicamente o edil solucionou a questão secretamente, uma vez não sendo aqueles intrusos os tais da atual campeã estadual, perderiam o jogo para o Anhanguera, engrandecendo o clássico com uma vitória, a bem da população local, premiada então com uma goleada. E tudo acertado às secretas, o homem achou de encaminhá-los para o banquete comemorativo. Os visitantes respiraram aliviados não sabendo da tramoia em que se metiam. O banquete, mesmo, mais parecia um defunto estirado coberto por um longo pano branco encardido.

- Isto é um restaurante ou um necrotério?

Aquilo na mesa era um leitão cozido, isto é, mal cozido, acompanhado de um macarrão grosso que o cozinheiro dispunha nos pratos com as mãos mesmos, mais enrolados que festival de minhocas numa esplendorosa suruba. Além disso, um ponche alaranjado bem escuro mais parecendo mijo de doente renal, conferindo que aquela cor escurecida era proveniente da qualidade de açúcar que se fabricava por ali. Ainda era servido um arroz que mais parecia papa, mais umas tantas iguarias peculiares da região, visitadas constantemente pelas simpáticas moscas e mosquitos, dando uma ideia da higiênica comilança. O ambiente não era lá tão imundo. Não, que é isso? Só havia uma pocilga na vizinhança causando uma fedentina dos diabos, um chiqueiro dos mais fedorentos, uns duzentos guenzos que não sabiam o que era água há mais de dez anos e que não ficavam quietos com patas sobre a mesa, fiscalizando as guloseimas e deixando cair no assoalho de cimento batido, uns carrapatinhos indesejáveis. Ôxe, o que tinha de gatos, galinhas, saguis, cavalos, garnizés, patos, marrecos, concrizes, bicharada toda com várias espécies de insetos que futucavam um ou outro presente, tudo reunido numa estrebaria nos fundos do estabelecimento. Na hora do vamos ver, o prefeito achou por bem de abrir o apetite com seu proeminente ar de orador de plantão, proferindo um discurso entediante sobre landraces, wissex, duroc, sobre os mamíferos artiodáctilos da família dos suínos e suas espécies caetetu ou queixada, a canastra, a caruncho, a piau e a dos cerdos de um modo geral. Durou uns cinquenta minutos de palavrório, discorrendo detalhadamente sobre a apetitosa carne vermelha, destacando o pernil e o lombo como de sua preferência alimentar, concluindo ser ele, além de criador, um profundo conhecedor dos suínos. Quando ninguém aguentava mais o saco, ele conclamou a todos a comer e beber comedidamente, vez que ainda restavam tantos outros bichos para serem devorados pela gula de todos naquela solenidade ímpar em Alagoinhanduba, terra querida, berço incólume das riquezas dele. Aplausos rápidos e avanço na amolagem dos dentes. A multidão se aglomerara dum jeito de deixar neguinho distante mais de metro para alcançar a mesa.

- Eu mesmo engoli, agora mesmo, um mosquito! -, reclamava quem ainda não havia nem tocado em nada.

A fome era grande e atacaram assim mesmo a comida regada a uma boa lapada de cana-de-açúcar lavada com uma cerveja choca, mergulhada, cheia de gelo, no pé do pote. A bebida e a comida, pelo que foram reabastecendo, dava para muitos dias de refrega. Os da Escolinha, a-há, acharam de encher o tampo na bebida, apostando os copos e goles, esquentando as orelhas.

Post meridiem.

Lá para as tantas, quando o sol já ameaçava descansar, rumaram para o campo. Chegaram todos no estádio, cada atleta se dirigindo para o vestiário. E o povo amontoando-se nas beiradas do campo. Os da Escolinha foram persuadidos a entregar seus pertences ao representante responsável pela comitiva e depositaram nas mãos dele todos os objetos de uso e os que traziam consigo. Entregaram um por um, depositando-os num saco. O diretor da equipe achou por bem conferir tudo: quinze relógios, nove trancelins, seis carteiras – fazendo questão de contar o dinheiro depositando-o em seu próprio bolso de forma escondida – quatro santinhos, oito camisinhas, um anel, duas alianças, sete carteiras de moedas, quatro pulseiras, dois brincos, uma foto de Zico, dois escudos do Corinthians, seis moedas, três pentes, um espelho, dezessete camisas, onze cuecas, cinco bermudas, quatro calças, cinco sandálias, três chinelos, dois tênis, dois sapatos, um par de meias com chulé, uma sunga suja de mais de oito dias com uma lista de merda na bunda, um óculos de lentes arranhadas, três bonés encardidos, uma viseira, um walk-man, uma gargantilha, duas lentes de contato, uma camiseta, uma oração-da-cabra-preta, três dentes de alho, uma fita cassete de Roberto Carlos, um engov, duas cibalenas, um colírio, uma baga de maconha, um galho de arruda, três revólveres, duas facas peixeiras, uma pistola sete meia cinco, três pares de meiões, um short, um alka-seltzer, duas envelopes de alcachofra, um galho de arruda, um desenho de Jesus e os apóstolos, um copo, dois garfos, seis talheres, três pratos, uma bandeja, um candelabro, duas velas, um incensário, um xarope vick, um talismã, três crucifixos, uma flâmula do Flamengo, um cartão de cartomante, três ossos, uma dentadura, um aparelho auditivo, uma chuteira velha, um rádio de pilha, uma pasta de dentes, dois gels, dois shampoos, um condicionador de cabelo, três lâminas, um chuncho, um pé de coelho, quatro senhas para o show dos concluintes do Colégio Presbiteriano, um poster da Xuxa, um livro de química inorgânica, uma revista pornô, um cartão postal de Maceió, um recorte de revista com a foto de Tereza Collor, uma página dobrada com o desenho da Drag Car, um controle remoto, dois desodorantes, cinco calendários de mulher nua com a boceta arreganhada, três revistas em quadrinhos com trepadas muitas, uma agulha, um retrós, um carretel de linha, uma presilha de cabelo, duas tiaras, uma chave de fenda, uma foto de uma namorada de não sei quem, um pneu de bicicleta, uma chave de cinto de castidade, duas camisinhas de Vênus, um folder do motel Tremedeira Louca, uma válvula de botijão de gás, uma oração de mãe, duas canetas esferográficas e sete fotos de turma no maior pileque.

- Esses meninos tem cada costume estranho, virgem!

O povo se ouriçou mesmo quando viu o visitante no gramado, fazendo o aquecimento com ginásticas e acrobacias estranhas. Isso tudo sob vaias irritantes. O trio de arbitragem se encaminhava para o centro do campo, conferindo tudo, afastando o povo, ordenando isso e aquilo.

- Vamos começar o jogo! –, reclamou o juiz ao time local ainda na concentração do estádio.

- Pode não, falta Bolo Cru!

- Quem?

- Bolo Cru.

O tal Bolo Cru além de contato era a principal estrela do time, um craque para ela. Mais ainda: era cabo eleitoral do Deputado João dos Cavalos, o padrinho da equipe, homem mais rico do lugar, mais forte e poderoso, e, ainda, possuía umas afeições familiares pelo tal Bolo Cru que desenrolava tudo para ele sem cobrar tostão, coisa de filho para pai. Por aí se vê.

O juiz retornou ao centro do gramado, chamou os bandeirinhas e numa atitude insólita agita os braços de um lado para o outro, bota as mãos na cabeça e, por fim, começa a jogar palitinhos com os seus auxiliares.

Depois de um aquecimento longo no gramado, o capitão da Escolinha reclamou do juiz para que ele começasse o jogo cansado devido demora do adversário. Haja espera. Não obtendo sucesso, ele reuniu seus comandados e objetivou se preparar melhor para a peleja porque no almoço tomaram muitas grades de cervejas além da conta, nego ia cansar logo logo. Vestiram o padrão, ouviram o apito do juiz e se organizaram entre as quatro linhas do gramado.

A equipe local ainda se encontrava nos vestiários. Pela demora, deu uma mijadeira nos visitantes, um por um se espremendo até o banheiro; outros que não aguentavam, mijavam ali mesmo, depois, uns dois foram presos por indecência e despudor públicos – queriam urinar na torcida. Ôxe, e deu tempo? Deu o maior mijadeiro no time, de quase afogar todo mundo. Danaram-se a fazer aquecimento intensivo, se exercitaram além da conta, deram uma carreira no gramado atrás da bola e apagaram o fogo. Um deles deu logo uma vomitada no pé do bandeirinha, ficando verde que só pé de coentro. Arreado, foi de maca para o banco de reservas. Outro bem chamuscado do aperitivo, num treinamento, pediu um cruzamento, bola na área, ele chutou, errou a pelota, caiu dentro do gol e quis, por fim da força, que o juiz validasse o gol quando a partida nem tinha começado. O técnico da Escolinha teve que rever umas quinhentas vezes a escalação do time visto que alguns apresentavam, após aquela comilança, sinais visíveis de debilidade física. E aumentando o seu prejuízo, teve um outro bem dosado que armou a maior confusão, xingando todo mundo e dizendo que ali só tinha corno e provocou o maior auê, a ponto de levar um corretivo no maluvido, caindo estendido fora de campo, sem sentido. Depois de uns entreveros endemoniados, por fim, ou melhor, por enquanto, reinou a calma. Isso porque, três horas e meia de atraso, noite escurecida, metade dos refletores acesos e a outra sem dá sinal de vida, sorrateiramente adentra os portões do colosso das multidões, todo engalanado, recém-saído de uma cama quentinha com a amásia – com quem havia derrubado três trepadas da boa –, ajeitando o pixaim no maior rebolo, e dirigindo-se para o vestiário com ar de mister universo sob aplausos da plateia eufórica, quem? Quem? Zé Bolo Cru, em carne e osso, ao vivo e em cores, num verdadeiro ouriço da torcida do Anhanguera.

Alguns minutos depois, devidamente paramentado, numa indumentária hilária do padrão doado pelo Deputado João dos Cavalos, com a propaganda do estabelecimento comercial do parlamentar nos costados, Funerária Morra Feliz, Bolo Cru deu três saltos soltos no ar, cinco cambalhotas ineivadas, mesuras para a plateia, deferência para o deputado nas gerais e fez um sinal pro juiz iniciar a partida.

- A saída é deles! –, ordenou duro pro juiz.

O árbitro exigiu silêncio, contou os onze jogadores de cada lado e, peraí, um detalhe: o de preto que todo mundo esculhambava a mãe e familiares, se encontrava no centro do gramado, urubu desalmado e xingado a plenos pulmões, era aleijado, coitado, e fiscalizaria tudo dali mesmo do meio de campo. Era respeitado pelos jogadores porque a muleta era a sua arma, viesse não jogador malcriado pra banda dele que o cacete comia no centro.

Antes do início da contenda, ajoelhou-se com dificuldade no círculo central do tapetão e começou a rezar. E orou, se benzeu e deu o apito inicial.

A resenha esportiva toda assanhada se pôs a anunciar a escalação dos clubes, comentando o favoritismo da Escolinha, provando por a mais b, na prova dos nove, que o atual campeão estadual massacraria a agremiação do Anhanguera.

Pro negócio pegar mais fogo ainda, a torcida do Martírios virou-se toda a favor dos visitantes, alimentando a intriga provinciana.

Logo aos dois minutos, num ataque velocíssimo Bolo Cru humilhou a zaga da Escolinha, driblando tudo e dando três voltas de caírem sentados, verdadeira bunda no chão. Por causa disso, um dos zagueiros ofendidos deu-lhe uma raquetada daquelas de lhe arrancar o samboque da cara dele com a chuteira. O pau comeu. O juiz ficou observando tudo sem se meter no rebuliço. O zagueiro só deu umas três voltas no campo com a torcida toda atrás dele, pega mas num pega, enveredou no avelóis e só foi encontrado três semanas depois na cidade de Rodamundo, uns setenta quilômetros dali. Ânimos arreados, ninguém expulso já que o ofensor voluntariamente se evadira deixando a Escolinha desfalcada, apenas com dez jogadores em campo, reiniciando tudo no meio do maior tumulto.

Pouco tempo depois, um certo jogador apelidado por Manjuba, sujeito dum porte de umas toneladas, centroavante do Anhaguera, parou a bola, alisou a peia e deu um toque para Bolo Cru que se encontrava ainda meio zonzo com a pernada do zagueiro. Era uma jogada ensaiada, já que Manjuba sabia que Bolo ia fazer uns estragos danados, esperando o desfecho do lance para receber o toque na caixa torácica e levar todo mundo da defesa contrária no peito para dentro das redes; goool! Anhaguera. Ovação! Um a zero no placar.

Nem meio minuto depois, se repetia a mesma jogada, Manjuba segura o caralho que se sobressai do seu calção branco com sua cueca bem avermelhada, aí se prepara para a devastação, quando Bolo perde o domínio da pelota caindo com ela na linha de fundo. Aaaaaaaaaaaaaaah! Batido o tiro de meta a bola, foi cair justamente num rebolado do time visitante, um ponta direito avexado que saiu na carreira, passou pitu no lateral, deu um banho de cuia no volante, deixou o líbero sentado, a torcida apavorada, só parando o reboliço porque sentiu nas costas um indigesto prato de bosta de boi. Foi o técnico do Anhanguera que invadira o campo e tascou-lhe a meleca nas costas com raiva do capeta que, sem dúvida, reverteria o escore do jogo. Vistas grossas no lance, um novo tiro de metas foi batido, e ninguém sabe como, de supetão, a Escolinha empatou a partida. Ó ó óóóóóóóóó... Os xingamentos ganharam proporção com adjetivos e apupos nada alvissareiros, mau presságio para o final da partida.

- Sai pra lá Suco de Pneu!

- Cana Queimada!

- Stibiu!

- Ôi de Bomba!

- Bailarina da meia noite!

Foi com tal provocação que o beque do visitante se encostou no Bolo Cru, marcação cerrada, e não era para declaração de amor para todo o sempre, amém; nada, e numa jogada de somenos, o atacante desferiu um certeiro depois de um traço da vaca, quebrando três dentes do infeliz do beque. O pau cantou de novo.

- Ou perde no campo ou apanha na rua!

Nesse tumulto passaram uma rasteira na muleta do juiz e o buruçu estava pronto. A polícia entrou em campo e ao invés de garantir a partida, meteu o cacete nos jogadores. O rolo cresceu de volume e sem a menor previsão para terminar. É certo que àquela altura já havia saído bala, uns trezentos tiros com um total de quatro vítimas fatais e cento e sessenta e oito em estado grave, fora uns duzentos e cinquenta e tantos feridos e uns seis casos em estado interessante que se sentiram mal. Porém, o estádio continuava apinhado, gente como a praga prestigiando o clássico deles. Contornar mesmo o pandemônio, só com a intervenção do Juiz de Direito da Comarca, Dr. Zezito Dalsa, que se encontrava de plantão para apaziguar os ânimos, não antes haver dado voz de prisão para umas vinte dúzias de elementos baderneiros que avolumavam o bafafá. Para encurtar a história, Bolo Cru fora recolhido à maternidade local, uma vez que ali não dispunha de hospital nem unidade de emergência, devido munhecadas avulsas e anônimas. As vítimas fatais foram: Bilunga de Nonoca, qualificado posteriormente como gigolô da dita cuja; Balaio, um pedinte adoidado que não sabia nem onde estava; Gogeba, um cachaceiro de bodega que adentrara naquele recinto só para passar sua bebice; e Garinha, uma putazinha menor-de-idade levada ali pelo deputado para uns xambregozinhos entre outros atrevimentos. Todos uns desavisados que entraram na briga sem saber do que se tratava, descobrindo-se depois que enveredaram no beligerante vuque-vuque porque imaginavam ser ali ocasião de distribuição de brindes e dinheiro. Resultado: toda zaga do Escolinha fora expulsa e devidamente encarcerada pela lei da justiça e da ordem. O técnico da Escolinha, abestalhado com o que se dera, não havia se passado nem cinco minutos de jogo, escalou de pronto quatro penetras que vinham de bigu no caminhão, retirando outros tantos da linha de frente para suprir sua defesa. Bem, se um zagueiro fugira e outros três foram expulsos, a equipe só contava em campo com apenas sete jogadores. E sem que ninguém esperasse, devido a cervejada, outros seis atletas acrescentaram furtivamente o time em desvantagem, quer dizer, a Escolinha contava então com treze jogadores, só descoberta a trama aos dez minutos do primeiro tempo, sendo recolhidos os intrusos na delegacia local, devidamente enquadrados nas peças iniciais de um inquérito policial, conforme os ditames penais arrumados ali. E o jogo continuou pesado como estava.

Aos quinze minutos, o goleiro visitante que havia tomado vinte cachetes de marca variada, não se conteve em pé, nem mais via a bola que já saía atrás dela fora da área de permissão. Ôxe, o arqueiro corria atrás da bola como quem quer pegar galinha, novo rebu. Depois de muita agitação, tiraram o guarda-metas que estava doido e, outro que nunca sequer pegara uma bola parada, estava lá pronto para defender honrosamente as cores do campeão estadual. Outra expulsão reduziu a seis: o ponteiro esquerdo insistia em bater o lateral na marca do pênalti. Vôte! Novo carnaval. Soube-se que ele havia ingerido um ponche mágico não sei onde.

O escrete local a partir de então era só ataque. O zagueiro do Anhanguera não tendo como participar do jogo sentou-se num montinho que havia no meio de campo e ali ficou assistindo tudo, entretido. Do montinho surgiu um formigueiro cu adentro, foi o maior um berreiro. Substituído, o enfermo foi levado para uma cirurgia médica em Tigres Vermelhos.

Mais cinco minutos o placar constava 4x1, um gol legítimo e três pênaltis seguidos, multa administrada pelo juiz porque o time visitante saíra das estribeiras. A mangação começou forte com gritos de olé. Pelo visto, é de se esperar que a dileta leitora imagine que o jogo não terminou. Terminou: exatamente aos vinte e dois minutos do primeiro tempo, porque, num arranca-rabo sem limites, roubaram a muleta do juiz. Aí, o negócio ficou feio. O cacete comeu no centro. Ainda ouvi algum jogador dizer:

- Nunca mais eu venho aqui, meu!

- Vamo simbora, besta, que lá vem o povo infesado! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


Imagem: a arte da artista plástica Milena Olesinska.

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Imagem: Nu de pé - Óleo sobre tela 90 x 80, do artista plástico Silva Teixeira.
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