UMA VEZ MAIS, LEONORA... – Aquela bela rebelde inglesa
era a viajante que embalou meu coração, musa surrealista. Nem aí para nada nem
ninguém, apenas se livrava do pai candelabro que a queria domesticar com as
etiquetas maternas. E quase nem se afobava, mesmo que não fosse possível ser
feliz nesse lugar. Surpreendentemente presa e
torturada pelos alemães da guerra, seus nervos se estiolaram, mais que
dilacerada permitiu que tudo escapasse ao seu controle. Perturbada mentalmente,
ela foi arrastada à força pelos pais, para um hospital psiquiátrico em Santander:
ali sedada por curas fascistas, amarrada nua na cama, quando não numa solitária: É fácil ter
nas mãos as chaves da porta da loucura e abri-la. Difícil é voltar. Eu voltei. E
tornou-se um perigo em sua própria nação, lamentavelmente. Por isso fugiu de
casa porque não queria ser um troféu para ninguém e dos nazistas para
perambular mundo afora até se esconder no México. O seu mundo destruído, ela se
reconstruiu: queria ser um pássaro para despertar num labirinto e ver a filha
do Minotauro. Trouxe pro meu sonho El mundo mágico de los mayas, como se
quisesse por uma janela que eu visse um cavalo branco cavalgando livremente no
pasto, uma hiena com mamilos pronunciados e outro cavalo de madeira na parede. Era
a casa do medo onde ela se fazia gigantesca, sim, La giganta, que
reinava nua malabarista com a oferenda na boca do crocodilo, um ovo entre as
mãos e com todos os seus fantasmas da infância: Eu sou um mistério tanto
para mim mesma, quanto para os outros. Achegou-se com uma camisola de
flanela, como a dama oval pela porta de pedra, uma outsider a me levar para estalagem do cavalo da
alvorada, o rosto simples
como a lua. Ouvimos a trombeta auditiva da hiena, seu alter-ego: Na sua
história, a hiena toma o seu lugar nessa hora, porque era muito absurdo, sabe?
Assim eu estava tomando uma atitude. E me falou do sétimo cavalo e doutros
contos do reino de Xibalbá e dos belos pássaros pretos desenhados sobre esse
muro branco. Desceu sem despedida e lá embaixo ela não queria ser chamada de
musa nem de nada nem de ninguém, não fosse a pneumonia levá-la nuvem afora. Veja
mais abaixo e mais aqui, aqui e aqui.
Imagem: foto com os surrealistas Andre Breton, Marcel Duchamp, Max Ernst e Leonora Carrington Nova York, 1942 – com a pintura Nude at the Window (1941) de
Morris Hirshfield, na casa de Peggy Guggenheim fotografada
por Hermann Landshoff. Veja mais abaixo.
DITOS & DESDITOS - Confrontados com a
escolha entre mudar de ideias e provar que não há necessidade de o fazer, quase
toda a gente se ocupa com a prova. Pensamento do filosofo, economista
liberal e escritor estadunidense John Kenneth Galbraith (1908-2006). Veja
mais aqui.
ALGUÉM FALOU: Todos os
homens são doidos e, apesar das precauções, só diferem entre si em virtude das
proporções... Pensamento do poeta, tradutor e polemista
francês Nicolas
Boileau-Despréaux
(1636-1711).
ALGUÉM MAIS FALOU: Lembre-se sempre de
que discutir e vencer é quebrar a realidade da pessoa contra quem você está
argumentando. É doloroso perder a realidade, então seja gentil, mesmo se
estiver certo... Pensamento do escritor japonês Haruki Murakami. Veja
mais aqui e aqui.
AGNOTOLOGIA - [...] Vivemos numa era de
ignorância e é importante compreender como isso aconteceu e por quê. Nosso objetivo aqui
é explorar como a ignorância é produzido ou mantido em diversos ambientes, através de
mecanismos como como negligência deliberada ou inadvertida, sigilo e supressão,
documento destruição, tradição inquestionável e inúmeras formas de inerente
(ou evitável) seletividade culturalpolítica. Agnotologia é o
estudo da ignorância Rance Making, os perdidos e esquecidos. Um foco está no
conhecimento de que poderia ter sido, mas não foi, ou deveria ser, mas não é, mas
também veremos que nem toda ignorância é ruim. [...] Um aspecto
importante de uma epistemologia da ignorância é a compreensão de que a
ignorância não deve ser teorizada como uma simples omissão ou lacuna passiva,
mas é, em muitos casos, uma produção ativa. [...] O foco
aqui está na ignorância – ou dúvida ou incerteza – como algo que é feito, mantido e manipulado por meio de certas artes e ciências. A ideia é facilmente passível de paranóia: nomeadamente, que
certas pessoas não quero que você saiba certas coisas ou trabalhará ativamente
para organizar dúvida ou incerteza ou desinformação para ajudar a manter a (sua)
ignorância. Eles sabem, e podem ou não querer que você
saiba que eles sabem, mas você não devem ter conhecimento do segredo. Esta é uma ideia
insuficientemente explorada por filósofos, que a ignorância não deve ser vista como uma simples
omissão ou g a p , mas sim como uma produção ativa. A ignorância pode
ser um mecanismo ativo parecia parte de um plano deliberado. Começarei com
segredos comerciais [...]. Trechos extraídos do
estaudo Agnotology: The Making and Unmaking of Ignorance (Stanford University, 2008), do historiador estadunidense Robert Proctor,
da Universidade de Stanford, considerando tratar-se de estudo das
políticas de produção da ignorância, questionando como se constrói e se mantém a ignorância e quais as suas consequências,
inclusive políticas, porque também é usada como instrumento político e indaga:
por que não sabemos o que não sabemos? Há uma lógica que explica a construção
intencional da ignorância e nesse sentido, ela é não apenas ausência de
conhecimento, é também construída intencionalmente. A ignorância tem uma
história (e geografia) política no qual há por parte de governos, indústrias
etc., que propagam coisas que não querem que as pessoas saibam. O
problema detectado pelo autor não é a existência de governos, pessoas e
empresas que fazem uso consciente e sistemático de mentiras e manipulações, de
construção da ignorância, mas ter quem acredite, mesmo podendo ser vítimas das
suas consequências, como o uso de medicamentos inadequados que podem causar
mais danos do que benefícios (e até mesmo morte de pacientes) e não apenas
encontrar na sociedade pessoas que acreditam, como contribuem para sua
divulgação, hoje ampliadas através das redes sociais.
ESTRELA CRUEL – [...] O amor e a esperança são infinitamente mais poderosos que o ódio e a fúria. [...] Ela foi mais uma prova
para mim de que nada limita mais uma pessoa do que o que era então chamado de
“uma visão de mundo claramente definida”. [...] Se
todos fossem heróis, quanto valeria a coragem? [...] Estava
se tornando evidente para muitos que, embora o mal cresça por si só, o bem só
pode ser alcançado através de uma luta árdua e mantido apenas através de um
esforço incansável. [...] Numa democracia, os erros
podem eventualmente ser corrigidos e as pessoas que cometem estupidez ou mesmo
atrocidades são vistas, com o passar do tempo, mais com tolerância e piedade do
que com ódio. [...] Tenho uma incompetência inata para qualquer coisa mecânica. Sempre me pareceu que uma máquina pode dizer, de longe,
que tenho medo dela e que não entendo nada sobre ela, e quebra imediatamente
por pura autopreservação.
[...]. Trechos
extraídos da obra Under a Cruel Star: A Life in Prague (Lynne Rienner, 1997), da escritora tcheca Heda
Margolius Kovály (1919-2010). Veja mais aqui.
TRÊS POEMAS - I – Sou mulher, \ há muito tempo meu corpo
flutua \ sobre uma extensão de água, branca como o luar, \ indecente e
silenciosa. \ Sou uma mãe cruel \ que abraça o filho \ até o sufocar, \ faz
dele um só consigo mesma \ como outrora era, \ quando as barrigas grandes eram
quartos sombreados para descansar, \ eram os bons espaços ao longo da rua, \ os
quartos de intermináveis as férias \ sem dor, sem lágrimas, \ eram o lugar onde
ninguém se separava de ninguém. \ Sou mulher, muitas vezes feia. \ Ontem meu
corpo era um barquinho de papel \ que joguei de brincadeira na superfície dessa
água, \ na esperança de que me levasse embora. \ Hoje sou a baleia assassina, \muitas
vezes linda, \ à espera do pescador. QUEM SOU EU - Eu olho para os homens e me
pergunto quem eu sou. \ Longe vão os tempos em que meu avô calçava suas botas
de cano alto \ e saltava pelas grandes poças da rua comigo nas costas, a \ caminho
do jardim de infância. \ Já se foram os tempos em que eu tinha pesadelos todas
as noites e meu pai \ vinha para minha cama e colocava a mão na minha barriga
para me acalmar. Ficaria \ lá até eu adormecer. Eu até acordava de manhã \ e
ele estava ao meu lado. \ Longe vão os tempos em que meu papai me lavava da
cabeça aos pés, já se foi a época \ da minha primeira visita a uma clínica
ginecológica, onde fui com ele também. \ Longe vão os anos em que aprendi com
ele sobre o teixo, o abeto, o pinheiro \ e os abetos. \ Eles se foram para
sempre? QUEM ERA EU - Eu era um garotinho solitário cujo cabelo um dia eles
trançaram em tranças e colocaram laços azuis e uma faixa elástica na cabeça. \ Suas
orelhas estavam vermelhas e doloridas por causa do elástico muito apertado que
apertava sua cabeça e dos castigos que seu pai lhe dava. Ele esfregava as
orelhas do menino entre o polegar e o indicador da mesma forma que você esfrega
uma folha seca de hortelã ou manjericão ou uma pétala de rosa para
transformá-la em pó e guardá-la em um pequeno saco de papel marrom. As orelhas
do menino ardiam e brilhavam vermelhas como duas pétalas de rosa, e o menino
conseguia ouvir com muita agudeza, cada vez melhor, os sons distantes. Sua
audição tornou-se um túnel no qual sons e dor se tornam um e rolam como pesadas
bolas de chumbo. \ Eu era um garotinho que um dia começou a ter seios. \ E hoje
o garotinho tem que escrever uma redação. Suas mãos, com cheiro de massinha,
têm grandes manchas de tinta ao longo dos ossos delicados cobertos por uma pele
transparente; sua alma encolhe cada vez mais, até ficar do tamanho de uma
semente de papoula, que depois rola lentamente até os pés do professor, batendo
inconscientemente um ritmo na escuridão desconhecida sob a mesa. Lá ele implora
por misericórdia. Pedidos de ajuda. \ Não posso escrever esta composição. Mesmo
assim posso lhe dar uma notícia: desde esta manhã meus seios estão crescendo.
Poemas da escritora e jornalista romena Svetlana Carstean. Veja mais
aqui.
A arte da escritora, pintora e escultora surrealista
inglesa Leonora Carrington (1917-2011). Veja mais aqui.
OUTRAS DIC’ARTES MAIS
é uma casinha é uma colina
qualquer lugar que se ilumina
quando a gente quer amar
fazer menino ou menina, edifício e maracá
virtude e vício, liberdade e precipício
fazer pão, fazer comício, fazer gol e namorar
dar um beijo em teu sorriso, sem cansaço
e o portão do paraíso é teu abraço
quando a fábrica apitar
é uma casinha é uma colina
qualquer lugar que se ilumina
quando a gente quer amar
entre o quero e o não queria
entre a terra e o luar
não é na guerra, nem saudade nem futuro
é o amor no pé do muro sem ninguém policiar
que principia quando eu paro de pensar
pensar na luta desigual, na força bruta, meu amor
que te maltrata entre o almoço e o jantar
é uma casinha é uma colina
qualquer lugar que se ilumina
quando a gente quer amar
quando explode é um alvoroço
que distrai o teu olhar
é a natureza onde eu pareço metade
da tua mesma vontade
escondida em outro olhar
essa beleza só finda
quando a outra começar
vai ser bem feito nosso amor daquele jeito
nesse dia é feriado não precisa trabalhar
que acaricia o pensamento popular
o amor que fica entre a fala e a tua boca
nem a palavra mais louca, consegue significar: felicidade
é uma casinha é uma colina
qualquer lugar que se ilumina
quando a gente quer amar