sexta-feira, julho 18, 2014

LEHTE HAINSALU, ARINACCHI, DONELLA MEADOWS, MADAME DE LA FAYETTE, RENATO JANINE & XEXÉU


 

CÉU CAETÉ DE TUPÃ - “Os pássaros guardam entre nós alguma coisa do canto da criação”. Saint-John Perse. - O canto e o voo, toda minha vida. O canto do voo, voar a cantar: sou japim pela brisa como se pairasse sobre as águas primordiais. Antes não havia nada. Ao abrir meus olhos pela primeira vez: Tupã sorria e tudo passou a existir. Ele então me contou como tudo aconteceu. Contava e tudo eu via! A terra era o céu. Tudo era céu no meu solfejo. Piava com espanto: é que depois do som, um tom: silvos e assovios, trinados e gorjeios, quantos estalidos & Néstogas - o verbo cantava. E pulsava - fusas, mínimas e colcheias nas águas da correnteza, no vento das folhas, chuva na relva, poeira da brisa nas pedras, no desabrochar colorido das flores, nas ondas dos mares e marés. Havia um respirado buliçoso, seres e coisas dançavam. Eu também dançava e podia viver pelas paragens celestiais até testemunhar o caos primordial, enquanto Hoen-Tsin crescia a cada dia até se tornar grande demais para o universo e morreu. Dele brotou um ovo enorme que o vi quebrar: diante de mim estava P'an-ku que acabava de nascer: livrou-se das cascas do próprio ovo e selou seu nascimento quando o yang formou o céu e o ying a terra. P'an-ku estava entre os giros de nadas e tudo. O seu corpo se transformava nove vezes ao dia e sua cabeça apoiava o céu e seus pés estabilizavam a terra. Foi assim que o céu e a terra se separaram. Havia ali junto outro ovo e era a Grande Grasnadora. Eu vi. E passaram a um convívio íntimo. Deles nasceu Bennu com sua coroa branca sobre a cabeça repleta de plumas coroadas, repousando sobre a pedra Benben, o primeiro pedaço de terra emersa das águas primordiais de Nun. Do outro lado, na fonte de abundantes águas estava a Simorgh, a fabulosa criatura alada, que possui o conhecimento de todas as eras e purifica as águas e o chão da Terra. Sua determinação era uma só: manter a união da Terra com céu. Outra vez a Simorgh passou carregando um elefante para a Árvore da Vida, pelo mar de Vourukhasa. Ao se livrar do pesado animal, amamentou seu filhote. E ela era como se fosse um pavão gigante com penas da cor de cobre, ora com feição humana, ora como um cão com garras de leão. Ao ver-me disse que já presenciou a destruição do mundo por mais de três vezes e, a cada mil e setecentos anos, ela mergulha nas chamas e desaparece até ressuscitar. Doutra feita lá ia a Simorgh e levava uma baleia para o mesmo local onde deixou o elefante. Depois voava sacudindo as folhas de tudo-cura, cujas sementes flutuavam nos ventos de Vayu-Vata, ao redor do mundo, provocando as chuvas de Tishtrya para curar as enfermidades da humanidade. Não sei quantas vezes ela aparecia atacando cobras, só interrompendo para dar atenção às trinta poupas que procuravam por um rei entre elas ou quando se dirigia para amamentar seus filhotes. Para as poupas apenas disse que se quisessem tornar uma delas num rei, teriam de atravessar os vales de Talab, de Eshq, de Marifat, de Istighanah, de Tawhid, de Hayrat, de Fuqur e Fana, até chegarem ao Monte Qaf. E repetiu: atravessar os vales... E mais uma vez disse: atravessar os vales... Enfim, finalizou: Chegando lá é que terão a ciência de quem o eleito. Entenderam? Eles anuíram em silêncio e ela saiu sem mais nada dizer. As poupas em revoada. Não muito longe dali a Fênix entre labaredas: estava em combustão antes de morrer. Minha nossa! Ela estava mesmo pegando fogo. Como é que pode? Cheguei tarde para ver-lhe majestosa. Aquietei-me e fiquei espiando aquele estranho evento. Vi-lhe reduzida às cinzas. Não demorou muito e, aos poucos, numa ventania a poeira subiu e, aos poucos pude constatar: ela renascia. Tomava corpo e logo estava edificada na sua imponência. Completamente refeita ela aproximou-se e me fez um convite para a dança de Kinnaris na floresta Himavanta. Hem? Vamos! Aceitei e quando chegamos lá vi uma criatura que era metade mulher e metade ave: possuía a cabeça, torço e braços de mulher; também asas, cauda e pernas de cisne; e entoava poesias e canções. Com os seus meneios, logo chegou ali o Kinnara, oriundo dos Himalaias, para completar a música celestial. O casal cantante era benevolente e velava pelo bem-estar do universo em tempos de perigo ou tumulto. Ali fiquei embalado e nem percebi que a Fênix acompanhava satisfeita aquela poética apresentação. Com o término do imenso cantarau, ambos fizeram uma mesura elegante e agradeceram a nossa atenção. Aplaudimos efusivamente. Uma cortina de nuvem cobriu o palco e eu vi a Fênix com os olhos rasos d’água. Fitou-me, abraçou-me e se despediu com um aceno. Fiquei um tempo ali um tanto embevecido com tudo que fora encenado, até lembrar-me de retornar aos aposentos de Tupã. No caminho de volta, eis que presencio os últimos estertores de P’an-ku. Sim, ele morreu e sua respiração tornou-se o vento e as nuvens, sua voz o trovão, seus olhos o Sol e a Lua, seus membros os quatro cantos da terra, o seu sangue os rios, sua carne o solo, seu cabelo e barba as constelações, sua pele e pelos as plantas e árvores, seus dentes e ossos os metais e pedras, sua medula o ouro e seu suor a chuva. Os parasitas do seu corpo tornaram-se seres humanos. Com o meu regresso Tupã mostrou-me a noite no coco de tucumã com todos os seus bichos. Ouvi atento e sabia: a noite deve ser linda. Sim. Logo ele me chamou a atenção para outra coisa e me ensinou que se cansasse da escuridão era só olhar do lado para ver o voo do cajubi anunciando o dia com o Sol descendo até o chão do seu reinado sobre tudo e todas as coisas. Foi assim: a manhã vivia no coco de cajubi, guardado pelo urubu-rei que morava num buraco vermelho da Via Láctea. Um susto com a chegada do urubu-branco, sem querer, quebrou-se o coco e surgiu a alvorada. A partir de então reinava o dia e, com ele, Mbud-ti que logo desceu até a Terra e admirou-se com tudo, muito feliz pelas maravilhas. Dias se passaram e se sentiu sozinho. Toda manhãzinha e convém lembrar: a vida nos olhos de todas as manhãs, o direito de viver e deixar viver. Tudo o mais era o espetáculo do amor, o sumo da existência. Não havia como olvidar de nada, porque ali era como se eu vivesse com todos e ouvisse tudo. No entardecer era a vez de abrir o coco de tucumã e lá surgia a Lua com o séquito de estrelas e astros luminosos para trazer a chuva boa e regar as plantas esturricadas e adubar a terra para plantar e colher no pitéu toda mandioca, banana, jerimum, inhames e carás, fartando os potes e enchendo as malocas. A noite adormecia no fundo das águas, no coco do tucumã, guardado pela Cobra Grande e Azã gritando tati para acordá-la na vigilância. Mbud-ti não suportava o seu isolamento e queria a noite para dormir. Aproveitou-se do cochilo dos vigias e levou consigo o coco que fazia um barulhinho: tem, tem, tem - eram os grilos, corujas, rãs, sapinhos, urutaus, morcegos e todos os seres noturnos. Espicaçava a curiosidade, ansiava por libertar a noite daquela prisão. Tomando distância bateu com ele na quina duma pedra e, ao se quebrar, a noite apareceu com seu silêncio e trevas, bichos e coisas. Tudo se transformou na escuridão. Aracuã, Jacupeba, Urutau, antes homens, tornaram-se pássaros noturnos. Tudo era bonito de se ver. Tupã dormia com meu cantar. Ao despertar ele logo partia para as providências, ocasião em que eu estava livre para gozar da infinita imensidão o dia todo até de tardezinha, na boquinha da noite. Assim, depois que o sereno imperava entre as sombras, Mbud-ti viu pela primeira vez a sonâmbula Mbudu-vri-re, a linda e nua Capéi, vagando sem rumo. Saiu ele a toda carreira na direção dela, mas ela desapareceu repentinamente. Cadê-la? Num estava aqui indagorinha? Oxe! Prondela foi? Caçou pelos cantos, atravessou umbrais e nada de sinal dela. Não desistia e mais insistia: seus passos seguiram para longe no encalço da bela desaparecida. Mais tarde, então, Capéi acordou desnuda e a sua brancura alumiava tudo, regulando as marés e a germinação das sementes, o brilho das pedras, o fluxo das mulheres, o nascimento das crianças e bichos. Lá longe ela viu um belo vulto e era Mbud-ti que rondava. Assustada, escondeu-se numa moita. Ele passou tristemente de volta, procurando-a, sem que pudesse vê-la escondida. Ela viu melhor aquele por quem seu coração palpitou de amor no primeiro instante. E ao segui-lo, não mais conseguiu encontrá-lo. Havia sumido. Eita! Cadê-lo? Outro desencontro. O solitário coração de Mbud-ti tremia de paixão, levando-o a vagar por dias e noites à procura das pegadas da amada. O dela, também, entregue de amor por aquele que apenas viu passar. Aí, depois de muita busca e espera, deu-se um eclipse. Ah, encontraram-se pela primeira vez de verdade e suspiraram apaixonados. Até que enfim. Mas... Apesar da curta duração do evento, eles ansiaram por outro reencontro. Contudo, havia um problema a ser resolvido: como não conciliavam o tempo e o espaço, abateu-se uma grande tristeza nos enamorados. Durante o dia Mbud-ti perseguia de leste a oeste tentando reencontrá-la. E, por toda noite, Capéi sonhava com a chegada do seu amado. Os solitários cumpriam a sua sina. Logo as estrelas vieram consolar Capéi que lamentava a dura sorte, sempre cheia ou nova com as lembranças dos momentos com o seu amado, crescente ou minguante quando entristecida com sua ausência. Deu-se, então, muito tempo depois, um novo eclipse e puderam namorar: ele abraçou-a, deitou-se sobrecarregado de beijos sobre a sua alvura, envolveu-a com a chama do seu arrebatado desejo e se amaram com êxtase. Neste momento todos os seres do universo cantaram para alegria deles. Com o prazer de seus corpos foram elevados aos céus para o eterno amor entre o Sol e a Lua. Quem a este espetáculo assistiu regozijava como eu ali admirando o enlace dias e noites, noites e dias. Até eu cantava junto aos tangarás dançantes para festejá-los. Todavia, tinha compromissos inadiáveis: era a hora de Tupã repousar, os deixei com a chegada de vagalumes e pirilampos. Outro dia raiou porque Zhuque apareceu seguindo pela constelação do fogo em direção ao sul com o fito de buscar o verão. Era um faisão admirável, vez que reluzia com os seus cinco tons de vermelho coberto de chamas. Acenei pela sua passagem e me ocupei de embalar o banho de sol matinal de Selenita no topo de um vulcão lunar, enquanto lá longe Kalavinka pregava o Dharma com sua bela voz, cabeça humana, tronco de pássaro, cauda longa e esvoaçante. Agora mesmo me ocorreu da vez que Kalavinka me contou sobre a morte do velhíssimo abutre Jatayu. Coisa triste de lembrar: é que o vetusto, certa feita, tentou capturar Ravana quando este raptava Sita. Por causa disso teve suas asas cortadas na contenda. Entretanto, como era devoto de Vixnu, ele deixou escapar a mão de Hamsá, um amuleto de múltiplas proteções, sorte e fortuna, um símbolo de paz e esperança. E Kalavinka me deu este amuleto para que eu levasse e entregasse à deusa-égua Rhiannon, a divina rainha das fadas, deusa da lua e dos pássaros, dos encantamentos, da fertilidade e do submundo. A rainha vivia no Mabinogi de Pwyll, onde mantinha cuidadosamente vários pássaros que acordavam os mortos e adormeciam os vivos, com a suavidade de sua música. Entreguei-lhe o amuleto mandado e ela me sorriu em festa, ofertando a sua hospitalidade para sempre. Ali entretido com tudo o que acontecia, quase não ouvia Tupã me chamar para aplacar uma peste entre os caetés. Eita! Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 


DITOS & DESDITOS - O mundo é um sistema complexo, interligado, finito, ecológico - social - psicológico - econômico. Nós o tratamos como se não existisse, como se fosse divisível, separável, simples e infinito. Os nossos problemas globais persistentes e intratáveis surgem diretamente deste desfasamento. O recurso mais escasso não é o petróleo, os metais, o ar puro, o capital, o trabalho ou a tecnologia. É a nossa disposição de ouvir uns aos outros e aprender uns com os outros e de buscar a verdade em vez de procurar estar certo... Pensamento da cientista ambiental, professora e escritora estadunidense Donella Meadows (1941-2001). Veja mais aqui.

 

ALGUÉM FALOU - Se alguém pensa que é feliz, isso é suficiente para ser feliz... Levo comigo apenas o tempo bom e meus filhos, que é o quanto eu quero. Somos muito fracos quando estamos apaixonados... Pensamento da escritora francesa Madame de La Fayette (Marie-Madeleine Pioche de La Vergne, 1634-1693).

 

CULTURA – [...] Antigamente, a cultura era um bem, algo que se adquiria, se acumulava, se investia, se multiplicava. Um homem "de cultura" era alguém que, de posse desse capital ou cabedal, se credenciava a ocupar determinado lugar na hierarquia da sociedade.  Essa ideia perdeu quase toda a sua legitimidade, embora ainda persista em alguns meios. Não vale mais de direito, embora continue funcionando, um pouco, de fato. Porque cada vez consideramos menos aceitável utilizar a cultura como gazua na luta por posições sociais. Digamos que a cultura deixou de ser uma res, uma coisa, um bem, uma propriedade - e que se vai tornando uma postura, uma experiência, uma atitude. [...]. Trecho extraído da obra Unicultura (UFJRGS, 2002), do filósofo, escritor e professor da USP, Renato Janine Ribeiro. Veja mais aqui.

 

SIGNIFICADO DA VIDA - [...] Se... se você não sente nada por mim, então não me toque! Não aja como se você se importasse! [...] Eu gostei dela... eu realmente gostei dela. Eu queria protegê-la. Aproximei-me dela de uma maneira gentil e brincalhona, porque ela é tão preciosa e eu queria segurá-la em meus braços porque ela é tão despreocupada. Ela era meu tesouro [...]. Trecho extraído da publicação I.O.N (Viz Media, 2008), da escritora e ilustradora japonesa Arina Tanemura, muito conhecida como Arinacchi, autora de frases como: Você descobriu o significado da sua vida? 'Sim. Eu finalmente descobri. É encontrar algo mais importante para mim do que minha própria vida. Encontrar algo mais importante para nós do que nossas próprias vidas é a razão pela qual todos nascemos. Todos nós recebemos uma vida dentro de nós. E Deus quer que usemos essa vida para iniciar uma jornada ao longo da vida para encontrar algo que seja mais importante para nós do que nós mesmos.

 

JUNTO À LAREIRA - Estou sentado perto da lareira \ É aconchegante e aconchegante.\ E desperta pensamentos sonolentos\ esse calor na sala.\ O vento sussurra fora das janelas, \ ali a nevasca uiva e acena.\ E me convida, me convida junto\ sua voz lisonjeira e terrível.\ Uma vez antes eu tinha uma lareira\ Bati no peito com uma rajada de vento.\ Mas da lareira acesa\ você não se deixa levar tão facilmente.\ Por que você me mantém em uma prisão sonolenta?\ calor ambiente?\ Por que manter muitos na prisão \ calor ambiente?\ Por que nos permitimos ser mantidos em cativeiro? \ Por que estamos felizes na prisão? \Estou sentado perto da lareira. \ Não é aconchegante, não é aconchegante. Poema da escritora estoniana  Lehte Hainsalu.

 

YEVGENY YEVTUSHENKO – O escritor, ator e realizador de cinema russo Yevgeny Yevtushenko, escreveu esse belíssimo poema traduzido por Pedro Calouste: “As fronteiras oprimem-me, Sinto-o estranho, Não conhecer Buenos Aires, Nova Iorque. Quero vaguear o quanto me aprouver Em Londres, falar ainda que interruptamente, com todos. Trazemos também o poema Memento, traduzido por Rafael Leal: “Tal qual um lembrete dessa vida de bondes, sol, papagaios, o descontrole inconstante de correntes que fazem saltarem termômetros, e porque patos vão grasnar em outro lugar sobre o último gelo, fino como papel, e porque crianças choram com amargura (lembra-te a vida das crianças é tão doce!) e porque sob a luz ébria e cintilante das estrelas a lua nova abre espaço, e uma meia esgarça um pouco na altura do joelho, ouro em si, tingido pelo sol, tal qual um lembrete da vida, e porque há resina em troncos de árvores e porque me enganei loucamente pensando que minha vida tinha acabado, tal qual um lembrete da minha vida - tu entraste em mim pisando de meias. Tu entraste - nem muito cedo, nem muito tarde - exatamente no momento certo, o meu momento próprio, e com um sorriso, arrancaste-me das memórias como quem arranca de um túmulo. E eu, outra vez girando em meio a cavalos pintados, troco contente por um lembrete da vida, todas suas memórias. Veja mais aqui.

Imagem: Étude pour le portrait de la marquise Madeleine Thérèse Euphrasie de Marillac, marquise d’Ecquevilly et de ses trois enfants, do pintor francês Hyacinthe Rigaud (1659-1743)



Ouvindo: Concerto para piano nº 2, op. 18, de Rachmaninoff, com o pianista angolano Segueira Costa.

CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE, DE SIGMUND FREUD - [...] os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). [...] os histéricos e neuróticos: não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, corno ainda se prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente. [...] Tinha-se de admitir que a doença se instalava porque a emoção desenvolvida nas situações patogênicas não podia ter exteriorização normal; e que a essência da moléstia consistia na atual utilização anormal das emoções "enlatadas". Em parte ficavam estas como carga contínua da vida psíquica e fonte permanente de excitação para a mesma; em parte se desviavam para insólitas inervações e inibições somáticas, que se apresentavam como os sintomas físicos do caso. Para este último mecanismo propusemos o nome de "conversão histérica". Demais, uma certa parte de nossas excitações psíquicas é conduzida normalmente para a inervação somática, constituindo aquilo que conhecemos por "expressão das emoções". A conversão histérica exagera então essa parte da descarga de um processo mental catexizado emocionalmente; ela representa uma expressão mais intensa das emoções, conduzida por nova via. [...] a histeria é uma forma de alteração degenerativa do sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do poder de síntese psíquica. [...] Nesta ideia de resistência alicercei então minha concepção acerca dos processos psíquicos na histeria. Para o restabelecimento do doente mostrou-se indispensável suprimir estas resistências. Partindo do mecanismo da cura, podia-se formar idéia muito precisa da gênese da doença. As mesmas forças que hoje, como resistência, se opõem a que o esquecido volte à consciência deveriam ser as que antes tinham agido, expulsando da consciência os acidentes patogênicos correspondentes. A esse processo, por mim formulado, dei o nome de repressão e julguei-o demonstrado pela presença inegável da resistência. [...] A aceitação do impulso desejoso incompatível ou o prolongamento do conflito teriam despertado intenso desprazer; a repressão evitava o desprazer, revelando-se desse modo um meio de proteção da personalidade psíquica. [...] Mas o impulso desejoso continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se revelar, concebe a formação de um substituto do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à consciência, substituto ao qual logo se liga a mesma sensação de desprazer que se julgava evitada pela repressão. Esta substituição da ideia reprimida — o sintoma — é protegida contra as forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento interminável. No sintoma, a par dos sinais do disfarce, podem reconhecer-se traços de semelhança com a idéia primitivamente reprimida. Pelo tratamento psicanalítico desvenda-se o trajeto ao longo do qual se realizou a substituição, e para a recuperação é necessário que o sintoma seja reconduzido pelo mesmo caminho até a ideia reprimida. [...] Ou a personalidade do doente se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama "sublimação" do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta última hipótese o mecanismo da repressão, automático por isso mesmo insuficiente, é substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do homem — o controle consciente do desejo é atingido. [...] Duas forças antagônicas atuavam no doente; de um lado, o esforço refletido para trazer à consciência o que jazia deslembrado no inconsciente; de outro lado a resistência, já nossa conhecida, impedindo a passagem para o consciente do elemento reprimido ou dos derivados deste. [...] O pensamento devia comportar-se em relação ao elemento reprimido com uma alusão, como uma representação do mesmo por meio de palavras indiretas. Conhecemos, no domínio da vida psíquica normal, exemplos em que situações análogas às que admitimos produzem resultados semelhantes. É o caso do chiste. O problema da técnica psicanalítica forçou-me a estudar o mecanismo da formação das pilhérias. Quero expor-lhes apenas um desses exemplos, aliás uma anedota da língua inglesa. Diz a anedota:16 Por uma série de empresas duvidosas, dois comerciantes tinham conseguido reunir grandes cabedais e esforçavam-se para penetrar na boa sociedade. Entre outros, pareceu-lhes um meio conveniente fazerem-se retratar pelo pintor mais notável e mais careiro da cidade, cujo quadro fosse um acontecimento. Numa grande reunião foram inaugurados os custosíssimos quadros, um ao lado do outro, e os dois proprietários conduziram até a parede o mais influente crítico de arte a fim de obterem o valioso julgamento. O crítico examinou longamente o quadro, sacudiu a cabeça como se achasse falta de alguma coisa e perguntou apenas, indicando o espaço entre os dois quadros: "But where’s the Saviour?"17 (Mas onde está o Redentor?) Vejo que todos se riem da boa pilhéria; penetramo-lhes agora a significação. Os presentes compreendem que o crítico queria dizer: vocês são dois patifes como aqueles que ladearam o Cristo crucificado. Mas não o disse; em lugar disso exprimiu coisa que à primeira vista parece extraordinariamente abstrusa e fora de propósito, mas que logo depois reconhecemos como uma alusão à injúria que lhe estava no íntimo, e que vale perfeitamente como substituto dela. Não podemos esperar que numa anedota sejam encontradas todas as circunstâncias que pressupomos na gênese das idéias associadas dos nossos doentes; queremos todavia realçar a identidade de motivação para a anedota e para a ideia. Por que é que o nosso crítico não lhes falou claramente? Porque nele outras razões contrárias também atuavam ao lado do ímpeto de dizê-lo francamente, face a face. Não deixa de ser perigoso desfeitear pessoas de que somos hóspedes e que dispõem de criadagem numerosa, de pulsos vigorosos. A sorte poderia ser a mesma que na conferência anterior serviu de exemplo para a repressão. Por tal razão o crítico atirou indiretamente a ofensa que estava ruminando, transfigurando-a numa "alusão com desabafo". É, a nosso ver, devido à mesma constelação que o paciente produz uma ideia de substituição, mais ou menos distorcida, em lugar do elemento esquecido que procuramos. [...] O modo de proceder dos doentes em nada facilita o reconhecimento da justeza da tese a que estamos aludindo. Em vez de nos fornecerem prontamente informações sobre a sua vida sexual, procuram por todos os meios ocultá-la. Em matéria sexual os homens são em geral insinceros. Não expõem a sua sexualidade francamente; saem recobertos de espesso manto, tecido de mentiras, para se resguardarem, como se reinasse um temporal terrível no mundo da sexualidade. E não deixam de ter razão; o sol e o ar em nosso mundo civilizado não são realmente favoráveis à atividade sexual. Com efeito, nenhum de nós pode manifestar o seu erotismo francamente à turba. [...] A propensão à neurose deve provir por outra maneira de uma perturbação do desenvolvimento sexual. As neuroses são para as perversões o que o negativo é para o positivo. Como nas perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes instintivos que mantêm os complexos e são os formadores de sintomas; mas aqui eles agem do inconsciente, onde puderam firmar-se apesar da repressão sofrida. A psicanálise nos mostra que a manifestação excessivamente intensa e prematura desses impulsos conduz a uma espécie de fixação parcial — ponto fraco na estrutura da função sexual. Se o exercício da capacidade genética normal encontra no adulto um obstáculo, rompe-se a repressão da fase do desenvolvimento justamente naquele ponto em que se deu a fixação infantil. [...] A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que possuíam eles um cavalo com cuja força e trabalho estavam satisfeitíssimos. Uma só coisa lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a pouco desse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diariamente, até acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu magnificamente; o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por quê. Nós nos inclinaremos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem certa ração de aveia não podemos esperar em geral trabalho de animal algum [...]. CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE – A obra Cinco lições de psicanálise, de Sigmund Freud, é o resultado de pronunciamentos efetuados por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, Worcester, Massachusetts, em setembro de 1909, tratando de temas como a histeria, trauma psíquico, método catártico, repressão, resistência, sublimação, catexia, associação livre, conteúdo manifesto e latente, condensação, deslocamento, ato falho, auto-erotismo, zona erógena, Complexo de Édipo, libido, sadomasoquismo, sexualidade infantil e a história da construção do pensamento psicanalítico. Veja mais aquiaqui.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1978.


LEILAH ASSUMPÇÃO – A dramaturga e pedagoga Leilah Assumpção surgiu no final dos 1960 com a sua premiada peça teatral Fala baixo senão eu grito, contando a história de uma solteirona cheia de frustrações e recalques que realiza uma viagem levada por um homem que invade seu quarto. A partir de então, torna-se autora de uma série de peças teatrais que abordam sobre o tema da mulher e sua situação na sociedade, explorando a questão feminina e criticando o dinheiro e as aparências da sociedade moderna capitalista. Entre entras destacamos as peças teatrais Kuka de Kamaiorá, Boca molhada de paixão calada, Lua Nua e Intimidade indecente. A respeito dela, a poeta e dramaturga Renata Pallotini diz: “Leilah Assumpção inventou uma nova forma de por em cena teatral suas intuições, descobertas e experiências: inovou de tal maneira a Dramaturgia em sua geração que se tornou a introdutora de um diálogo inusitado e de personagens inéditos. Nada mais seria necessário para o reconhecimento de uma autora absolutamente original e única". Veja mais aqui.



AILSON CAMPOS – Natural da terra de Alceu Valença, o cantor, compositor, poeta e graduado em Letras pela Fabeja, José Ailson Campos de Souza, ou simplesmente Ailson Campos, é herdeiro de uma família de músicos. Ele é um dos idealizadores do projeto Recordando São Bento, do qual resultou na gravação de seis CDs e dois DVDs. É autor dos livros de poesias Horas Vivas (1999), Eu comigo (2004), Das mais doces lembranças (2008) e Da vida do tempo (2009). Hoje ele aniversaria em meio aos versos e tons de suas composições poéticas e musicais, motivo pelo qual homenageamos com o nosso desejo de felicidades e sucesso.


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CHRISTINA VASSILEVA, KATHERINE JOHNSON, MARTÍN-BARÓ, JOÃO CABRAL & MATA SUL INDÍGENA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Mistérios do Rio Lento (The Voice of Lyrics, 1998), Santiago de Murcia: a portrait (Frame,...